terça-feira, 27 de setembro de 2016

Ascânio. Alexandre Dumas. «Mas não fora para isto que o belo adolescente entrara no templo, pois o seu olhar apenas se animou, avançando então pressurosamente, quando viu aproximar-se uma jovem vestida de branco e acompanhada por uma aia»

jdact e wikipedia

O ourives do rei
«Estava-se a 10 de Julho do ano da graça de 1540; eram quatro horas da tarde, em Paris, cerca da Universidade, à entrada da Igreja dos Agostinhos, perto da pia da água benta, junto à porta. Um jovem alto e bem parecido, moreno, de cabelo comprido e grandes olhos negros, trajando com a mais distinta simplicidade, e trazendo por única arma um pequeno punhal de punho primorosamente cinzelado, ali estava, de pé; e, decerto por piedosa humildade, não se tinha movido em todo o tempo que durou o ofício de vésperas; de cabeça inclinada e em atitude de devota contemplação, murmurava não sei que palavras em surdina; talvez as suas orações, pois falava tão baixo que só Deus e ele podiam saber o que dizia; contudo, ao terminar o ofício divino, reergueu a cabeça, e os seus vizinhos mais próximos puderam ouvir estas palavras pronunciadas a meia voz: que maneira abominável de salmodiar têm estes frades franceses! Não poderiam cantar melhor diante dela, que deve estar habituada a ouvir cantar os anjos? Ainda bem que as vésperas terminaram. Meu Deus, Meu Deus! Fazei que seja hoje mais feliz que no domingo, e que ela, pelo menos, levante os olhos para mim! Este seu desejo não é nada inconsequente, pois se aquela a quem se refere levantar de facto os olhos para ele, verá o mais sedutor dos rostos de adolescente que ela jamais idealizou, ao ler as belas fábulas mitológicas tão em moda nessa época, graças às poesias de mestre Clemente Marot, onde se descrevem os amores de Psique e a morte de Narciso. E que o jovem, no seu traje sóbrio mas belo, era, como dissemos, de uma irresistível sedução e de uma suprema elegância de maneiras; além disso, o seu sorriso tinha uma graça e uma doçura infinitas, e o seu olhar, que ainda não ousava ser audacioso, era, pelo menos, o mais apaixonado que poderiam lançar dois grandes olhos de dezoito anos. Entretanto, ao ruído especial das cadeiras anunciando o fim da cerimónia religiosa, o nosso enamorado, dizia eu, pôs-se um tanto de parte para ver passar a multidão, que saía em silêncio, e se compunha, quase exclusivamente, de severos fabriqueiros, respeitáveis matronas e jovens graciosas. Mas não fora para isto que o belo adolescente entrara no templo, pois o seu olhar apenas se animou, avançando então pressurosamente, quando viu aproximar-se uma jovem vestida de branco e acompanhada por uma aia de simpático aspecto e ainda não muito velha. Quando estas duas damas se aproximaram da pia da água benta, o nosso jovem tomou alguma nas pontas dos dedos e ofereceu-lha com ademane gentil. Esboçou a aia o mais gracioso sorriso, fazendo a mais agradecida das reverências, ao tocar os dedos do jovem, mas causou-lhe a maior das decepções ao oferecer ela própria algumas gotas da água recebida à sua jovem ama. Esta, não obstante a fervorosa oração de que poucos minutos antes fora objecto, manteve os seus olhos constantemente abaixados, prova evidente de que bem sabia estar ali o nosso jovem enamorado. Experimentou com a contrariedade tal desgosto, que não se conteve de bater o pé, murmurando: e não foi ainda hoje que me olhou! Isto prova que o belo adolescente, tal como julgamos tê-lo dito já, ainda não tinha mais de dezoito anos. Mas, passado o primeiro momento de despeito, o nosso desconhecido apressou-se a descer os degraus do templo, e, vendo que depois de ter baixado o véu e dado o braço à sua aia, a formosa distraída tinha voltado à direita, apressou-se a fazer o mesmo, notando aliás que era precisamente aquele o seu caminho. A jovem seguiu ao longo do cais até à Ponte de S. Miguel, que atravessou; exactamente o caminho do nosso desconhecido. Em seguida, a jovem meteu pela Rua Barillerie, atravessando a Ponte Change. Ora como tudo isto era o caminho do jovem, seguiu-a como se fora a própria sombra. A sombra de qualquer rapariga bonita é sempre um enamorado. Mas, pouca sorte! Por alturas do Grand-Châtelet, o belo astro, de que o nosso desconhecido se fizera satélite, eclipsou-se subitamente: o postigo da prisão real abriu-se como por si mesmo, mal a aia lhe tocou, voltando logo a cerrar-se sobre as duas. Por momentos, o jovem ficou interdito, mas, como era moço decidido sempre que não houvesse uma jovem beldade a alterar-lhe as decisões, depressa tomou o seu partido. Um sargento da guarnição, de lança ao ombro, passava e repassava gravemente diante da porta do Grand-Châtelet. O nosso jovem desconhecido pôs-se então a imitar aquela digna sentinela. Depois de se ter afastado o bastante para não dar nas vistas, mas sem perder a da porta, começou heroicamente o seu quarto de sentinela amorosa. Se o leitor já algum dia montou uma guarda, reparou certamente que o melhor processo para iludir o tempo é falar de si para consigo. Ora não resta a menor dúvida que o nosso jovem estava habituado a estes quartos de sentinela, pois, mal havia encetado esta, travou logo o seguinte diálogo consigo mesmo: evidentemente que não é ali que ela mora. Esta manhã, depois da missa, e nos dois últimos domingos, em que ousei apenas segui-la com os olhos, que tolo fui!, ela nunca voltou à direita pelo cais, mas sim à esquerda e em direcção à porta de Nesle e do Pré-aux-Clercs. Que diabo virá ela fazer aqui ao Châtelet? Vejamos, talvez visitar um preso, quem sabe se o próprio irmão. Pobre rapariga! Como deve sofrer, pois será tão bondosa como linda! Valha-me Deus! Como desejo falar-lhe, para lhe perguntar francamente de que é que se trata e oferecer-lhe todo o meu auxílio. Se for o seu irmão, confiarei o caso ao mestre e pedir-lhe-ei que me aconselhe. Quem, como ele, já se evadiu uma vez do Castelo de Santo Ângelo, há-de saber bem como se sai de uma prisão. Está dito, salvo-lhe o irmão. Prestando-lhe este serviço, o irmão torna-se meu amigo para a vida e para a morte. Perguntar-me-á, por sua vez, que poderá fazer por mim, que a tanto o obriguei. Confessar-lhe-ei que estou enamorado de sua irmã. Apresentar-ma-á, cairei a seus pés, e veremos então se não levanta os olhos para mim. Uma vez entregue a tais cogitações, é fácil compreender até que ponto um coração enamorado pode seguir, sem se deter, o seu pensamento predilecto». In Alexandre Dumas, Ascânio, ou o Ourives do Rei, 1843, Lello Editores, 1969, ISBN 978-972-481-184-0.

Cortesia de LEditores/JDACT