quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Afonso Henriques. O Homem. Cristina Torrão. «… com certeza sabes que a tua tia Urraca confiou o governo das cidades de Astorga e Zamora a teu pai… Embora não compreendesse o que Egas lhe dizia, Afonso acenou entendimento com a cabeça»

jdact e wikipedia

Guimarães. Maio de 1112
«A respirar às golfadas, Afonso especou na soleira da porta que dava acesso à torre de menagem. As suas três irmãs e as aias desfaziam-se em grande pranto. Lacaios oravam pelos cantos mal iluminados, alguns estendiam os braços ao alto, numa atitude de súplica. Apesar de a noite ter caído, havia poucas velas acesas. Os olhos castanhos do pequeno buscaram sua mãe e descobriram-na proseando com Ermígio Moniz Ribadouro. Parecia inquieta, embora não pranteasse como as outras mulheres. A bem da verdade, Afonso não imaginava sua mãe a chorar. O pequeno engoliu em seco, perante a ameaça que pairava no ar abafado, despoletada com a vinda dos irmãos Ermígio e Egas Moniz. Sua irmã Sancha estranhara: porque não volveu o senhor nosso pai com eles? A chuva grossa começara a cair durante a tarde no pó seco do terreiro. Afonso convencera a irmã a procurar abrigo nos estábulos, onde podiam brincar com a ninhada da Catita, uma das perdigueiras do castelo. Os cachorrinhos vieram ao seu encontro numa alegria de crianças a quem se distribui doces e, depois de se certificar de que as crias não corriam perigo, a perdigueira deitou-se no seu canto. Afonso e Sancha nem se apercebiam que a borrasca aumentava de intensidade. Até que a Catita deu um salto, num ladrar ameaçador. Os cachorros assustados aconchegaram-se no ninho quente deixado pela mãe, quando os dois cavaleiros irromperam no estábulo, embrulhados em mantos encharcados, as montadas a resfolegarem de cansaço e de susto. Sossega, Catita, disse um deles à perdigueira alarmada, que lhes examinava as vestes. A cadela acabou por se deixar afagar na cabeça. E Afonso reconheceu os irmãos de Ribadouro: Ermígio Moniz, senhor das terras de Faria e de Santo Estêvão de Ribalima, e Egas Moniz, a quem pertenciam as terras de São Martinho, Neiva e Lamego.
Ao depararem com as crianças, os senhores lançaram-lhes um olhar alarmado. Afonso teve a sensação de que Egas Moniz lhes ia a dirigir a palavra, quando o irmão Ermígio proferiu: apressemo-nos a ir ter com dona Teresa! E há que mandar alguém tratar das cavalgaduras. Deixaram o estábulo. A voz de Sancha exprimiu o receio que igualmente se apoderava de Afonso: porque não volveu o senhor nosso pai com eles? O pequeno remeteu-se ao silêncio. A irmã considerou: é tempo de volvermos à torre... Não. Eu fico aqui. E não receias a fúria da senhora nossa mãe? Afonso abanou a cabeça, numa negativa muda, mas decidida. Sancha deixou-o sozinho. Os cachorrinhos dormitavam agora ensarilhados uns nos outros. Afonso sentou-se ao lado deles, sobre a palha, permanecendo imóvel. Nem o moço que veio tratar das montadas deu pelo filho de dona Teresa, naquele canto escuro. Em breve, todo o estábulo escurecia e o pequeno resolveu-se, enfim, a chegar-se à porta. Observou o chicotear da chuva. De repente, desatou a correr pelo terreiro fora, a chapinhar na lama, até chegar à escada de madeira, que dava acesso ao primeiro andar da torre de menagem. Não era fácil para uma criança de quatro anos vencer os degraus. A sua ama-de-leite foi a primeira a dar com ele, especado à entrada, a pingar dos cabelos e das vestes. A mulher desatou numa ladainha: que desgraça, meu rico menino, que desgraça! Nossa Senhora nos valha! Agarrando-lhe nos braços, encarou-o com os olhos rasos de lágrimas: deixou-nos um herdeiro tão pequenino, o nosso bondoso senhor. Apertou-o contra o peito e soluçou-lhe aos ouvidos: que será de nós, meu Deus? Afonso sufocava, quando ouviu a voz de Egas Moniz de Ribadouro: ah, aqui estás! O fidalgo agarrou-o pela mão e afastou-o da ama, cujo choro perto do seu ouvido lhe provocara tonturas. E um nó crescia-lhe na garganta. Egas Moniz levou-o para a reentrância da janela, sentaram-se nos assentos de pedra e o homem começou: com certeza sabes que a tua tia Urraca confiou o governo das cidades de Astorga e Zamora a teu pai… Embora não compreendesse o que Egas lhe dizia, Afonso acenou entendimento com a cabeça. Agastado, el-rei Afonso de Aragão veio pôr cerco a Astorga, ao saber que nós lá nos encontrávamos... Dona Teresa deseja falar-vos, senhor. Afonso estremeceu, não se apercebera da aproximação do lacaio, que fungou ruidosamente para um lenço e se pôs, depois, a limpar as lágrimas. Egas Moniz ainda hesitou, mas acabou por dizer ao pequeno: aguarda aqui por mim! Afonso tentava, em vão, engolir o nó que se lhe havia formado na garganta. A chuva fustigava contra a portada de madeira da pequena janela sem vidros. O vento assobiava por entre as frinchas, o pequeno sentia-o soprar contra a sua túnica encharcada. Mas não tinha frio. Mal conseguia respirar, na atmosfera abafada, atacado por suores. Um trovão retumbou mais forte. O pequeno saltou para o chão, desatou a correr porta fora e só parou no estábulo, de respiração ofegante. O coração parecia querer escapar-se-lhe pelas orelhas e o cabelo pingava-lhe pelo rosto abaixo. O enjoo que subia por ele acima lembrou-lhe a noite que passara a vomitar, depois dos festejos da Páscoa, que se seguiam à longa abstinência da Quaresma e o levaram a devorar mais doces do que os que podia comportar. Deixou-se cair em cima da palha, ao lado da Catita, que aconchegava as suas crias». In Cristina Torrão, Afonso Henriques, O Homem, Edição Ésquilo, 2008, ISBN 978-989-809-249-6.

Cortesia de Ésquilo/JDACT