domingo, 21 de agosto de 2016

O Abraço de Némesis. Steven Saylor. «Está bem, está bem!, murmurei. Betesda voltou-se agressivamente, afastando-se de mim, puxando o lençol e expondo-me ao ar desagradavelmente frio de Setembro. O gatinho caiu na minha direcção»

jdact e wikipedia

«No sul de Roma no Golfo de Putéolos fica situada a esplêndida villa de Marco Licínio Crasso, o mais rico cidadão romano. Quando o supervisor da propriedade é assassinado, Crasso conclui que a sua morte foi arquitectada por dois escravos, pertencentes ao Movimento de Libertação de Esparta. Crasso, furioso, estabelece o prazo de cinco dias para se entregarem ou punirá os restantes noventa e nove escravos. Gordiano, o Descobridor, é chamado para averiguar onde poderão estar os escravos fugitivos. Confrontado com uma casa repleta de segredos e mistérios, a verdade só emerge lentamente..., e à medida que a hora do massacre se aproxima, Gordiano apercebe-se que o labiríntico caminho em que se meteu só o poderá conduzir à sua própria destruição. Apesar das suas excelentes qualidades da sua honestidade e da sua devoção, da sua esperteza, da sua inquietante agilidade, Eco não estava preparado para atender à porta. Eco era mudo. Mas não era nem nunca fora surdo. Na realidade, eu não conhecia ninguém com uma tão nítida capacidade auditiva. Também tinha o sono leve, um hábito que adquirira nos terríveis dias de vigília da sua infância, antes de a mãe o ter abandonado e de eu o ter encontrado na rua e o ter finalmente adoptado. Não é de espantar que tivesse sido Eco a ouvir bater à porta na segunda hora depois do cair da noite, quando já todos nos tínhamos ido deitar. Foi Eco quem recebeu o meu visitante nocturno, mas não pôde mandá-lo embora, por não ser capaz de o enxotar como um agricultor enxota um ganso errante da porta de casa. Assim sendo, que outra coisa poderia Eco ter feito? Poderia ter acordado Belbo, o meu homem de mão. Arrastando o seu fedor a alho, e esfregando estupidamente os olhos por causa do sono, Belbo poderia ter intimidado o meu visitante, mas duvido de que se tivesse visto livre dele; o estrangeiro era persistente, e duas vezes mais inteligente do que Belbo era forte. Assim, Eco fez o que tinha de fazer; indicou ao meu visitante para que esperasse na entrada e foi bater suavemente à porta do meu quarto. Não tendo conseguido acordar-me com essas pancadinhas suaves doses generosas da sopa de peixe e cevada de Betesda, regadas com vinho branco, tinham-me feito adormecer rapidamente, Eco abriu cautelosamente a porta, entrou no quarto pé ante pé, e abanou-me o ombro. Ao meu lado, Betesda agitou-se e suspirou. Uma massa de cabelo preto viera cobrir-me o rosto e o pescoço. Os fios mais pequenos faziam-me cócegas no nariz e nos lábios. O odor da sua hena perfumada fez-me sentir um frêmito erótico abaixo da cintura. Voltei-me para ela, formando um beijo com os lábios, e correndo-lhe as mãos pelo corpo. Como era possível, perguntei a mim próprio, que ela conseguisse passar por cima de mim e vir tocar-me com a mão no ombro? Eco nunca gostara de fazer o género de ruídos semi-animalescos que emitem aqueles que não conseguem falar, pois achava que isso era um comportamento degradante e embaraçoso. Preferia manter um austero silêncio, como a Esfinge, e deixar que as suas mãos falassem por si. Agarrou-me no ombro com mais força e abanou-o com um pouco mais de firmeza. Nessa altura, eu reconheci o seu toque, com a certeza com que se reconhece uma voz que nos é familiar. Até consegui compreender o que ele estava a dizer. Alguém bateu à porta? murmurei, limpando a garganta e mantendo os olhos fechados durante mais um momento. Eco deu-me uma ligeira pancada de assentimento no ombro, que era a sua maneira de dizer sim na escuridão. Eu aninhei-me de encontro a Betesda, que tinha voltado as costas à perturbação. Toquei-lhe no ombro com os lábios. Ela expirou, fazendo um ruído algures entre um arrulho e um suspiro. Em todas as minhas viagens, desde os Pilares de Hércules até à fronteira com os Partos, nunca encontrara uma mulher que reagisse como ela. Como uma lira requintadamente construída, pensei, perfeitamente afinada e polida, que se vai aperfeiçoando com o passar dos anos; que homem de sorte és tu, Gordiano, o Descobridor, que descoberta fizeste naquele mercado de escravos de Alexandria, há já quinze anos. Algures por baixo dos lençóis, o gatinho ronronava. Egípcia até às entranhas, Betesda sempre tivera gatos, e até os convidava para a nossa cama. Este atravessava o vale que se formara entre os nossos dois corpos, passando de uma coxa para outra. Até agora, mantivera as unhas encolhidas; ainda bem porque, nos últimos instantes, a mais vulnerável das minhas partes tornara-se conspicuamente mais vulnerável, e o gatinho parecia estar a dirigir-se exactamente para aí, talvez pensando que se tratava de uma serpente com que poderia brincar. Enrosquei-me contra Betesda, para me proteger. Ela suspirou. Eu lembrei-me de uma noite de chuva, há pelo menos dez anos, antes de Eco vir viver connosco o gato era diferente, a cama era outra, mas a casa era a mesma, era esta casa que o meu pai me deixou, e nós os dois, Betesda e eu, éramos mais jovens, mas não muito diferentes do que somos hoje. Passei pelo sono, e quase sonhei. Voltei a sentir as pancadas decididas no ombro. Duas pancadas eram a maneira de Eco dizer não, como se estivesse a abanar a cabeça. Não, não queria ou não podia mandar embora o meu visitante. Voltou a dar-me duas pancadas decididas no ombro. Está bem, está bem!, murmurei. Betesda voltou-se agressivamente, afastando-se de mim, puxando o lençol e expondo-me ao ar desagradavelmente frio de Setembro. O gatinho caiu na minha direcção, pondo as unhas de fora para se reequilibrar. Bolas de Numa!, lancei eu, embora não tenha sido o fabuloso rei Numa a ser magoado por uma unha pequenina. Eco ignorou discretamente o meu gemido de dor. Betesda riu-se sonolentamente na escuridão. Eu saí da cama e mexi-me desajeitadamente à procura da túnica. Eco já a tinha na mão, preparada para eu me meter dentro dela. Espero que seja alguma coisa importante! disse eu. Era importante, e nem eu tive maneira de perceber, nessa noite e durante algum tempo, quão importante era. Se o emissário que esperava no vestíbulo de minha casa tivesse sido claro, se tivesse tido a franqueza de dizer por que tinha vindo e quem o enviara, eu ter-me-ia vergado aos seus desejos sem a menor hesitação. Casos e clientes como aquele que me caiu no colo naquela noite são poucos e esparsos; eu teria lutado pela possibilidade de conseguir aquele trabalho. Em vez disso, o homem, que se apresentou concisamente como Marco Múmio, afectou um ar de portentoso secretismo e tratou-me com uma desconfiança que se aproximava do desprezo». In Steven Saylor, O Abraço de Némesis, Um Mistério na Roma Antiga, 1992, Quetzal Editores, Lisboa, 2003, ISBN 978-972-564-434-4.

Cortesia de QuetzalE/JDACT