segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Maya. Jostein Gaarder. «Sentado à escrivaninha na minha casa de Croydon, olho para um cartão-postal amassado, datado de Barcelona, 26 de Maio de 1992. O postal mostra uma foto da Sagrada Família, a catedral inacabada de Gaudí»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Jamais vou esquecer aquela húmida e tempestuosa manhã de Janeiro de 1998 em que Frank aterrou em Taveuni, uma pequena ilha do arquipélago Fiji. Trovejara a noite inteira, e, antes do café da manhã, os donos do Maravu Plantation Resort tiveram de cuidar do conserto de um problema na instalação eléctrica. Como a câmara frigorífica corria perigo, ofereci-me para ir de carro a Matei buscar os novos hóspedes, que chegariam à linha de mudança de data no voo da manhã, vindos de Nadi. Angela e Jochen Kiess aceitaram agradecidos a minha ajuda, e Jochen me elogiou dizendo que numa situação crítica sempre se podia contar com um britânico. O sério norueguês chamou minha atenção assim que entrou no jipe em companhia de um casal de americanos. Tinha cerca de quarenta anos, estatura mediana e cabelos louros, como a maioria dos escandinavos, mas olhos castanhos e um semblante um tanto abatido. Apresentou-se como Frank Andersen, e lembro que cheguei a pensar que talvez pertencesse àquela rara categoria de seres humanos que na vida toda se sentem oprimidos na Terra pela brevidade da existência e pela falta de espírito. Essa suposição se dissipou quando, naquela mesma noite, soube que ele era biólogo evolutivo. Para quem já tem certa predisposição à melancolia, a biologia evolutiva deve ser uma ciência bem pouco reconfortante.
Sentado à escrivaninha na minha casa de Croydon, olho para um cartão-postal amassado, datado de Barcelona, 26 de Maio de 1992. O postal mostra uma foto da Sagrada Família, a catedral inacabada de Gaudí, e traz no verso: Meu querido Frank, chegarei a Oslo terça, mas não vou sozinha. Tudo vai ser diferente a partir de agora, você tem que estar preparado. Não me chame! Quero sentir seu corpo antes que haja palavras entre nós. Lembra da bebida mágica? Logo você vai tomar algumas gotas. Às vezes tenho medo. Será que eu e você podemos fazer alguma coisa para aceitar que a vida seja tão breve? Sempre sua, Vera.
Frank me mostrou de repente o postal com aquelas torres altas uma tarde em que tomávamos cerveja no bar do Maravu. Eu tinha lhe contado que perdera Sheila alguns anos antes, e Frank continuou ali, sentado, por um bom momento, até que com um gesto brusco tirou a carteira do bolso e puxou um cartão-postal dobrado, que imediatamente desdobrou e pôs em cima da mesa. O texto estava escrito em espanhol, mas o norueguês traduziu palavra por palavra. Parecia precisar da minha ajuda para assimilar o que acabava de traduzir. Quem é Vera?, perguntei. Vocês eram casados? Aquiesceu com um movimento de cabeça. A gente se conheceu na Espanha, no fim dos anos 80. Passados alguns meses, já vivíamos juntos em Oslo. E o relacionamento terminou? Negou com a cabeça, mas disse: ela voltou a Barcelona dez anos depois. Foi no Outono passado. Vera não é um nome tipicamente espanhol, objectei. Nem catalão. É o nome de um povoado da Andaluzia, explicou. Segundo sua família, ela foi concebida lá. Examinei o postal. Ela foi a Barcelona visitar a família? De novo negou com a cabeça. Foi apresentar a sua tese de doutoramento. Não diga. Sobre as migrações da espécie humana a partir da África. Vera é paleontóloga. E quem ela levou a Oslo? Frank olhou para o fundo do copo. Sonja, disse sem mais nem menos. Sonja? Nossa filha, Sonja. Quer dizer que vocês têm uma filha? Apontou para o postal. Foi assim que fiquei sabendo que Vera estava grávida. De você? Estremeceu. A menina era minha filha, sim.
Compreendi que alguma coisa devia ter ido mal e tentei adivinhar o que poderia ter acontecido. Mas eu tinha outro ponto de referência e falei: e a tal bebida mágica, da qual você ia provar algumas gotas? Soa bastante tentador. Hesitou. Depois sorriu com certa timidez antes de negar a importância daquilo. Nada, coisas da Vera. Chamei o garçom e pedi outra cerveja. Frank mal havia tocado na dele. Conte, pedi. E Frank contou: Tinhamos em comum a mesma sede intransigente de vida. Ou será que devo chamar isso de ânsia de eternidade? Não sei se compreende o que quero dizer. Claro que compreendia. Senti o coração bater no peito e pensei que devia me acalmar. Ergui a palma da mão para lhe dar a entender que não precisava me explicar o que era a ânsia de eternidade. Ele entendeu. Aparentemente, não era a primeira vez que Frank tentava explicar o que queria dizer com aquela história de ânsia de eternidade. Acrescentou: nunca tinha encontrado numa mulher essa necessidade irresistível. Vera era uma pessoa calorosa e realista. Mas também vivia metida no seu mundo, melhor dizendo, no mundo da paleontologia. Era das que se orientam mais verticalmente do que horizontalmente. Como? Não lhe interessava o que acontece na rua ou no espelho. Era bonita, muito bonita. Mas nunca a vi folheando uma revista feminina. Ele continuava sentado, mexendo a cerveja com o dedo. Contou-me que, quando jovem, tinha tido muitas fantasias sobre uma bebida mágica que lhe concederia a vida eterna quando tivesse bebido a metade da dose. Assim, disporia de um tempo ilimitado para encontrar o homem a quem daria a outra metade e poderia ter certeza que um dia encontraria esse homem da sua vida, se não na semana seguinte, pelo menos depois de cem ou mil anos. Apontei para o postal. Frank sorriu com resignação: quando voltou de Barcelona, naquele Verão de 92, declarou solenemente que, de uma maneira ou de outra, tínhamos tomado algumas gotas da bebida mágica com que sonhava desde pequena. Pensava no filho que ia nascer. Algo de nós dois já tinha começado a viver sua própria vida, dizia ela. Algo que talvez desse fruto durante milhares de anos. A posteridade, você quer dizer? Sim, era nisso que ela pensava. De facto, todos os seres humanos da Terra descendem de uma mulher que viveu na África faz algumas centenas de milhares de anos. Tomou um gole de cerveja, e como não disse mais nada por um bom tempo, tentei fazê-lo prosseguir. Continue, se quiser, falei. Olhou-me nos olhos. Foi como se, por um instante, avaliasse se eu era ou não um homem em quem poderia confiar. Continuou: quando chegou a Oslo, me garantiu que não teria hesitado em compartilhar comigo a bebida mágica, se a tivesse. Obviamente não me deu nenhuma bebida mágica, mas, de todo modo, eu vivi aquilo como um grande momento. Considerei uma coisa sublime o facto de que ousasse fazer uma escolha irreversível. Com um gesto de cabeça, declarei-me de acordo. Já não é comum as pessoas se prometerem fidelidade eterna. Ficam juntas no que é bom, mas logo que vem o que é ruim, muitas simplesmente se separam». In Jostein Gaarder, Maya, Editorial Presença, colecção Grandes Narrativas, 2001, ISBN 978-972-232-737-4

Cortesia de EPresença/JDACT