segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Lobos Não Choram. Patricia Briggs. «Até mesmo um urso negro proporcionaria uma morte mais rápida do que a tempestade (apesar de mais sangrenta). E, como conhecia os ursos daquela região, Walter podia avaliar a situação do garoto...»

jdact e wikipedia

«Ninguém melhor do que Walter Rice sabia que o único lugar seguro era longe das outras pessoas. Isto é, seguro para elas. O único problema era que ele ainda precisava delas, precisava do som das vozes e das risadas humanas. Para sua vergonha, ele algumas vezes ficava perto de um dos acampamentos apenas para escutar as vozes e fingir que estavam falando com ele. Essa era uma parte muito pequena do motivo pelo qual estava deitado de barriga para baixo nos arbustos de uva-ursina e nas velhas folhas pontiagudas de pinheiro à sombra de um grupo de árvores, observando um rapaz que escrevia com um lápis em um caderno de espiral de metal, depois de pegar uma amostra de fezes de urso e armazenar o saco plástico parcialmente cheio em sua mochila. Walter não receava ser visto pelo garoto: o Tio Sam treinou Walter muito bem para que ele fosse capaz de se esconder e rastejar, e décadas vivendo sozinho em algumas das áreas mais desabitadas dos Estados Unidos o haviam transformado numa imitação razoável daqueles índios milagrosamente invisíveis que povoavam os livros e os filmes favoritos de sua infância. Se ele não quisesse ser visto, ele não seria, além disso, o garoto tinha as habilidades de sobrevivência na floresta iguais às de uma dona de casa suburbana. Não deveriam tê-lo enviado ao território dos ursos-pardos sozinho, alimentar os ursos com estudantes de pós-graduação não era bom; podia dar aos ursos ideias erradas. Não que os ursos estivessem por ali naquele dia. Como Walter, eles sabiam ler os sinais: em algum momento, nas próximas quatro ou cinco horas, uma grande tempestade iria chegar. Ele podia sentir isso em seus ossos e, o mais estranho, não carregava uma mochila grande o suficiente para estar preparado para a chuva. Era cedo para uma tempestade de Inverno, mas as coisas funcionavam assim nessa parte do país. Walter já vira neve cair em Agosto. Aquela tempestade era a outra razão pela qual ele estava seguindo o garoto. A tempestade e o que fazer a respeito dela, ser tomado pela indecisão não era algo que lhe ocorresse com tanta frequência. Walter podia deixar o garoto ir. A tempestade viria e tomaria sua vida, mas essa era a lei da montanha, das áreas selvagens. Era uma morte limpa. Se apenas o estudante de pós-graduação não fosse tão jovem... Há muito tempo ele vira muitos garotos morrerem, seria de se esperar que estivesse acostumado com isso. Em vez disso, mais um parecia ser demais. Ele podia alertar o garoto. Mas tudo nele se revelava contra esse pensamento. Muito tempo havia se passado desde que ele havia conversado face a face com qualquer outra pessoa... Até mesmo esse pensamento fez sua respiração congelar-se. Era muito perigoso. Podia causar outro flashback, o último fora há algum tempo, mas eles aconteciam de forma inesperada. Seria muito ruim se Walter tentasse avisar o garoto e acabasse matando-o. Frustrado, Walter seguiu o jovem por algumas horas enquanto este perambulava, distraído, cada vez mais longe da estrada mais próxima e de sua própria segurança. O saco de dormir na mochila deixava claro que ele estava pensando em passar a noite ali, o que deveria significar que o garoto achava que sabia o que estava fazendo na mata. Infelizmente, ficava cada vez mais claro que essa era uma falsa confiança. Era como ver June Cleaver meter-se em encrenca. Triste. Apenas triste. Era como ver os novatos chegando ao Vietname em seus uniformes engomados, prontos para serem homens, quando todos sabiam que eles eram apenas bucha de canhão. O maldito garoto estava instigando em Walter todas as coisas das quais ele queria manter distância. Mas a irritação não era forte o suficiente para fazer qualquer diferença para a consciência de Walter. Por quase dez quilómetros, ou assim ele calculou, Walter havia se arrastado atrás do garoto, incapaz de tomar uma decisão: sua preocupação o impedira de sentir o perigo até que o estudante parou no meio do trilho. Os arbustos espessos entre eles só lhe permitiam ver o topo da mochila do garoto, e aquilo que o havia feito parar era algo mais baixo. Não era um alce, o que constituía uma boa notícia. Você pode até argumentar com um urso preto, ou até mesmo com um urso-pardo se ele não estiver com fome (o que, de acordo com sua experiência, raramente era o caso), mas com um alce... Walter puxou sua grande faca, embora não tivesse certeza de que iria tentar ajudar o garoto. Até mesmo um urso negro proporcionaria uma morte mais rápida do que a tempestade (apesar de mais sangrenta). E, como conhecia os ursos daquela região, Walter podia avaliar a situação do garoto... Ele se moveu lentamente no meio do mato, sem fazer barulho, embora folhas de álamo cobrissem o chão. Quando não queria fazer barulho, Walter não fazia. Um rosnado baixo provocou-lhe um arrepio de medo que atravessou seu corpo, elevando sua adrenalina até à camada de ozone. Era um som que Walter nunca tinha ouvido aqui, e ele conhecia cada predador que vivia em seu território». In Patricia Briggs, Lobos Não Choram, 2007/2008, Novo Século Editora, colecção Alfa e Ómega, 2012, ISBN 978-854-280-029-6.

Cortesia de NSEditora/JDACT