sábado, 15 de outubro de 2016

A Eternidade e o Desejo. Inês Pedrosa. «Resta-me a terra da palavra, o tom e o toque, a modulação das vozes, os dedos dentro dos sons, os dedos tornados sílabas, curvados como lágrimas, cravados na esfera dos olhos»

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«A Eternidade e o desejo, são duas coisas tão parecidas, que ambas se retratam com a mesma figura». In António Vieira, Sermão de Nossa Senhora do Ó

«A noite passada sonhei que voltava à Bahia. O sol atacava a pique, e eu andava de igreja em igreja à procura de alguém que não conseguia encontrar. Na rua a força do sol impedia-me de ver, nas igrejas ficava atordoada com o excesso de turistas e talha dourada. Queria gritar, mas não conseguia. Dizes-me que é uma sensação muito comum, nos sonhos. Mas eu creio que já não posso voltar a ser uma pessoa muito comum. Recordas-me que vou voltar a Salvador. E que vou contigo. Vou ao teu lado, sim. Acredita que te agradeço a gentileza da companhia. Mas tu não pertences ali. E eu tenho um bocadinho de medo de me perder. Então peço-te que me contes tudo, Sebastião. Tudo? Mas o que é tudo? Tudo o que vejo?, perguntas, num sussurro. Como se, de súbito, te sentisses esmagado pela intraduzível vastidão do teu olhar. O que se vê nunca se pode narrar com rigor. As palavras são caleidoscópios onde as coisas se transformam noutras coisas. As palavras não têm cor, por isso permanecem quando as cores desmaiam. Percebo o teu aturdimento: como se traduz a visão? Como se emprestam os olhos? Impossível. Ainda por cima num aeroporto, onde tudo é movimento; o movimento entorpece o acontecer das coisas. Conta-me só a verdade, Sebastião. O que sobra daquilo que vês. Dizes-me que vês uma criança chorando agarrada aos joelhos de um homem que parte. Uma mulher tenta soltar-lhe os dedos das calças do homem, que se esforça por conter as lágrimas. Peço-te que não me contes histórias de despedidas. Vejo-as à transparência das vozes, no recorte bruto das frases interrompidas, entrecortadas de tristeza. Peço-te que olhes para o que fazem as pessoas felizes, são essas que preciso de ver. Dizes-me que te peço demasiado, que a felicidade não se vê. Enganas-te, Sebastião. Também eu já me enganei, quando via. Olhava mas não via. Fixava-me nas lágrimas, como tu. Somos conduzidos para as lágrimas, a civilização é provavelmente isso, um longo trajecto de lágrimas. Como se tivéssemos medo de merecer o júbilo da terra. Como se o conhecimento da morte nos tornasse mortos antecipados. Lembro-me de mim criança. Recorro muito à criança que fui, convoco as memórias da primeira infância, é esse o meu antidepressivo. Não havia entre mim e o mundo qualquer conflito, e tudo o que sabia me bastava. Dizes-me que tenho sorte; não conseguiste guardar uma memória nítida dos teus primeiros anos. Contam-te histórias que se passaram contigo, e é como se não tivesses estado lá. O que mais recordas da infância é o tédio: repetias incessantemente à tua mãe que não tinhas nada para fazer. Ela retorquia-te que aproveitasses as vantagens de viver num mundo onde já estava tudo feito, e depois mandava-te escolher brinquedos bons para levar aos meninos que não tinham nada. E tu não eras capaz de escolher, todos os brinquedos com que te esqueceras de brincar te faziam falta, de repente. Incapaz de te obrigar a escolher, escolhia ela os brinquedos, ia contigo a um orfanato qualquer. E tu vinhas de lá a chorar, com pena de ti mesmo e dos meninos órfãos, sem brinquedos. Na realidade, dizes agora, tinha mais pena de mim do que deles. Então a tua mãe abraçava-te e beijava-te, extasiada com o teu bom coração, dizia: meu amor, tão sensível, o meu amor pequenino, e tu sentias-te um mentiroso egoísta. Rio-me, pensas que me rio de ti, já não me rio de ninguém, Sebastião, rio-me porque preciso de arrefecer as palavras, preciso de as adequar à temperatura do meu corpo, rio-me muito mais agora do que quando via, porque quando via as palavras eram só mais um sinal, um piano numa orquestra. Rio-me até mais do que nunca, Sebastião, porque a escala dos sorrisos se me tornou inacessível.
(Forro o espaço de palavras para neutralizar o impacto. A consciência em implosão, neve caindo nas frestas da mágoa, água estagnada sobre estilhaços de vidro, um espelho que se desmorona dentro do rosto que jamais tornará a ser a minha imagem. Habito um lugar desencontrado de qualquer estrada, estraçabraçado de sonsilêncio. Vês? Despalavram-se-me as sequências. Preciso do barulho aquático que as palavras recortam em torno dos fragmentos de tempo. A carne dos corpos, alimentando-se de palavras para não morrer, matando as palavras para não chorar. Corpos. Pedaços de tempo que o tempo vai matando. Desde que se me tornaram opacos vejo-os por dentro, massas de ossos, nervos e vísceras, e ouço-os, espa-palaçados, na sua gramática descontínua. Palavras como soldados incautos, em sentido, perfiladas diante dos abismos do heroísmo, palavras que se julgam invulneráveis e se lançam, absolutas de infância, para o grande vazio. Resta-me a terra da palavra, o tom e o toque, a modulação das vozes, os dedos dentro dos sons, os dedos tornados sílabas, curvados como lágrimas, cravados na esfera dos olhos.)
Conta-me, continua a contar-me o que vês. E tu, paciente, amigo, começas a explicar-me que há um tipo baixinho, alourado, de óculos e nariz empinado, que tenta passar à frente da fila das pessoas que vão para Nova Iorque e que um latagão atrás dele o agarra pela lapela. Descreves a cena e eu começo a ouvir a voz agastada do homem que tentava passar à frente dos outros, uma voz de estopa que pergunta: sabe quem eu sou? Sabe quem eu sou? Digo-te o que ouço, invejas-me o ouvido, a piedade das pessoas ergue-se em uníssono neste refrão: ouvido invejável, ouvido invejável, onde quer que eu vá, gabam-me o ouvido, como às raparigas feias se gaba o sorriso. Ouvia apenas metade das frases, era uma distraída deliberada, sem paciência para as conversas de circunstância e sem capacidade para distinguir os timbres, os seus nós secretos de solidão, ternura ou desconsolo. Agora todas as vozes me inquietam e mesmo sozinha falo em voz alta, para preencher este nevoeiro de gesso em que habito. Não sei ser cega, não nasci cega, não posso esquecer o que perdi, tenho desejo da visão, um desejo físico, concreto, feito de suores e ansiedade, um desejo sexual, maculado, absoluto. Nem imaginas como odeio as pessoas que me garantem, com música de elevador na voz, que é bom manter o desejo, a raiva, a vontade, que bom, a questão é canalizar positivamente tudo isso». In Inês Pedrosa, A Eternidade e o Desejo, Publicações dom Quixote, 2007, ISBN 978-972-203-495-1.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT