segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Maya. Jostein Gaarder. «Também brindamos àquele pequeno grupo de pessoas que não era capaz de reprimir sua inveja dos anjos por viverem eternamente. Por fim, Frank apontou para os sapos…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Pareceu de repente um pouco irritadiço: creio que me lembro literalmente do que ela disse: para mim só existe um homem e uma Terra, e se sinto isso tão intensamente, é porque só vivo uma vida. Que declaração mais singular, disse eu. E o que aconteceu em seguida? Foi bem seco. Depois de esvaziar o copo de cerveja, contou-me que tinham perdido Sonja quando ela estava com quatro anos e meio, e que, desde então, a convivência dos dois se tornara impossível. Era muita dor sob o mesmo tecto, explicou Frank. E ficou contemplando o coqueiral. Não falou mais no assunto, apesar de eu ter feito algumas tentativas discretas para retomá-lo. A conversa também foi interrompida de certo modo por um sapo enorme que pulou para o deck em que estávamos. Ouviu-se um chap!, e o contrariado sapo sentou-se debaixo da mesa, entre as nossas pernas. Um sapo-cururu, esclareceu o norueguês. Sapo-cururu? Ou bufos-marinus. Foram importados do Havaí faz pouco tempo, em 1936, para combater a grande quantidade de insectos nas plantações de cana-de-açúcar, e se deram muito bem aqui. Apontou para o coqueiral, onde descobrimos outros quatro ou cinco exemplares. Minutos depois, pude contar até dez ou doze sapos na relva húmida. Já estava na ilha fazia muitos dias, mas nunca tinha visto tantos sapos juntos. Tive a sensação de que era Frank quem os atraía, e não passou muito tempo até eu poder contar mais de vinte exemplares. Senti uma espécie de aversão ao ver tantos sapos juntos. Acendi um cigarro. Continuo pensando nessa bebida de que você falou, disse. Nem todo mundo ousaria prová-la. Acho que a maioria não provaria. Pus o isqueiro na mesa, apontei para ele e sussurrei: esse é um isqueiro mágico. Se você o acender agora, viverá eternamente na Terra.
Ele me encarou fixamente, sem sorrir. Suas pupilas pareceram se iluminar. Mas tem que pensar muito bem nisso, precisei, porque só vai ter uma oportunidade e nunca poderá voltar atrás na decisão que tomar. Não tem importância, replicou com altivez, e não tive certeza da escolha que ele faria. Quer viver até à idade normal do ser humano? perguntei solenemente. Ou quer ficar na Terra por todos os séculos dos séculos? Frank ergueu o isqueiro, lenta, mas decididamente e acendeu-o. Aquilo me impressionou. Fazia quase uma semana que eu estava na ilha, e finalmente não me sentia tão só. Não somos muitos, comentei. Afinal sorriu, um sorriso largo. Creio que nosso encontro o surpreendeu tanto quanto a mim. Não, parece que não somos tantos assim, admitiu. Endireitou-se e me estendeu a mão por cima do copo de cerveja. Foi como se tivéssemos confiado um ao outro que pertencíamos à mesma ordem selecta. Nem a Frank nem a mim metia medo a ideia de viver eternamente. O que nos aterrorizava era o contrário. Faltava pouco para o jantar, e insinuei que devíamos celebrar a confraternização com uma bebida. Sugeri um gim puro, e ele concordou. Os sapos continuaram se multiplicando no coqueiral, e voltei a sentir nojo. Confessei a Frank que ainda não tinha me acostumado com os gecos no quarto. Chegaram os copos de gim, e enquanto o pessoal começava a arrumar as mesas para o jantar, continuávamos sentados, brindando aos anjos do céu. Também brindamos àquele pequeno grupo de pessoas que não era capaz de reprimir sua inveja dos anjos por viverem eternamente. Por fim, Frank apontou para os sapos do coqueiral. Julgou que, por educação, também deveríamos fazer um brinde a eles. Afinal de contas, são nossos irmãos de sangue, comentou. Somos mais aparentados a eles do que aos anjos do céu. Frank era assim. Um sujeito excepcional mas que tinha os pés solidamente plantados no chão. No dia anterior tinha me confessado que não se sentira nada à vontade no táxi aéreo que o levara de Nadi a Matei. Os ventos estavam extremamente desfavoráveis, disse, e ainda por cima não gostara nem um pouco de saber que não havia copiloto no avião.
Enquanto bebíamos, o norueguês me contou que em fins de Abril participaria de um congresso na velha cidade universitária de Salamanca e que na véspera tomara conhecimento, por um telefonema à secretaria do congresso, de que Vera também tinha se inscrito. Mas não sabia se ela estava a par de que iriam se encontrar em Salamanca. E você, espera que isso aconteça?, perguntei. Espera poder se encontrar com Vera em Abril? Ele não respondeu. Tampouco pude notar se assentiu com um gesto de cabeça. Naquela noite, todas as mesas do restaurante do Maravu se juntaram, formando uma comprida e única mesa. A ideia fora minha, pois muitos dos hóspedes eram pessoas sozinhas. Quando Ana e José entraram, lancei um derradeiro olhar para o cartão-postal com as oito torres antes de devolvê-lo a Frank. Pode ficar com ele!, exclamou. Eu me lembro de cada palavra. Não me passou despercebido o tom amargo da sua voz, e tentei fazê-lo mudar de ideia. Mas ele não se deixou convencer. Soou como se tivesse tomado uma decisão importante quando disse: se eu o guardar, em algum momento poderia picá-lo em pedacinhos; por isso é melhor você ficar com ele. E, depois, quem sabe não voltamos a nos ver em algum lugar? Apesar disso, decidi que o devolveria no dia em que Frank fosse embora. Mas na manhã em que ele deixou o Maravu, muitas coisas aconteceram. Encontrar-me novamente com o norueguês quase um ano depois foi um desses acasos estranhos que condimentam a existência e criam a esperança de que, apesar dos pesares, existem forças ocultas que conduzem nossas vidas fora de cena e de vez em quando dão uma puxadinha nos fios do destino.
O acaso quis que eu já não tenha diante dos meus olhos apenas um velho cartão-postal. Desde hoje conto também com uma longa carta que Frank escreveu a Vera depois de encontrá-la em Abril. Considero uma vitória pessoal o facto de esse documento escrupuloso estar enfim em minhas mãos, o que com certeza não teria acontecido se uma coincidência extraordinária não tivesse me levado a reparar em Frank em Madrid. Aliás, encontrei-o no mesmo hotel em que ele havia escrito a carta a Vera em Maio. Nosso encontro ocorreu no Hotel Palace, no mês de Novembro de 1998. Na carta a Vera, Frank descreve vários episódios que nós dois tínhamos vivido naquela ilha do arquipélago Fiji. Centralizava a carta, logicamente, em Ana e José, mas também fazia referência a algumas conversas que ele e eu tivemos a sós. Já que resolvi trazer a lume essa longa carta, poderia me sentir tentado a interromper o relato de Frank com comentários adicionais meus. Mas optei por apresentar a carta a Vera em sua totalidade e acrescentar um amplo epílogo. Naturalmente, estou muito contente por possuir essa missiva, sobretudo porque ela me permitiu estudar as cinquenta e duas máximas do manifesto. Permito-me precisar que não me apoderei de uma carta pessoal. Não é o caso, de maneira nenhuma. Mas também sobre essa questão falarei no epílogo». In Jostein Gaarder, Maya, Editorial Presença, colecção Grandes Narrativas, 2001, ISBN 978-972-232-737-4

Cortesia de EPresença/JDACT