segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Notas sobre a Identificação Social Feminina nos finais da Idade Média. Iria Gonçalves. «… no Alentejo um pouco mais de metade dos registos, 50,2%, mostrou mulheres que eram conhecidas por si próprias dentro da sociedade local»


Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Os problemas relacionados com a identificação e a antroponímia femininas não são fáceis de resolver. Já vários investigadores que se interessaram pelo assunto foram confrontados com o facto e reconheceram as dificuldades. Com efeito, mercê do papel subalterno das mulheres na sociedade medieval, do seu acantonamento, tanto quanto possível, dentro da esfera dos assuntos privados, são poucas aquelas que nos chegam iluminadas pela luz da documentação. Muito poucas mesmo, ao menos se as compararmos com o número de homens referidos nessa mesma documentação. É preciso, por isso, para abordar a antroponímia feminina, procurar com cuidado as fontes a utilizar, tentando encontrar aquelas onde a presença das mulheres se tornava indispensável ou, ao menos, conveniente. De entre essas fontes, aquelas que respeitam à propriedade, aos bens da família, contam-se como das mais ricas.
Com efeito, na legislação medieval portuguesa, como, aliás, na de todos os países hispânicos da época, o acesso aos bens familiares era igual para homens e mulheres, como as heranças eram recebidas tanto do lado paterno como do lado materno. Assim, tratando-se de assuntos relativos à propriedade, todos tinham que ser lembrados. Do mesmo modo, nos contratos de locação que regulavam as relações entre o proprietário e o foreiro, a regra, e sobretudo quando se tratava de prédios rurais, era que fosse o casal, marido e mulher identificados pelos respectivos nomes, a assumir, em pé de igualdade, os deveres inerentes aos termos do contrato. Falecido um deles, o cônjuge supérstite continuava, quer tivesse ou não, junto de si, filhos com idade suficiente para lhe darem uma ajuda eficaz, a ser responsável por todas as obrigações a que ambos se tinham comprometido. Fosse esse cônjuge o marido ou a mulher. A documentação reflecte isso mesmo.
Para a presente análise escolhi duas regiões do sul de Portugal, provenientes das quais existem, datadas das primeiras décadas do século XVI, alguns tombos de propriedades onde as referências a mulheres, embora não abundantes, permitem, no entanto, algumas considerações sobre bases que me parecem credíveis. São essas regiões o Norte alentejano interior e o Algarve; são esses tombos aqueles que nos foram facultados pela Ordem de Cristo, entre 1505-1509, respeitantes ao Alentejo e pelo mesma Ordem, naquela última data, mas sobretudo pela de Santiago em 1517 e 1518, para o Algarve. Não procurei apurar, para este trabalho, o número de indivíduos documentados, mas o de registos. É sabido como a antroponímia medieval podia ser fluida e a mesma pessoa podia ser nomeada de formas diferentes, ainda mesmo quando o seu nome estava a ser registado pelo mesmo escriba. Deste modo parece-me mais correcto tomar em consideração todas as formas e sempre que elas ocorrem, até porque o meu intuito, de momento, não é apurar dados antroponímicos, mas antes formas de identificação.
Mesmo assim a colheita não foi muito abundante, pois somou apenas 501 registos, quase equitativamente divididos entre ambas as regiões: 249 para o espaço alentejano, 252 para o algarvio. Penso, no entanto, que a homogeneidade das fontes, o breve período cronológico por elas abrangido e o não excessivo alargamento dos espaços, que, porém, quando se trata destas matérias e quando as mulheres são o objecto de análise raramente podem ser muito restritos, lhes conferirá a necessária credibilidade. De acordo com a maior ou menor visibilidade que cada mulher conseguia dentro dos âmbitos sociais em que se movimentava, ela podia ser designada e portanto conhecida pelo seu nome a que poderíamos chamar completo, um nome próprio seguido por um outro elemento constituído, este, pelo patronímico ou por um apodo, ou abreviado, apenas, embora raramente, o nome próprio, com mais frequência um apodo. Por vezes, apensava-se-lhe uma expressão clarificadora da identidade, uma adjunção nominal de qualquer tipo, usada apenas quando necessário ou oportuno, eventualmente substituída por outra em diferente ocasião. Como podia acontecer, também, com qualquer homem. Mas se para estes era escolhida, de preferência, uma expressão que remetia para a respectiva actividade profissional, para o seu estatuto social ou para qualquer cargo por ele exercido, no caso das mulheres ela lembrava, na grande maioria das vezes, uma relação familiar. Quer dizer, estas apresentavam-se geralmente em público e assim nos são veiculadas pela documentação, com o seu nome apoiado no de uma outra pessoa, quase sempre uma figura masculina, quase sempre um homem da família. Ela precisava, para que a sociedade a pudesse identificar cabalmente, de ser inserida num grupo de parentesco, o que se realizava com o apoio de um dos seus membros masculinos. Mas ela podia mesmo ser de todo ignorada pela comunidade, conhecendo esta a sua existência apenas na medida em que lhe sabia uma qualquer ligação familiar, mas ignorando-a como indivíduo autónomo. Essa ignorância podia ser tão profunda que não se lhe conhecesse nem nome nem família.
