sábado, 10 de setembro de 2016

Contos. História do Gêbo. Raul Brandão. «Porque a vida interior nunca cessa, nem no sono, este monólogo com que a vamos comentando até ao fim, que não tem existência real e que vivo é imenso. Nos homens e nos bichos. Talvez também nas árvores»

jdact e wikipedia

«Por fim, na entrada desse frio e rigoroso inverno, já tinha vencido tudo. De envelhecido e gasto, di-lo-eis um trapo que se deita fora ou um doido de cabelos brancos estacados, a falar sozinho. Toda a gente o conhecia. Ó Gêbo! Ahn? A mulher azedara com a pobreza e passava horas e horas a chorar, atirada para um canto, ou pregava dias inteiros em monólogos cheios de gritos, de sonho espezinhado, todos lavados em lágrimas. Se tudo acabasse!... Mas nem a Morte escuta os desgraçados, nem o tempo se apressa; vai moendo na sua mó as tristezas, as aflições e o pão negro. O desespero daquela criatura caía em impropérios sobre a cabeça do Gêbo espantado, a suar, e a quem nem a própria desgraça conseguia empedernir o coração. Todos os dias eram da mesma forma sombrios e tristes. Isto de chorar um dia e outro dia, dá a impressão de que chove e se não sai do inverno. Outras vezes calavam-se, mas a discussão era talvez maior, era talvez pior... Existência sem cor, que se gasta fio a fio, em que a desgraça se assemelha à desgraça, os gemidos se não ouvem, em que cada um para o seu lado interroga a vida e as horas passam acinzentadas deixando-os todos três curvados, todos três absortos. Porque a vida interior nunca cessa, nem no sono, este monólogo com que a vamos comentando até ao fim, que não tem existência real e que vivo é imenso. Nos homens e nos bichos. Talvez também nas árvores. Nuns desvairado, noutros humilde, baixinho, quase pueril. A vida não é senão este monólogo furioso ou ridículo e mais dorido quando é concentrado e sem gritos... Mas ela não podia mais e irrompia: deste, emprestaste a toda gente. E agora? agora? Riem-se de ti inda por cima, e ninguém te ajuda. Morremos à fome. É o mesmo, mulher, é o mesmo. Paciência... O pior é de nós, de mim e da pequena. Pois é o que me aflige, que por mim quem me dera morrer! Não fosses tolo! Olha de teus amigos como trepam. Ó mulher, mas que hei de eu fazer? Tu não me dirás o que hei de fazer? Roubá-lo! roubá-lo!... Às vezes esqueciam-se e ainda pairavam em torno duma esperança, a qual, agora nascida, logo a desgraça calcava. A mais humilde poeira de ilusão bastava para que todos três gelados pela desventura, se sentassem na enxerga, prontos a edificar os mais altos castelos e esquecidos de tudo. Só a filha sofria em silêncio, magra e com um sorriso tão triste que lembrava certas horas em que há sol e chuva misturados. E como o Gêbo lhe queria! Pelo seu destino que seria amargo, e por ser o único ser no globo, que lhe não dizia más palavras. Lá ia indo pela vida fora, coçado e com um ar de aflição que fazia rir. Parecia amachucado: as marcas dos encontrões nunca mais lhe saíam. A mulher passava os seus dias numa luta desesperada com a desgraça, arrancando-lhe os últimos trapos, disputando-os um a um até vê-los desfeitos. Ao fim do dia ouviam-se os passos vagarosos do velho nas escadas e a sua respiração, anh! Anh!, sufocada. Aí vem ele..., murmurava. O Gêbo entrava e ela logo, sôfrega, morta por desabafar o que todo o dia ruminara: até que vieste, homem! E então? Conta. Então há alguma esperança? Não há nada, mulher. E sentava-se arrasado. Também, ninguém faz caso de ti. Que és tu? Sabes o que tu és? Eu não, o quê? Um ente inútil. Não há ninguém que se não ria de ti, das tuas desgraças, das tolices que tens feito... Que é do dinheiro que tanto nos custou a poupar? Eu sei lá agora do dinheiro! Não falemos mais nisso... O que lá vai, lá vai. Pois é o que tu queres... Mas hei de falar, hás de me ouvir. Deste cabo de tudo, davas dinheiro a toda a gente... Tinhas-me a mim, tinhas a pequena. Reparasses, era a tua obrigação. Ó mulher, ora tu que todos os dias vens com a mesma seca. Não me basta a minha aflição!... De que serve isso agora? De que serve? Serve de muito! À noite, à luz do petróleo, o Gêbo fazia escritas com um cobertor pelos ombros e as mãos geladas de frio. A filha, sumida na sombra, compunha-lhe a roupa, e a mulher talhava, passeando na sala. Batia a luz do candeeiro na cara oleosa do Gêbo, no nariz enorme, nos seus olhos tristes e, do outro lado da mesa, só se viam iluminadas as mãos de Sofia, toda a noite trabalhando sem ruído e sem descanso. Já tive uma letra tão linda e agora... Os desgostos cansam a gente. É de ti! É de ti! Outros têm penas, desgostos, caem e tornam a levantar-se..., dizia-lhe a mulher. Têm sorte, é o que é. Para tudo é preciso sorte. E curvado sobre os livros contando, murmurava mais baixo: ... E vão sete... Sorte! Sorte! A culpa é tua que não tens energia nenhuma. Procura! Deixas-te ficar espapaçado para ai... Tu o que queres é comer e dormir. Ó mulher!... E erguia o carão aflito, onde batia a claridade da chapa. Viam-se-lhe os olhos aguados. Ó mulher, a gente também perde as forças... Sempre a desgraça! Sempre a desgraça!... Tudo nos corre torto! Mas... Tudo! Deixa-me!.. E desatava a chorar. Então o Gêbo, aflito, a mão curta e gorda ronronando no papel, mentia para lhe dar ânimo. Qualquer dia entro aí num negócio, tu verás... Não te aflijas. E vão cinco... Também há de chegar o nosso S. Miguel. A desgraça há de se cansar de nos perseguir. E o pão que trazia para casa era quase uma esmola. Mas tanto mentia que chegava a iludir-se. Às vezes não sabia o que havia de dizer. A desgraça gasta; a desgraça gasta até o sonho grotesco dos humildes. E elas caladas olhavam e esperavam; pareciam suplicar-lhe. Mente! Ao menos mente! E o velho inútil procurava um sonho ainda que fosse usado. A velha reanimava-se. E outra vez passeava na sala, embrulhada no xale rapado. Não, que é preciso sairmos deste atoleiro. Agora vai, agora vai, tu verás». In Iba Mendes, Contos Portugueses, I volume, Livro 239, Projecto Livro Livre, Raul Brandão, 2014, Poeteiro Editor Digital.

Cortesia de PoeteiroED/JDACT