domingo, 7 de agosto de 2016

A Catedral do Mar. Ildefonso Falcones. «… fermentar nas barricas e o mosto da uva já estava armazenado para destilar o bagaço durante os entediantes dias de Inverno, os camponeses celebraram as festas de Setembro»

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«Uma catedral construída pelo povo e para o povo na Barcelona medieval é o cenário de uma apaixonante história de intriga, violência e paixão. Século XIV. A cidade de Barcelona encontra-se no auge da prosperidade; cresceu até ao humilde bairro dos pescadores, cujos habitantes decidem construir, com o dinheiro de uns e o esforço de outros, o maior templo mariano conhecido: Santa Maria do Mar. Uma construção paralela à desditosa história de Arnau, um servo da terra que foge dos abusos do seu senhor feudal e que se refugia em Barcelona. Daqui se torna cidadão e, assim, num homem livre. O jovem Arnau trabalha como estivador, palafreneiro, soldado e cambista. Uma vida extenuante, sempre à sombra da Catedral do Mar, que o tirará da condição miserável de fugitivo para lhe dar nobreza e riqueza. Mas com esta posição privilegiada chega também a inveja dos seus pares, que tramam uma sórdida conspiração que põe a sua vida nas mãos da Inquisição (maldita)... Lealdade e vingança, traição e amor, guerra e peste, num mundo marcado pela intolerância religiosa, a ambição material e a segregação social. Um romance absorvente, mas também uma fascinante e ambiciosa recriação das luzes e sombras do mundo feudal. Das primeiras memórias de infância, em que encontrou refúgio na Catedral da cidade, à decisão de escrever um romance que revelasse a verdadeira origem daquele lugar de culto, o autor dedicou-se a uma intensa investigação sobre a sociedade catalã do século XIV. Da prosperidade da cidade às gentes que ali viviam e cruzavam, dos escravos aos artesãos, dos judeus à condição da mulher, o autor traça um fabuloso e vivo quadro da Barcelona medieval».

