sábado, 10 de setembro de 2016

História de Portugal. Oliveira Martins. «O íntimo e essencial consiste no sistema das instituições e no sistema das ideias colectivas, que são para a sociedade como os órgãos e os sentimentos são para o indivíduo…»

jdact e wikipedia

«Antigamente foi costume fazerem memoria das cousas que se fazião, assi erradas, como dos valentes & nobres feytos. Dos erros porque se delles soubessem guardar: & dos valentes & nobres feytos, aos bõos fezessem cobiça auer pera as semelhantes cousas fazerem. Coronica do Condestabre, a história é sobretudo uma lição moral; eis a conclusão que, a nosso ver, sai de todos os eminentes progressos ultimamente realizados no foro das ciências sociais. A realidade é a melhor mestra dos costumes, a crítica a melhor bússola da inteligência: por isso a história exige sobretudo observação directa das fontes primordiais, pintura verdadeira dos sentimentos, descrição fiel dos acontecimentos, e, ao lado disto, a frieza impassível do crítico, para coordenar, comparar, de um modo impessoal ou objectivo, o sistema dos sentimentos geradores e dos actos positivos. O desenvolvimento do critério racional e o predomínio crescente dos processos próprios das ciências baniram os modelos antigos e fizeram da história um género novo. Nem os discursos morais ou literários sobre a história, à maneira do XVII século, nem o doutrinarismo seco do XVIII, que sobre factos e instituições mal conhecidos construía sistemas gerais quiméricos, nem a opinião, muito seguida em nossos dias, de considerar a história unicamente nos seus fenómenos exteriores, averiguando eruditamente as épocas e as condições dos sucessos, merecem, a nosso ver, imitação. Todos estes sistemas, porém, ensaios sucessivos para determinar o género de um modo definitivo, têm um lado de verdade aproveitável. Os modelos clássicos fizeram sentir o carácter moral da história; os modelos abstractos, a necessidade de compreender os fenómenos num sistema de leis gerais; os modelos eruditos, finalmente, a condição imprescritível de um conhecimento real e positivo da cronologia e dos elementos que compõem o meio externo ou físico das sociedades. Nada disto, porém, é ainda realmente a história, embora todas essas condições sejam indispensáveis para a sua compreensão. O íntimo e essencial consiste no sistema das instituições e no sistema das ideias colectivas, que são para a sociedade como os órgãos e os sentimentos são para o indivíduo, consistindo, por outro lado, no desenho real dos costumes e dos caracteres, na pintura animada dos lugares e acessórios que forma o cenário do teatro histórico. Estes dois aspectos são igualmente essenciais: porque a coexistência independente dos motivos colectivos e naturais, e dos actos individuais, é um facto incontestável na vida das sociedades. Na História da Civilização Ibérica tratámos de estudar o sistema de instituições e de ideias da sociedade peninsular, para expôr a sua vida colectiva orgânica e moral. Tomámos aí a sociedade como um indivíduo, e procurámos retratá-lo física e moralmente. Agora o nosso propósito é diverso. Tratando da história particular portuguesa, somos levados a encarar principalmente o segundo dos aspectos essenciais da história geral. A sociedade portuguesa, como molécula que é do organismo social ibérico, peninsular, ou espanhol, estas três expressões têm aqui um alcance equivalente, obedeceu, nos seus movimentos colectivos, ao sistema de causas e condições próprias da história geral da península hispânica. Por isso procurámos sempre, na obra referida, indicar o modo pelo qual as leis gerais se realizavam simultaneamente nas duas nações espanholas: duas, porque a história assim constitui politicamente a Península. Metade da história portuguesa está, portanto, escrita na História da Civilização Ibérica: a metade que trata da vida da sociedade, como um ser orgânico. Compreender-se-á, pois, que nos abstenhamos agora de repetir o que está dito, e que nos limitemos a enviar o leitor para esse livro; indicando, quando for necessário, o lugar onde poderá encontrar a explicação das causas gerais a que no texto se tem de aludir. Resta fazer a segunda metade: resta caracterizar o que há de particular na história portuguesa; resta fazer viver os seus homens, e representar de um modo real a cena em que se agitam: tal é o programa deste livro, cujas dificuldades de execução excedem em muito as do anterior. Nesse, bastavam o conhecimento e o pensamento: um para nos dizer como foram as coisas, outro para nos indicar o princípio e o sistema da civilização. Agora carece-se do faro especial da intuição histórica, e dum estilo que traduza a animação própria das coisas vivas. Toda a longanimidade do leitor será, pois, necessária para desculpar as imperfeições da obra. É mister indicar ainda outro assunto e prevenir uma impressão, natural em quem ler sucessivamente as duas obras. A História de Portugal consiste numa série de quadros, em que, na máxima parte das vezes, os caracteres dos homens, os seus actos, os motivos imediatos que os determinam e as condições e modo por que se realizam, merecem antes a nossa reprovação do que o nosso aplauso. Crimes brutais, paixões vis, abjecções e misérias compõem, por via de regra, a existência humana; e por isso mais de um moralista tem condenado o estudo da história, como pernicioso para a educação. Por outro lado, a História da Civilização Ibérica respira um entusiasmo optimista que, ao primeiro exame, pareceria contraditório com o péssimo e mesquinho carácter que as acções dos homens apresentam. Um exemplo bastará para demonstrar este antagonismo: além considerámos as conquistas americanas e asiáticas uma obra heróica, e agora veremos que montanha de ignomínias foi o império português do Oriente. Esta contradição, real para o critério abstracto, não existe, porém, para o critério histórico. Toda a boa filosofia nos diz que o homem real é a imagem rude de um homem ideal, que essa imagem vive no mundo inconscientemente, e que todas as Esta contradição, real para o critério abstrato, não existe, porém, para o critério histórico. Toda a boa filosofia nos diz que o homem real é a imagem rude de um homem ideal, que essa imagem vive no mundo inconscientemente, e que todas as acções dos homens, maculadas de defeitos e vícios, obedecem a um sistema de leis, idealmente sublimes. É esta verdade que o povo consagrou quando formulou o adágio: Deus escreve direito por linhas tortas». In J. Oliveira Martins, História de Portugal, 1879, Edições Vercial, Guimarães Editores, Edição/reimpressão 2004, ISBN 978-972-665-490-2.

Cortesia de EVercial/GuimarãesE/JDACT