terça-feira, 6 de setembro de 2016

Até que o Amor me Mate. Maria Lopo de Carvalho. «Francisco, meu marido. deve estar prestes a tornar ao Reino. Tomou o cargo de embaixador em Paris, onde por três anos honrou a Coroa, apesar das habituais intrigas para o derrubarem...»

jdact

As Mulheres de Camões
Violante de Andrade. 1543
«(…) Quando o vento muda, respira-se aqui em Xabregas o aroma a canela, a noz-moscada e a açafrão, armazenados na Casa da Índia. É ao longo das muralhas, junto ao Tejo, que todos os grandes senhores têm os seus palácios. E se por aqui os construímos. dizem as más-línguas, é porque somos dados ao negócio da China. O apelo do ouro e dos tesouros vindos do Oriente leva muita gente a cometer verdadeiras loucuras. Há quem se endivide até mais não por culpa ou virtude, por graça ou desgraça de um qualquer negócio da China. Conheço muitos, ultimamente endinheirados, que parecem o que não são e são o que não parecem. E os Grandes, os verdadeiramente Grandes, entre os quase 100 mil habitantes da capital, contam-se pelos dedos das mãos: nós. os Linhares; os Marialva, os Loulé, os Aveiro. os Vimioso, os Alegrete, os Telles, os Távora, os Ataíde..., umas dezenas de famílias titulares que seguem a Corte para onde vá.
Mas naquela primeira noite, como dizia. nada senti senão dor e medo. Sabia que tinha andado a fugir daquele medo, mas o medo acabara por me apanhar. Desde então nada sinto senão dor e medo. Antoninho nasceu três anos depois, tinha eu quinze primaveras. Sabe Deus O que passei com aquele homem inteiro a rasgar-me o corpo por dentro, a desfazê-lo em pedaços, a sorver-me as entranhas até que um caudal imenso de besta-fera o dissesse saciado. Jurei que não haveria de amar homem algum, nem príncipe, nem marinheiro, nem embaixador, nem poeta, nem soldado. E é aí que reside a minha liberdade.
Francisco, meu marido. deve estar prestes a tornar ao Reino. Tomou o cargo de embaixador em Paris, onde por três anos honrou a Coroa, apesar das habituais intrigas para o derrubarem... Até de espionagem o acusaram! O rei João III e o imperador Carlos V de Espanha são mais chegados do que agulha a dedal e o grande inimigo de Carlos V é o próprio Francisco I de França, com quem arde em conflito permanente. Tudo os separa: é a linha que divide o mundo assinada em Tordesilhas, são os ataques dos piratas e do corso francês, é a vontade que o rei de França tem em se lançar pelos mares, rompendo o poder dos nossos reis ibéricos. O senhor meu marido, embaixador em Paris, está no centro do furacão.
Não o amo. Nunca o amei, nem a ele nem a ninguém, pois que o amor não se conjuga com a vontade e só serve para nos deixar vulneráveis. O amor cria vício e o vício torna-nos dependentes e desventurados. Tive uma infância de oiro, sou dama galante e sei que encorajo os homens da Corte sempre que vou ao paço de El-Rei João III e de dona Catarina assistir a recitais, jogar às cartas ou ao xadrez e dançar. Ai o que me endoidece aquela música... Adoro provocar, adoro galantear. Mais me distraio com essa arte do que com o bobo Panasco e os demais bufões, a representarem certos autos de tal forma aborrecidos que não paro de bocejar.
João III anda cada vez mais pesado e bonacheirão. Tudo nele descai: o ventre, as bochechas, as pálpebras. Nem na forma de trajar se moderniza, continua sóbrio e enfadonho. Quando Manuel I, seu pai, passou a vestir à flamenga, ele continuou de finca-pé no pelote felpudo de mangas trançadas, na capa e na gorra de voltas. A única jóia que não dispensa é o anel de esmeralda. Crê El-Rei em tudo o que lhe dizem. Ainda há dias, estando comendo peixe, disse-lhe um dos físicos que assistiam ao real repasto que comesse só o rabo do peixe, por ser o mais sadio. Disse-o com grande certeza, pois que o peixe era muito húmido e. posto que nadava dando ao rabo, o movimento lançava dele muita parte da humidade natural, ficando por essa razão menos húmido, mais sadio. El-Rei, a partir de então, do peixe só come o rabo! E, já se sabe, agora, na Corte, só se come. do peixe, o rabo! E andam também menos descontentes dos rabos das mulas, que sempre abanam para cá e para lá, pois hão-de agora entender que, das mulas, o rabo é a melhor parte. Jesus, que ignara gente!» In Maria João Lopo de Carvalho, Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN -978-989-741-488-6.

Cortesia de Oficina do Livro/JDACT