domingo, 4 de setembro de 2016

O Último Conjurado. Isabel Ricardo. «Barnabé recuava, assustado com a expressão do outro, que, mau-grado seu, manejava a espada na perfeição. Pronto, pronto, senhor fidalgo! Olhe que pode magoar-se com essa espada nas mãos! Não se altere!»

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«Maldito seja o cardeal que não apontou sucessor, deixando, assim, Portugal envolto em lágrimas e dor»

«Gualdim é o seu nome
destemido mascarado
ao povo mata a fome
ao ministro deixa preocupado».

«(…) Todos se voltaram ao ouvir a voz grave do mascarado. Vários pares de olhos brilharam de emoção. Capitão Gualdim! Barnabé estremeceu. Tinha ordens para avisar as autoridades sempre que visse a misteriosa personagem que fazia a vida negra ao ministro e seus comparsas. Só que o terror que lhe tinha também era muito. Por fim, decidiu-se pelo medo que sentia das torpes vinganças de Miguel Vasconcelos. Fez sinal a uma mulher que espreitava do lado de dentro da taberna. Virou-se, mais descansado, pois esperava ajuda rapidamente. O fidalgo não se meta onde não é chamado! Isto é um assunto que tem de ser resolvido entre mim e este bandido! O cavaleiro aproximou-se mais do outro homem., que começou a tremer que nem varas verdes, cobarde como todos os fanfarrões. Isso é o que você pensa. Ou deixa de bater no rapaz ou, juro por Deus!, trespasso-o imediatamente com a minha espada! O taberneiro fitou-o em ar de desafio. Eu não recebo ordens de um mascarado. Este desmontou e, de um salto, acercou-se dele. Arrancou-lhe a chibata das mãos e desembainhou a espada, encostando-lha ao pescoço. Barnabé recuava, assustado com a expressão do outro, que, mau-grado seu, manejava a espada na perfeição. Pronto, pronto, senhor fidalgo! Olhe que pode magoar-se com essa espada nas mãos! Não se altere! O rapazola observava a cena, boquiaberto. Nunca antes vira o enigmático cavaleiro. Já nem sentia as dores do corpo, tal era a emoção que o dominava. As pessoas observavam tudo, quase sem respirar. Sempre que o capitão Gualdim fazia uma das suas misteriosas aparições, era como se houvesse magia no ar. Todos pareciam viver o mesmo sonho, maravilhoso e emocionante. O que fez o pobre rapaz para o castigar desta maneira? Gostava que eu lhe fizesse o mesmo com a minha espada?, inquiriu o justiceiro, com os olhos brilhando ameaçadoramente. Com a ponta da lâmina fez-lhe um corte superficial no pescoço. O taberneiro soltou um grito de horror. Pela sua cabeça passaram mil horríveis imagens, entre elas a do mascarado cortando-o às postas fininhas, com ar maquiavélico. Recuou, violentamente, contra a parede. Atemorizado, os olhos reviravam-se-lhe de uma maneira esquisita. De branco, passou a esverdeado, enquanto o diabo esfrega um olho.
Tentou recuar ainda mais, só que a parede não lhe acompanhava o passo. Curiosamente, metera-se entre a espada e a parede... Ó, senhor fidalgo..., esse rapaz é um ladrão..., e um comilão! Saiba vossa senhoria que me roubou metade de um pão, depois de ter comido a parte que lhe cabia para um dia inteiro. Vossa majestade há-de concordar que é um bandido! Pior que um desses reles salteadores de estrada!, disse, com um suor frio escorrendo-lhe da testa. Gesticulava aflito com as mãos, como se quisesse impedir o mascarado de lhe tocar. Gualdim dobrou a espada, demonstrando a sua flexibilidade. Depois, com a ponta do dedo enluvado, carregou na ponta da lâmina. Tinha um ar desinteressado. De repente, fez uns gestos rápidos com a espada, mesmo em frente do nariz do avarento, deixando-o sem pinga de sangue. As pernas deste fraquejaram e caiu de joelhos no chão. O povo desatou a rir às gargalhadas, nada fazendo para disfarçar o seu contentamento por ver castigar um tão grande e nojento delator. Parece-me que a lâmina precisava de ser mais afiada…, observou o mascarado, com um esgar de contrariedade na boca trocista. Olhou de esguelha para o outro, sorrindo do seu pavor. Encostou-lhe de novo a espada ao pescoço, obrigando-o a levantar-se. A cara dele quase se confundia com a parede. Sabe o que se passa, Judas de trazer por casa? É que não aprecio nada quem denuncia os companheiros. E quando isso acontece, gosto de afiar a minha lâmina nos corpos desses infelizes. É uma fraqueza minha… Que hei-de fazer?! Não sujeis a espada em mim, meu querido e poderoso senhor! Não mereço tamanha honra de vossa senhoria! O capitão Gualdim soltou uma gargalhada, ao mesmo tempo que embainhava a espada. Um sorriso misterioso aflorou-lhe aos lábios. Fez-lhe uma vénia, que deixou o taberneiro desconfiado e ainda mais atemorizado. Pois tem muita razão. Realmente a sua reles pessoa não merece que manche a minha lâmina em tão ultrajante sangue! Terá um outro castigo que nada tem a ver com pauladas, chicotadas ou qualquer outra punição corporal... Toda a gente se entreolhou, sem evitar um sorriso e tentando adivinhar que castigo o justiceiro reservava ao sovina e cruel Barnabé. Um largo sorriso apareceu na cara dele, deixando ver uns dentes podres e amarelos, nunca limpos em toda a vida». In Isabel Ricardo, O Último Conjurado, Saída de Emergência, 2014, ISBN 978-989-637-676-5.

Cortesia de SEmergência/JDACT