Realidades que outros autores também já deixaram registadas. Nestes casos a identidade era expressa lembrando apenas a sua relação com a figura de apoio: a mulher de x, a filha de y, a irmã de z, por exemplo, quando não apenas uma característica ou uma circunstância que lhe poderia ser aplicada. Claro que também a alguns homens acontecia, num caso ou outro, ser designados desta maneira e no acervo documental que estou a analisar ocorrem alguns exemplos. Mas eles são sempre residuais. Esta forma de designação só se torna expressiva quando se trata de mulheres. É esta uma realidade que todos os medievalistas já tiveram oportunidade de constatar. Mas, tanto quanto sei, ainda nunca foi quantificada nem explorada. Tentarei aqui lançar alguma luz, fraca que seja, sobre o assunto.
Escolhi para objecto de análise, como já acima ficou referido, dois espaços do Sul de Portugal e de imediato as diferenças surgiram, muito nítidas: no Alentejo um pouco mais de metade dos registos, 50,2%, mostrou mulheres que eram conhecidas por si próprias dentro da sociedade local, que não precisavam apoiar-se em ninguém para que todos pudessem situá-las e assim aceitá-las. No outro extremo da visibilidade somaram um pouco menos de 9% os registos de mulheres cuja identidade era ignorada; pelo contrário, no Algarve, as presenças femininas com autonomia total deixaram-nos apenas 36,9% dos registos, enquanto aquelas que, por assim dizer, se escondiam dos olhos do público ultrapassavam aquele valor, subindo acima dos 38%.
Desde logo estas realidades tão diferentes nos sugerem ambientes sociais com olhares distintos diante da presença feminina: um deles em que as mulheres desfrutam de grande visibilidade como indivíduos autónomos, embora em muitos casos o apoio de uma figura tutelar possa considerar-se indispensável, o que parece indicar uma actividade social desenvolvida pelas mulheres em variados aspectos do quotidiano, eventualmente revestindo formas positivas e negativas, mas todas elas obrigando a comunidade a reconhecê-las como seus membros; um outro em as mulheres se escondiam, mostrando-se ao público apenas de forma nebulosa e como integrantes de um grupo familiar, deixando apenas a um pequeno número delas, talvez as mais desmunidas e que precisavam sair de casa para granjear o sustento diário e as mais proeminentes, cuja identidade seria difícil de camuflar, o cuidado de contactar mais directamente com a comunidade. Parece, assim, que essa comunidade seria mais fechada em relação às mulheres, limitando a sua actividade fora do âmbito doméstico, restringindo ao essencial o seu aparecimento em público. Inevitavelmente, penso, somos levados a considerar o maior peso que uma mais prolongada estadia muçulmana nesta região, com activos grupos de mouriscos que a prolongaram no tempo, aqui teria deixado. De entre as mulheres cuja identidade era conhecida, ela era-o de forma correcta, em ambos os espaços, na maior parte das vezes». In Iria Gonçalves, Notas sobre a Identificação Social Feminina nos finais da Idade Média, Instituto de Estudos Medievais, IEM, Ano 4, Nº 5, 2008, ISSN 1646-740X.

Cortesia de IEM/JDACT