sexta-feira, 21 de outubro de 2016

A Bruxa do Monte Córdova. Camilo Castelo Branco. «Angélica Florinda era a tentação, dos homens e dos anjos, inclusos os seres intermédios do género humano e dos serafins: os frades»

Cortesia de wikipedia e jdact

De acordo com o original

Angélica
«O capitão-mor de Cabeceiras de Basto morria por ela. Dois frades Bentos de S. Miguel de Refojos andavam como energúmenos desde que a lobrigaram na sua igreja. O juiz ordinário, o alferes de milícias, o juiz dos órfãos, o escrivão das sisas, o boticário e o mestre-escola farejavam-na, tanto à inveja, que a rapariga, quando eles, um por cada vez, se lhe faziam encontradiços, resmoneava, formando com os dedos uma figa oculta: eu tarrenego, diabo! E apertava o passo com os olhos no chão e o credo na boca. Desculpemo-los sem exceção dos frades. Pobres rapazes!, nenhum ainda tinha vinte e seis anos. Espadaúdos, vermelhaços, beiços grossos e rosados, narizes de água, sadios como duas montanhas!... Frades, sem fé, sem esperança, sem caridade! Desculpemo-los todos; que a culpa não na tinham eles nem ela. A culpa era o fomes peccati, a isca do pecado, boas palavras com que os santos padres explicam uma coisa simplíssima que os rouxinóis dizem em regorjeados trilos, e os poetas em madrigais de esmadrigadas cantilenas, e os outros indivíduos todos, ao seu modo, desde o urro atroador do leão Hircano até ao guincho estridente da água do Hermínio. Angélica Florinda era a tentação, dos homens e dos anjos, inclusos os seres intermédios do género humano e dos serafins: os frades. Alta, reforçada, nalgas e espáduas boleadas, breve cintura separando os tumentes seios das ancas maciças e rotundas, cabelos em ondas lustrosas de azeviche, as sobrancelhas cerradas e indistintas, olhos pestanudos e piscos, dentes de imaculado esmalte, o beiço superior orlado de um debrum penugento, e o inferior carnoso, cor de cravelina. A tez sobre o moreno, com a sua zona rosada em cada face. A forma do rosto oblonga, testa escantuda, barba tirante a redonda e fendida a meio levemente no lóbulo.
Eu não sei se este debuxo dá a perceber os mais donairosos, engraçados e louçãos dezessete anos de rapariga do concelho de Cabeceiras de Basto! S. Pedro de Alvite era a freguesia dela. Tinha Angélica pai e mãe, lavradores medianos, conhecidos pelo assento da sua casa no cabeço de um oiteirinho. Daí vinha chamarem-lhes: os do picoto; ou então, ao pai o Joaquim da Teresa, e à mãe a Teresa do Joaquim. Tem certa poesia este recíproco senhorio dos nomes entre marido e mulher, lá nas aldeias, onde nomes e almas, tanto monta, são bem e invejavelmente uma só alma e nome. A filha, seis léguas em volta, era conhecida pela Angélica do picoto. Dizia o tio Joaquim da Teresa que a sua filha não casava com algum dos lavradores que lha tinham pedido, porque um tio materno, estabelecido em Pernambuco, a vira, quando veio à terra, tendo doze anos a rapariga, e prometera vir casar com a sobrinha, assim que ela perfizesse os dezenove. Este almejado tio, no dizer do cunhado, media o dinheiro aos alqueires, tinha três navios e duzentos pretos. Em prova do que, havia já mandado à sobrinha um caixão de caju, pitanga e goiabada, gulosinas que os velhos apresigavam com broa, pesarosos, ao que parecia, de não poderem apresigar também um papagaio e um sagui, bichos que distraíam Angélica do trabalho.
O casamento apalavrado era notório, e mesmo assim os casquilhos do concelho e os lavradores solteiros não desistiam de enviar-se à esposa prometida do brasileiro. Se ela não estivesse ajustada com o tio, dizia o pai, quem na levava era o Barnabé da botica. Aquilo é que é modo de vida! Com um gigo de ervas e seis garrafões de água da fonte arranja caroço daquela casta! Anda aí o escrivão das sisas atrás da rapariga: também não é mau modo de vida, escrivão; mas eu ladrões cá na minha família não nos admito. O mestre-escola é bom sujeito e devo-lhe obrigações porque me ensinou a fazer bem ou mal uns garatujos para não assinar de cruz; e ensinou a rapariga também; mas tanto lhe faz saber ler como não: o pobre homem não tem tábua sua onde caia, se não for na cadeia... Andam estes badamecos a rentarem-me à rapariga e não se acabam de desenganar! Deus traga depressa meu cunhado a ver se ma deixam; que ela, a respeito de juízo, é até onde pode chegar! Quando algum fidalgote lhe diz praqui pracolá, a rapariga, moita! Vocês bem sabem que ela não vai a espadeladas nem festas de ninguém. Romarias é lá uma ano a ano. O seu regalo é ir às festas de igreja do mosteiro. Isso vai a todas, e raro é o mês que lá não se confessa...» In Camilo Castelo Branco, A Bruxa do Monte Córdova, 1867, Projecto Livro Livre, Nº 212, Poeteiro Editor, 2014.

Cortesia de PLLivre/JDACT