segunda-feira, 12 de setembro de 2016

A Guerra dos Hereges. Aydano Roriz. «Uma ruga de mau humor sulcou-lhe a fonte. Já fazia quatro anos desde a morte do meio-irmão Maurício, mas o defunto continuava a lhe fazer sombra, bem vivo na memória popular»

jdact e wikipedia

Holanda. 1629
«O povo é parvo. Tanto se faz de cego, como enxerga o que o bom-senso não vê. Tanto se faz de surdo, como ouve embevecido as maiores asneiras. Pode manter-se mudo por anos a fio ou, se bem orquestrado, bradar gritos de glória ou de revolta. Só depende da política. Era sobre isso que Frederik Hendrik reflectia, enquanto aguardava que o seu secretário fizesse entrar o mais recente grande herói das Províncias Unidas. Meses antes, à altura da Baía de Matanzas, em Cuba, o tal sujeito conseguira um feito inúmeras vezes tentado e sempre mal-sucedido: capturar o carregamento anual de ouro e prata que os galeões espanhóis traziam das minas do Novo Mundo. Um apresamento avaliado em doze milhões de florins, rendimento excepcional para a Companhia das Índias Ocidentais, da qual o novo herói era empregado. Piet Heyn, Alteza, anunciou, com pompa e cerimónia, Constantino Huygens, o secretário. Que decepção. O ídolo do povo era um homenzinho de baixa estatura, gordote, moreno, cabelo cortado rente com profundas entradas nas têmporas, olhinhos miúdos, bigodes mal-arrumados e fartos, além de uma ridícula barbicha que, como a coroar o conjunto, emprestava-lhe a singular aparência de uma foca de cavanhaque. Afora que metido naquelas roupas domingueiras... Bem-vindo, saudou o príncipe de Orange, disfarçando o seu desapontamento com expressiva inflexão de voz. Queiras aproximar-te. Eu cá não sou um desses cães espanhóis. Não mordo. Piet desejava se mostrar impecável. Esforçando-se para se manter digno das circunstâncias, emitiu um sorriso tímido, sem saber o que dizer. Constantino veio em seu socorro. Sua Alteza reservou uma surpresa para Vossa Mercê. Uma grande honra. Grande honra?, surpreendeu-se o visitante, passeando os olhos pelas paredes forradas de ricos quadros e tapeçarias. Que honra maior pode um pobre marujo como eu desejar, que ser recebido no Binnenhof pelo filho de Guilherme, o Pai da Pátria, e irmão do saudoso Maurício de Orange?
Frederik Hendrik não gostou da observação. Uma ruga de mau humor sulcou-lhe a fonte. Já fazia quatro anos desde a morte do meio-irmão Maurício, mas o defunto continuava a lhe fazer sombra, bem vivo na memória popular. Anos desventurados, aqueles. Começara com a rendição de Breda aos espanhóis de Flandres, autorizada por ele nos primeiros dias de governo. Logo depois, a guerra entre a Suécia e a Polónia provocara a quase paralisia do comércio no Mar Báltico. Como se não bastasse, os corsários de Dunquerque, a serviço dos espanhóis, estavam a capturar navios mercantes holandeses no Canal da Mancha. Pior. Os Habsburgo da Áustria, aparentados e aliados dos reis de Espanha, haviam estendido seu poder até o norte da Alemanha, adentrado pela floresta de Veluwe, ultrapassado a fronteira da província de Gelderland e até bloqueado aos holandeses o tráfego pelo Rio Reno. Para um país que vivia essencialmente do comércio, era uma calamidade. Desde que sacudira o jugo espanhol e declarara independência, a República das Províncias Unidas raramente se vira em situação tão embaraçosa.
Ainda assim, disse o Stadhouder num misto de bonomia e contrariedade, já que um elogio vazio não lhe custava absolutamente nada, este apresamento que fizestes... Chegou a boa hora. Foi apenas um... Pelos ossos do meu pai... Uma espécie de resgate, Alteza, emendou o homenzinho com humildade. A única chance que eu tinha de me redimir da perda da Bahia. Sim, eu sei. Frederik levantou-se da escrivaninha, cruzou os braços às costas e caminhou solenemente até uma das janelas do seu luxuoso salão de trabalho, nas ampliações do antiquíssimo castelo dos condes da Holanda.
Filho de Louise de Coligny, a quarta e última esposa de Guilherme, o Pai da Pátria, herdara da mãe francesa a delicadeza dos traços e, não se sabe de quem, certos gestos, por assim dizer, de um salta-pocinhas. Amante das artes, culto e refinado, usava os cabelos prateados quase à altura dos ombros, bigodes finos de pontas ligeiramente voltadas para cima e uma originalíssima pequena porção de barba, estreita e recta, descendo-lhe do centro do lábio inferior até o queixo. Com precauções um tanto descabidas, o príncipe afastou ligeiramente a cortina de uma das janelas da sacada, instalada na última reforma daquela ala dd Binnenhof. Do outro lado do Hofvijver, o lago transformado em fosso para proteger o castelo, observou uma vez mais a multidão silenciosa. Parecia que todo o populacho de Haia, a capital da República, ali se postara à espera de alguma novidade. Foste tu que trouxeste essas gentes todas para cá, senhor Heyn? De maneira alguma, Alteza, apressou-se em se desculpar o outro, um tanto constrangido. Apenas... Pelo Deus que nos rege... Quando recebi a convocação de Vossa Alteza, comentei numa taverna. Orgulho, com certeza. Um tantinho de genebra, também. E hoje, quando cá cheguei para atender ao vosso honroso chamado... Compreendo, aquiesceu o Stadhouder, afastando-se discretamente do seu posto de observação e caminhando em direcção ao visitante. Pelo que soube, no Brasil tinhas patente de almirante da WIC. Não era assim?» In Aydano Roriz, A Guerra dos Hereges, Editora Europa, 2010, ISBN 978-857-960-043-2.

Cortesia de EEuropa/JDACT