quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Afonso. 4º conde de Ourém. Alexandra Barradas. «… sabemo-lo já em Florença em Maio de 1437; foi também ele [abade Gomes] que deu hospedagem ao Infante Pedro, quando este veio a Florença»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Esta viagem pela península itálica que levou o conde de Ourém até Basileia permitiu-lhe contactar com um ambiente completamente diferente daquele que tinha visto na Flandres. Frequentemente, o relato assinala conflitos latentes e situações de insegurança, demonstrativos do ambiente instável que se vivia nalgumas cidades-estado. E esta luta travava-se não só no campo de batalha, mas também nos edifícios públicos de reunião e administração comunal, cuja construção era promovida e paga pelas associações comerciais e/ou artesanais, e nos que o senhor patrocinava, paços, capelas privadas ou outras construções, ricamente decoradas com pinturas e esculturas. Naqueles territórios, no início do século XV, uma cultura mecenática estava em germinação e dava já passos seguros no sentido de uma atitude de valorização e enriquecimento cultural e artístico que foi levada a cabo, a partir do início do século XV, por inúmeros encomendadores privados, naquela zona tão particular da Europa mediterrânica. Tudo o que ficou assinalado nos textos e que expressamente é referenciado, constitui um conjunto bastante interessante de obras de arquitectura que o conde de Ourém viu: vários paços régios (10) e outros de natureza mais modesta (6), estaus (8), castelos (14) e alcáçovas (2) e edifícios de carácter religioso: Catedral de Tarragona, Mosteiro de Montserrat em Barcelona, Catedral e Baptistério de Pisa, Catedral, Torre e Baptistério de Florença, Basílica de S. Petrónio em Bolonha, Catedral de Milão, Mosteiro de São Bernardo nos Alpes e as catedrais de Basileia, Ruão, Estrasburgo, Colónia e Mosteiro de São Francisco e das Onze Mil Virgens, na mesma cidade.
Mas, certamente, outros edifícios igualmente importantes e que o texto não assinala, devem ter sido observados. Esta afirmação fundamenta-se no facto de, sendo as estadas do 4º conde de Ourém por vezes prolongadas e sendo aqueles edifícios marcos significativos nas cidades, decerto foram vistos. Podemos afirmar que em Valencia, Afonso terá, pelo menos, visto a respectiva catedral, construída entre meados do século XIV e o início do seguinte, que já apresentava o seu campanário, el Miquelete, uma torre octogonal que se erguia a mais de 51m, concluída em 1429. Barcelona onde esteve seis semanas não seria uma novidade para ele. O relato assinala o local onde terá ficado instalado: ... na praçaa de Santa Anna, que era a paa[*r] donde pousava o Conde… No actualmente denominado Bairro Gótico, a toponímia regista uma Rua de Santa Ana, junto à Praça da Catalunha. Decerto esta é uma designação recente, pelo que se apresenta provável que o conde Afonso tenha pousado num edifício desta praça, que no século XV deveria evocar o nome da mãe de Nossa Senhora. O relato descreve com pormenor os encontros que Afonso teve com a rainha de Castela que estava acompanhada da irmã, no paço onde pousavam. O texto não assinalou o nome pelo qual era conhecido, mas pela importância e posição de quem nele se hospedou só poderia tratar-se do palácio real, localizado próximo da catedral, confirmando assim que Afonso conheceu, com algum detalhe [(a passagem do relato do encontro descreve-o demorado… E a Rainha estava assentada em hum estrado (...) e o Conde lhr fez huma muy grande mesura (...) e fêllo assentar a cabo de si em huma almofada muito fermosa e estiverom assentados per espço de duas oras fallando. (...) E foi o Conde fallar à Iffante em hma camara que estava a paar da camara da Rainha (...) e estiverom fallando per espaço de três oras)] este importante paço de Barcelona e teve oportunidade de admirar novamente a magnífica arquitectura gótica daquela cidade.
