terça-feira, 25 de outubro de 2016

Judas. O Obscuro. Thomas Hardy. «Cada vez mais assumiam aos seus olhos a aparência de amigos, de protegidos, os únicos amigos aos quais parecia inspirar um pouco de interesse… Assim, parou com o barulho e os pássaros voltaram ao solo»

Cortesia de wikipedia

«(…) A senhora Fawley duvidava que assim fosse. Por que você não pediu ao professor que te levasse para Christminster para fazer de você um erudito?, prosseguiu ela, brincando em tom áspero. Melhor discípulo ele não poderia ter encontrado. O garoto tem loucura por livros! Seguramente que o tem! E é coisa de família. Segundo me disseram, Sue, prima dele, é igualzinha. Mas há anos que não vejo essa menina e, no entanto, ela aqui nasceu, entre essas quatro paredes. Minha sobrinha e o marido, depois de casados, não tiveram casa própria antes de um ou dois anos. Além disso, eles não ficaram… Mas, na verdade, não vou contar toda essa história! Judas, meu filho, não case nunca. Para um Fawley, não vale a pena tentar. Essa menina, filha única, era como uma filha, para mim, Belinda, até ao dia da briga. Pobre pequena! Triste é que tenha assistido a tais mudanças! Vendo que a atenção geral ia se concentrar nele, Judas saiu da padaria para comer o bolo que sempre lhe davam pela manhã. Estava findo o seu momento de folga. Escalando a grade do fundo do jardim, tomou a direcção do norte e chegou a uma depressão solitária que existia na parte plana da colina e onde se havia semeado trigo. Era ali que trabalhava para Troutham. À sua volta, a massa escura do campo subia recta para o céu e se perdia na névoa que escondia os seus bordos, reforçando assim a impressão de solidão. As únicas coisas que rompiam a monotonia da paisagem eram uma meda da colheita passada que se erguia nas terras aradas, as gralhas que levantavam voo à sua aproximação e o caminho que vinha da aldeia. Por esse caminho, muitos dos membros da sua família haviam transitado, mas as pessoas que agora o trilhavam, Judas mal as conhecia. Como isso aqui é feio!, murmurou ele. Os sulcos ainda frescos pareciam as raias de uma peça de belbutina nova e davam à vasta extensão do campo um aspecto mesquinhamente utilitário. Estavam desaparecidos, agora, todos os acidentes do terreno. Nem mais o menor vestígio de história, a não ser o dos últimos meses. No entanto, a cada torrão de terra, a cada pedra, associavam-se inumeráveis recordações, ecos de cantigas ouvidas durante as colheitas passadas, palavras ditas, factos e gestos audaciosos. Em cada polegada de terreno, quantas manifestações de energia ou de alegria, quantos jogos brutais, quantas brigas não haviam tido lugar? Em cada metro quadrado, grupos de respigadores se haviam encurvado sob o sol. Os casamentos de amor que tinham povoado a aldeola vizinha, era ali que haviam sido ajustados, entre a última foiçada e a recolha do trigo. Sob a cerca que separava o campo de uma distante plantação, moças se haviam entregue a apaixonados que, na colheita seguinte, nem mesmo tinham voltado a cabeça para olhá-las. No trigal, mais de um homem havia feito juras de amor a uma mulher: na primavera seguinte, depois do casamento, a voz dessa mesma mulher como não o tinha feito estremecer pelo seu tom acre e autoritário! Mas, com tudo isso não se preocupavam nem Judas nem as gralhas que o rodeavam. Viam apenas um terreno vazio que, aos olhos do primeiro, possuía a qualidade de ser um bom campo de trabalho e, aos das segundas, o de ser um bom celeiro de provisões. O menino estava na meda de que falamos e, de dois em dois ou de três em três segundos usava a sua matraca. A cada golpe, as gralhas cessavam de bicar o trigo e alçavam voo lentamente, sacudindo as asas lustrosas como cotas de malhas. Depois, davam voltas em torno dele, olhando-o com cautela, para pousar a uma respeitosa distância e recomeçar a refeição. Judas sacudiu a matraca até o seu braço doer e, por fim, acabou sentindo no coração uma grande simpatia pelos desejos contrariados dos pássaros. Parecia-lhe que, tal como ele, as gralhas viviam num mundo hostil. Por que assustá-las? Cada vez mais assumiam aos seus olhos a aparência de amigos, de protegidos, os únicos amigos aos quais parecia inspirar um pouco de interesse, pois sua tia frequentemente lhe havia dito que, a ela, ele não inspirava nenhum. Assim, parou com o barulho e os pássaros voltaram ao solo». In Thomas Hardy, Jude, The Obscure, Judas, o Obscuro, 1895, tradução de Octávio Faria, Geração Editorial, Colecção Redescoberta, ePub, 1994/1995, CDD 823.

Cortesia de GeraçãoE/ePub/JDACT