sábado, 20 de agosto de 2016

Xeque-mate da Rainha. Elizabeth Fremantle. «Aqui estamos, diz alegremente, estendendo a mão para Meg, embora alegria seja a última coisa que sinta. O rosto de sua enteada está vermelho. A cor realça seus olhos castanhos…»

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1543. Londres
«(…) Huicke entra no quarto. Tem vindo todos os dias esta semana. Latymer se pergunta por que o rei manda um de seus próprios médicos cuidar de um lorde desgraçado do norte como ele. Katherine acha que é um sinal de que foi mesmo perdoado. Mas não faz sentido, e ele conhece o rei o suficiente para suspeitar que haja segundas intenções no gesto, embora não tenha certeza de quais sejam. O médico é uma sombra preta esguia aproximando-se da cama. Meg se retira com outro beijo. Huicke afasta as cobertas, fazendo escapar um fedor rançoso, e começa a apalpar o caroço com dedos de borboleta. Latymer detesta aquelas mãos infantis. Nunca viu Huicke tirar as luvas, que são macias e aveludadas como pele humana. Usa por cima delas um anel incrustado com uma granada do tamanho de um olho. Latymer odeia o homem por causa das luvas, a fraude delas passando-se por mãos, e o modo como o fazem se sentir impuro. Repentes de dor aguda o consomem, tornando sua respiração rápida e superficial. Huicke fareja um frasco de alguma coisa, sua urina, supõe, erguendo-o contra a luz enquanto conversa em voz baixa com Katherine. Ela se anima com a companhia do jovem médico. Pelo menos ele é tolo e efeminado demais para ser uma ameaça, mas Latymer odeia-o com força por sua juventude e sua esperança, não só por suas mãos enluvadas. Deve ser brilhante para estar a serviço do rei ainda tão jovem. O futuro de Huicke está diante dele como um banquete, enquanto o seu está esgotado. Latymer devaneia, vozes sussurradas o preenchem.
Dei-lhe uma coisa nova para a dor, ela diz. Casca de salgueiro-branco e agripalma. A senhora tem o toque de um médico, Huicke responde. Eu não teria pensado em usá-las juntas. Eu me interesso por ervas. Tenho minha própria horta medicinal… Ela pára. Gosto de ver coisas crescerem. E tenho o livro de Bankes. Herbário de Bankes, é o melhor de todos. Bem, eu acho, mas é bastante desprezado pelos académicos. Imagino que considerem um livro para mulheres. É verdade, diz ele. E é precisamente isso que o torna interessante para mim. Em minha opinião, as mulheres sabem mais sobre cura que todos os acadêmicos em Oxford e Cambridge juntos, mas geralmente guardo isso para mim. Latymer sente uma dor súbita atravessá-lo, mais aguda desta vez, dobrando-o ao meio. Ouve um grito e mal reconhece como seu. Está morrendo de culpa. O espasmo torna-se afinal uma dor persistente. Huicke se foi e ele supõe que estivera dormindo. É acometido então de um repentino senso de urgência. Precisa pedir a ela antes que a voz o abandone, mas como dizê-lo? Segura o punho de Katherine, surpreso com sua própria força, e ordena: dê-me mais tintura. Não posso, John, ela responde. Já lhe dei o máximo possível. Mais poderia… As palavras ficam suspensas. Ele a agarra com mais força, grunhindo. É o que quero, Kit. Ela olha para ele, directamente, sem dizer nada.
Ele pensa poder ver seus pensamentos como as engrenagens de um relógio, perguntando-se, ele imagina, onde na Bíblia encontrar justificativa para aquilo; como reconciliar sua alma com tal acto; aquilo poderia levá-la à prisão; fosse ele um faisão atacado por um cão, não haveria problema em torcer seu pescoço por piedade. O que você está me pedindo condenará nós dois, ela sussurra. Eu sei, ele responde.

Palácio de Whitehall. Londres. Março de 1543
Uma neve tardia caiu e as torres cobertas de branco do Palácio de Whitehall desaparecem contra o céu. O pátio está forrado de neve suja semiderretida até a altura dos calcanhares e, apesar da serragem que foi espalhada, formando um caminho improvisado sobre as pedras, Katherine sente o frio húmido encharcar os sapatos, a barra molhada de suas saias batendo gelada nos tornozelos. Ela está tiritando; joga a capa espessa em volta do corpo enquanto o ajudante da cavalariça ajuda Meg a descer. Aqui estamos, diz alegremente, estendendo a mão para Meg, embora alegria seja a última coisa que sinta. O rosto de sua enteada está vermelho. A cor realça seus olhos castanhos, dando-lhes uma aparência fresca e límpida. Ela tem o olhar doce e ligeiramente assustado de um animal silvestre, mas Katherine consegue perceber o esforço que faz para segurar mais lágrimas. Reagiu mal à morte do pai. Venha, diz Katherine, vamos para dentro. Dois ajudantes tiram as selas dos cavalos e escovam-nos energicamente com punhados de palha, trocando gracejos. O cavalo cinza de Katherine, Pewter, mexe a cabeça, fazendo tilintar o arreio, e relincha, lançando nuvens de vapor no ar como um dragão. Calma, garoto, diz Katherine, que segura a rédea e acaricia o focinho aveludado, deixando-o fungar em seu pescoço. Ele precisa beber alguma coisa, diz ao ajudante, entregando-lhe as rédeas. Seu nome é Rafe, não é? Sim, senhora, ele responde. Lembro-me de Pewter. Fiz uma compressa nele uma vez. Seu rosto fica vermelho de vergonha. Sim, ele estava mancando. Você fez um óptimo trabalho. O rosto do rapaz se abre em um sorriso. Obrigado, senhora. Sou eu quem deveria agradecer, diz ela, enquanto Rafe leva Pewter para o estábulo. Ela segura a mão da enteada e dirige-se à porta principal. Está entorpecida de tristeza há semanas e preferiria não ter que ir à corte tão pouco tempo depois da morte do marido, mas foi convocada, Meg também, e uma ordem vinda da filha do rei não é algo que se possa recusar. Além disso, Katherine gosta de Lady Mary, conheceram-se quando crianças, até tiveram o mesmo tutor quando a mãe de Katherine servia a mãe de Mary, a rainha Catherine de Aragón, antes de o rei mandá-la embora. As coisas eram mais simples naquela época, antes do cisma, quando tudo ficou de ponta-cabeça, o país fendido em dois. Mas não vão ordenar que fique na corte ainda. Mary respeitará seu período de luto». In Elizabeth Fremantle, Xeque-mate da Rainha, 2013, Editora Paralela, Editora Schwarcz, 2016, ISBN 978-858-439-003-8.

Cortesia de EParalele/ESchwarcz/JDACT