quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Mau Tempo no Canal. Vitorino Nemésio. «Naturalmente, também, se vieste aqui hoje, foi para não estares fechada..., disse João Garcia, sorrindo e desenrolando um fio de despiques pequeninos»

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A serpente cega
«Mas não voltas tão cedo... João Garcia garantiu que sim, que voltava. Os olhos de Margarida tinham um lume evasivo, de esperança que serve a sua hora. Eram fundos e azuis, debaixo de arcadas fortes. Baixou-os um instante e tornou: quem sabe...? Demoro-me pouco..., palavra! Cursos de milicianos... Moeda fraca! Para a infantaria, três meses. Se não fecharem os concursos para secretários-gerais, então aproveito. Bem sei que há só três vagas e mais de cem bacharéis à boa vida... Mas não tenho medo das provas. Bastam algumas semanas para me preparar a fundo..., rever a legislação. Entrava em pormenores. Margarida ouvia-o agora vagamente distraída, de cabeça voltada às nuvens, como quem tem uma coisa que incomoda no pescoço, um mau jeito. O cabelo, um pouco solto, ficava com toda a luz da lâmpada defronte, de maneira que a testa reflectia o vaivém da sombra ao vento. Estavam quase ao alcance da respiração um do outro: ela debruçada num muro de pedra de lava; ele na rampa de terra que bordava a estrada ali larga, acabando com a fita de quintarolas que vinha das Angústias até quase ao fim do Pasteleiro e dava ao trote dos cavalos das vitórias da Horta um bater surdo, encaixado. Dali a entrada da quinta corria um muro de pedra solta onde espreitavam trepadeiras, e só a uns vinte metros se erguia a parede nobre com o grande portão verde de padieira grossa, que ao abrir bem atrás, devido a uma posição mal calculada, batia na borda da sineta arrematada do naufrágio de um veleiro. Do lado oposto à cidade a estrada descrevia uma curva ao longo de muros de cerrados, onde os grilos pareciam, de Verão, o queixume da ilha abafada e em que pairava agora um pasmo solto de tudo, menos do mar. As lâmpadas da rede, lá para Porto Pim, faziam mais escura a massa de águas que devia rolar enrefegada a um começo de vento levantado, pouco e já duro. De vez em quando, o cão da quinta dos Dulmos, poucos metros atrás de Margarida, esticava a corrente e rosnava. Açor!... Eu nem devia falar contigo a esta hora, com o avô assim tão doente! O pai já anda desconfiado... E que tem?! Não é a última vez?... Última?..., credo! Isso, nem que tudo acabasse. Mesmo que Lisboa te faça esquecer de mim, somos da mesma ilha, quase vizinhos..., apesar do que se passou. Do Granel do avô via-te ir todas as tardes pela muralha fora. Oh! muito antes de perceber...! Nem me passava pela cabeça! É que não posso estar muito tempo fechada; dá-me a impressão de que abafo..., até nas Vinhas! Olha que no Pico é a mesma coisa... Já não sei quantas vezes te ouvi isso! Naturalmente, também, se vieste aqui hoje, foi para não estares fechada..., disse João Garcia, sorrindo e desenrolando um fio de despiques pequeninos, a linha mais excitante de um namoro em que era a quarta ou quinta vez que se falavam.
Mas o cão estava insofrido e ameaçava arrastar a casota para junto de Margarida. Era um cão de fila, um rabo-torto da Terceira, espécie de buldogue atarracado e cor de rolão. João Garcia viu-lhe as orelhas cortadas e guichas do lado de dentro da quinta, num salto de pêndulo que lhe punha as virilhas à mostra, e correspondia, na instabilidade, à posição do namorado na rampa de terra da estrada, que o obrigava a escorregar e a trepar alternadamente, para não perder o contacto com a borda do muro. De mais a mais, o vento começava a enrodilhar as folhas das faias e dos cedros, e de baixo, do caminho, tornava-se difícil perceber o que se dissesse em cima. Margarida atirou-se ao animal: Ache! Vá-se deitar, Açor! Vá-se deitar! E ficou de mão espalmada na cabeça quadrada do bicho, que meteu para as patas de trás o inútil vigor de sentinela. João Garcia fincara os pés na rampa e as mãos no muro, elevando-se como se estivesse a trabalhar de espaldar. A fúria do cão enchia-o de um atrevimento nervoso, como se Margarida estivesse em perigo ou o quisesse experimentar criando-lhe um inimigo inferior. Agora era o Açor que o via em posição de ataque, só a cabeça e os cotovelos. Açulado por aquela sombra, o cão atirou-se por cima da dona ao vulto, de gorgomilos rascantes estrangulados na coleira. com o impulso, Margarida resvalou; mas, apanhando rapidamente o casaco cinzento que pusera pelos ombros, fez frente à fera, intimidando-a. João Garcia, de um salto, tinha-se posto ao pé dela. Cuidado, que te morde!, gritou Margarida; e, vendo a cobardia do cão e o perigo de falar alto: deixa..., podem-nos ver! Não, não foi nada. Só me rasguei na saia. Sacudiu-se. Mas a rapidez da cena fizera-a logo esquecer que João Garcia estava da parte de dentro da quinta; deixou que ele lhe pegasse na mão raspada pela queda, atento ao arranhão como um enfermeiro profissional. Não tem importância nenhuma. Mas ainda assim havia sinal de sangue. Voltou-se para o cão: Estúpido! Deite-se! Ah, seu estúpido!» In Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal, 1944, Bertrand, BIS, colecção BIS, 2010, ISBN 978-989-660-041-9.

Cortesia de Bertrand/BIS/JDACT