Relativamente à estada em Florença que ocorreu entre 8 e 21 de Julho, julgamos que se terá revelado muito significativa, não tanto pelas questões relacionadas com a missão diplomática do conde de Ourém mas porque nesta tão importante cidade da Toscânia se vivia um singular momento: no final do mês seguinte ou seja a 30 de Agosto de 1436 seria sagrada a cúpula do Duomo, ainda não rematada pelo lanternim que mais tarde a coroou, em 1461. Por estes tempos, a fama de Brunelleschi deveria ecoar pela cidade e com ela a renovação da arquitectura florentina. Sabemos que o estaleiro da catedral, onde estariam algumas das máquinas concebidas/inventadas por aquele arquitecto e que possibilitaram o fecho da cúpula, passados mais de sessenta anos sobre a conclusão das obras, ainda era ponto de atracção e passagem obrigatória de viajantes curiosos (par ailleur, il est historiquement certifié que cette machine est restée sur la place de Florence prés de soixante-dix ans aprés la construction de la coupole: elle a pu donc être object d´étude pour Leonard, ou pour d´autres). O que não seria em 1436 a um mês da inauguração da grande obra?
Florença decerto esperou e recebeu com algum entusiasmo e até curiosidade a presença de tão importante nobre, neto do famoso rei João I e do não menos conhecido e já com fama de santo, Nuno Álvares Pereira. Aliás, os florentinos bem conheciam e consideravam um outro português que naquela cidade era prior do mais célebre mosteiro beneditino, a Abadia de S. Bartolomeu de Fiesole, mais conhecida pela Badia di Firenze: Gomes Ferreira (1383/5?- 1459) [filho de um fidalgo de João I, de nome João Martins, o abade Gomes estudou Direito em Pádua; em 1412/13 aderiu à Ordem de S. Bento fazendo o noviciado em Stª Justina, um mosteiro dirigido pelo abade Ludovico Barbos de Veneza e ao qual também pertencia Gabriel Condulmer, futuro papa Eugénio IV; o mosteiro começou a ganhar fama e expandiu-se tendo o abade Gomes sido um dos noviços que integrou o primeiro grupo que se instalou em S. Fortunato de Bassano, tendo voltado a Stª Justina para professar no início de 1414; a partir de 1418, foi encarregue de governar 16 monges, ao ser nomeado prior e reformador da Badia Florentina que estava em decadência havia alguns anos, tendo sido a mesma por ele dirigida até 1439, data em que Eugénio IV o nomeou Geral da Ordem Camaldulense; em 1441 regressou definitivamente a Portugal, tendo sido feito prior de Santa Cruz de Coimbra, que governou até à morte], homem muito considerado e que mantinha relações de amizade com alguns dos mais notáveis intelectuais e artistas locais. Um dos seus conversos era até irmão de Filippo Brunelleschi [... em virtude da entrada para o mosteiro, no ano anterior (1426), de Tommaso di Ser Brunelescho. (...) Tommaso era irmão do genial Filippo di Ser Brunelescho (ou Filippo Bruneleschi)], pelo que não seria de estranhar que aquele religioso conhecesse até o famoso arquitecto. Apesar do abade Gomes não estar em Florença (esteve em Portugal, em missão pontifícia entre Março de 1436 e o início da Primavera do ano seguinte; sabemo-lo já em Florença em Maio de 1437; foi também ele [abade Gomes] que deu hospedagem ao Infante Pedro, quando este veio a Florença; em 1425, quando o abade Gomes esteve em missão em Portugal e Espanha, deixou à frente do mosteiro frei Álvaro, prior claustral e quando este teve que se ausentar, designou para o mesmo cargo frei João, ambos portugueses)  quando o conde de Ourém por lá passou a caminho de Basileia, é muito natural que Afonso tenha tido vontade de visitar a sede da congregação dirigida por um seu compatriota que sabia ser muito considerado tanto na corte portuguesa, já desde o tempo do seu avô, como também pelo papa Eugénio IV de quem o abade Gomes era amigo pessoal desde os tempos do noviciado. Provavelmente o conde de Ourém terá sido guiado por outro monge, talvez mesmo um português que lhe terá mostrado as obras já concluídas no primeiro piso da Badia que se encontrava em fase de remodelação total. Em 1436 estavam já prontos o Oratório e o Claustro inferior, o célebre Claustro das Laranjas (claustro pequenino e verdadeira jóia da Renascença, que se chama a Crasta das Laranjeiras, porque na sua origem as arcadas eram ornadas com grandes vasos de laranjeiras. (...) É preciso ter presente que laranja, em italiano, chama-se vulgarmente portugal), e o Refeitório, estando em fase de conclusão o segundo piso (claustro superior e dormitório novo), terminado no ano seguinte». In Alexandra Leal Barradas, D. Afonso, 4º conde de Ourém, Revista Medievalista, director Vasconcelos Sousa, Ano 2, Nº 2, Instituto de Estudos Medievais, FCSH-UNL, FCT, 2006, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT