terça-feira, 25 de outubro de 2016

Julieta. Anne Fortier. «Nem Janice nem eu jamais o tínhamos encontrado, mas tia Rose falara dele com tanta frequência e tamanho carinho que o homem estava fadado…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Desde minhas mais remotas lembranças Janice sempre fora assim: insaciável. Quando éramos pequenas, tia Rose costumava rir, encantada, e a exclamar: se essa menina estivesse numa prisão feita de biscoitos, fugiria de lá abrindo caminho à dentada, como se a voracidade de Janice fosse motivo de orgulho. Mas, afinal, tia Rose estava no topo da cadeia alimentar e, ao contrário de mim, não tinha nada a temer. Até onde eu podia me lembrar, Janice sempre havia conseguido descobrir meus doces, não importava onde eu os escondesse, e as manhãs de Páscoa em nossa família eram desagradáveis, meio brutas e curtas. Chegavam inevitavelmente ao clímax quando Umberto a repreendia por ter roubado o meu número de ovos de Páscoa, e Janice, com os dentes cheios de chocolate, respondia sibilando, debaixo da cama, que ele não era seu pai e não podia lhe dizer o que fazer. O frustrante era que o seu físico não a denunciava. Sua pele recusava-se obstinadamente a revelar seus segredos; era lisa como a cobertura acetinada de um bolo de noiva, as feições moldadas com a mesma delicadeza das frutinhas e florezinhas de marzipã criadas pelas mãos de um mestre confeiteiro. Nem gim nem café nem vergonha nem remorso, nada havia conseguido abrir uma rachadura naquela fachada vitrificada. Era como se Janice tivesse dentro de si uma fonte perene de vida, como se levantasse todas as manhãs rejuvenescida no poço da eternidade, nem um dia mais velha, nem um grama mais gorda e ainda sedenta do mundo.
Para minha infelicidade, não éramos gémeas idênticas. Uma vez, no pátio da escola, entreouvi alguém referir-se a mim como um Bambi de pernas de pau e, embora Umberto tivesse rido e dito que aquilo era um elogio, não foi o que me pareceu. Mesmo depois de ultrapassar a idade em que tinha sido mais desajeitada, eu sabia que, perto de Janice, continuava parecendo magrizela, desengonçada e anémica; aonde quer que fossemos ou o que quer que fizéssemos, ela era tão morena e efusiva quanto eu era pálida e reservada. Sempre que entravamos juntas num bar, todos os reflectores viravam-se imediatamente para ela e, mesmo estando bem a seu lado, eu era apenas mais uma pessoa no local. Com o tempo, entretanto, fiquei à vontade no meu papel. Nunca precisava preocupar-me com a conclusão de minhas falas, porque Janice concluía por mim. E, nas raras ocasiões em que alguém perguntava sobre minhas esperanças e meus sonhos, em geral, quando eu tomava xícara de chá com um dos vizinhos de tia Rose, Janice me puxava para o piano, que tentava tocar enquanto eu virava as páginas da partitura para ela. Mesmo agora, aos 25 anos, eu ainda me agitava e acabava bloqueando nas conversas com estranhos, torcendo desesperadamente para ser interrompida antes de ter que combinar um verbo com um objecto.
Sepultámos a tia Rose debaixo de uma chuva forte e o cemitério parecia quase tão imundo quanto eu me sentia por dentro. Parada junto ao seu túmulo, senti as gotas pesadas de água caírem do meu cabelo e se misturarem com as lágrimas que me escorriam pelas faces; os lenços de papel que eu levara de casa havia muito tinham-se transformado numa pasta em meus bolsos. Apesar de ter chorado a noite inteira, nem de longe eu estava preparada para a triste sensação de fim que experimentei quando o caixão foi baixado à terra, meio de lado. Um caixão tão grande para a estrutura longa e esguia de tia Rose!.. De repente me arrependi de não ter pedido para ver o corpo, mesmo que não fizesse diferença para ela. Ou será que faria? Talvez ela estivesse nos observando de algum lugar muito distante, querendo poder nos dizer que havia chegado em segurança. Foi uma ideia consoladora, uma bem-vinda distracção da realidade, e desejei poder acreditar nela. Ao fim do enterro, a única pessoa que não parecia um roedor afogado era Janice, que usava botas de plástico com saltos de 10 centímetros e um chapéu preto que expressava tudo, menos luto. Em contraste, eu estava usando o que um dia Umberto havia rotulado de meu traje de freira; se as botas e o decote de Janice diziam venha, meus sapatos pesadões e o vestido abotoado até ao pescoço com certeza diziam fora. Algumas pessoas apareceram junto à sepultura, mas somente o Senhor. Gallagher, o advogado da família, ficou para conversar. Nem Janice nem eu jamais o tínhamos encontrado, mas tia Rose falara dele com tanta frequência e tamanho carinho que o homem estava fadado a ser uma decepção». In Anne Fortier, Julieta, Editorial Planeta, ISBN 978-989-657-127-6, Sextante, 2010, ISBN 978-859-929-691-2.

Cortesia de EPlaneta/Sextante/JDACT