Servos da terra. Ano de 1320. Quinta de Bernat Estanyol Navarcles. Principado da Catalunha
«Num momento em que ninguém parecia prestar-lhe atenção, Bernat ergueu o olhar para olímpido céu azul. O sol ténue de finais de Setembro acariciava os rostos dos seus convidados. Investira tantas horas e esforços na preparação daquela festa, que apenas um tempo inclemente poderia deslustrá-la. Bernat sorriu para o céu outonal e, quando baixou o olhar, o sorriso acentuou-se, ao escutar o alvoroço que reinava no terreiro empedrado que se abria em frente à porta dos currais, no piso térreo da casa rural. A trintena de convidados estava exultante: a vindima desse ano fora esplêndida. Todos, homens, mulheres e crianças, tinham trabalhado de sol a sol, primeiro apanhando as uvas e depois pisando-as, sem se permitirem um dia de descanso. Só quando o vinho estava já pronto para fermentar nas barricas e o mosto da uva já estava armazenado para destilar o bagaço durante os entediantes dias de Inverno, os camponeses celebraram as festas de Setembro. E Bernat Estanyol decidira contrair matrimónio durante esses dias. Bernat observou os seus convidados. Tiveram de se levantar de madrugada para percorrerem a pé a distância, em alguns casos muito grande, que separava as suas quintas da dos Estanyol. Conversavam animadamente, talvez acerca da boda, talvez acerca da colheita, talvez acerca de ambas as coisas; alguns, como o grupo em que se incluíam os seus primos Estanyol e a família Puig, parentes do cunhado, soltavam gargalhadas e olhavam-no com picardia. Bernat notou que estava a corar e eludiu a insinuação; não queria sequer imaginar a causa daqueles risos. Espalhados pelo terreiro da casa rural, distinguiu os Fontaníes, os Vila, os Joaniquet e, evidentemente, os familiares da noiva: os Esteve.
Bernat olhou discretamente para o sogro, Pere Esteve, que não fazia outra coisa senão passear a sua imensa barriga, sorrindo para uns e dirigindo-se de imediato para outros. Pere voltou o seu rosto alegre para ele, e Bernat viu-se obrigado a saudá-lo pela enésima vez. Depois, procurou com o olhar os cunhados e encontrou-os misturados com os outros convidados. Desde o primeiro momento que o tinham tratado com algum receio, apesar do muito que se tinha esforçado por conquistá-los. Bernat voltou a erguer o olhar para o céu. A colheita e o tempo tinham decidido acompanhá-lo na sua festa. Olhou para a casa e depois de novo para as pessoas, e cerrou ligeiramente os lábios. De repente, apesar da agitação reinante, sentiu-se só. Apenas passara um ano desde que o pai falecera; quanto a Guiamona, sua irmã, que se instalara em Barcelona depois de casar, não tinha dado resposta aos recados que lhe tinha enviado, apesar do muito que teria gostado de revê-la. Era a única pessoa de família directa que lhe restava, desde a morte do pai... Uma morte que tinha transformado a casa dos Estanyol no centro de interesse de toda a região: casamenteiras e pais com filhas nubentes tinham desfilado por aquela casa incessantemente. Antes, ninguém os vinha visitar; mas a morte do pai, a quem os acessos de rebeldia tinham feito merecer o cognome de o louco Estanyol, tinha devolvido as esperanças àqueles que desejavam casar uma filha com o lavrador mais rico da região. Já és suficientemente adulto para casar, diziam-lhe. Quantos anos tens? Vinte e sete, creio eu, respondia. Com essa idade, já quase devias ter netos, recriminavam-no. Que vais fazer sozinho nesta casa? Precisas de uma mulher.
Bernat recebia estes conselhos com paciência, sabendo que seriam inexoravelmente seguidos pela menção de uma candidata cujas virtudes superavam a força do touro e a beleza do mais incrível pôr do Sol. O assunto não lhe era desconhecido. Já o louco Estanyol, viúvo desde que nascera Guiamona, tinha tentado casá-lo, mas todos os pais de filhas casadoiras tinham saído da casa lançando imprecações: ninguém conseguia fazer frente às exigências do louco Estanyol quanto ao dote que a nora deveria trazer. Assim, o interesse por Bernat foi decaindo. Com a idade, o ancião piorou, e os seus desvarios de rebeldia foram-se tornando delirantes. Bernat dedicou-se ao cuidado das terras e do pai e, de repente, aos vinte e sete anos, viu-se só e assediado. No entanto, a primeira visita que Bernat recebeu, quando ainda nem tinha sido enterrado o defunto, foi a do aguazil do senhor de Navarcles, seu senhor feudal. Quanta razão tu tinhas, pai!, pensou Bernat ao ver chegar o aguazil e vários soldados a cavalo. Quando eu morrer, repetira-lhe o velho até à exaustão nos momentos em que recuperava a mansidão, eles hão-de vir; nessa altura, terás de lhes mostrar o testamento. E apontava com um gesto para a pedra sob a qual, envolto em couro, se encontrava o documento que recolhia as últimas vontades do louco Estanyol.
Porquê, pai?, perguntara Bernat da primeira vez que o pai lhe fizera a esta advertência. Como muito bem sabes, respondera-lhe o velho, possuímos estas terras em enfiteuse, mas eu sou viúvo, e se não tivesse feito testamento, por minha morte o senhor feudal teria direito a ficar com metade de todos os nossos móveis e animais. Chama-se a esse direito intestia; há muitos outros a favor dos senhores, e deves conhecê-los a todos. Eles virão, Bernat; virão para levarem o que é nosso, e só se lhes mostrares o testamento poderás livrar-te deles. E se mo tiram?, perguntara Bernat. Bem sabes como eles são... Mesmo que o fizessem, está registado em livros. A ira do aguazil e do seu senhor correu pela região, e tornou ainda mais atractiva a situação do órfão, herdeiro de todos os bens do louco. Bernat lembrava-se bem da visita que lhe fizera o agora seu sogro, antes do começo da vindima. Cinco soldos, um colchão e uma camisa branca de linho; esse era o dote que oferecia pela sua filha Francesca. Para que quero eu uma camisa branca de linho?, perguntou Bernat sem parar de revolver a palha no piso térreo da casa.  Olha para ali, respondeu Pere Esteve. Apoiando-se sobre a forquilha, Bernat olhou para onde Pere Esteve apontava: para a entrada do estábulo. A forquilha caiu sobre a palha. Em contraluz, surgira Francesca, vestida com a camisa branca de linho... Todo o corpo da rapariga se lhe oferecia através dela!» In Ildefonso Falcones, A Catedral do Mar, 2006, Bertrand Editora, 2009, ISBN 978-972-251-511-5.

Cortesia de BertrandE/JDACT