quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Afeganistão no 31. O Livreiro de Cabul. Asne Seierstad. «Eu não dominava o 'dari', dialecto persa falado pela família Khan, porém vários membros da família sabiam falar inglês. Parece incomum? Sim, de facto é, mas a minha história de Cabul»

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«Sultan Khan tinha prateleiras abarrotadas de obras literárias em muitos idiomas. Havia colectâneas de poesia, livros sobre lendas afegãs, livros de história e romances. Era um bom vendedor; saí de sua livraria após a minha primeira visita carregando sete livros. Sempre dava uma passadinha quando sobrava tempo, para ver livros e conversar mais com o interessante livreiro, um patriota afegão, muitas vezes decepcionado com o seu país. Primeiro os comunistas queimaram meus livros, depois foram pilhados pelos mujahedin, e em seguida queimados de novo pelos talibãs, ele contou. Um dia, ele me convidou para jantar em sua casa. Encontrei a família toda sentada em volta de uma farta refeição posta no chão: uma de suas mulheres, os filhos, as irmãs, o irmão, a mãe e alguns primos. Sultan contava histórias, os filhos riam e contavam piadas. O tom era descontraído, ao contrário das refeições simples com os comandantes nas montanhas. Mas percebi logo que as mulheres pouco falavam. A bela esposa adolescente de Sultan ficava sentada quieta perto da porta com seu bebé sem dizer uma palavra. A outra de suas esposas não estava presente nesta noite. As outras mulheres respondiam a perguntas, recebiam elogios pela comida, mas não tomavam a palavra para iniciar uma conversa. Ao ir embora, disse a mim mesma: isto é o Afeganistão. Seria interessante escrever um livro sobre esta família. No dia seguinte, voltei à livraria de Sultan e contei-lhe sobre a minha ideia. Muito obrigado, foi só o que disse. Mas isto significa que eu teria que morar com vocês. Seja bem-vinda. Tenho que acompanhar vocês, viver como vocês. Junto com você, suas esposas, irmãs e filhos. Seja bem-vinda, ele repetiu.
Mudei-me para a casa deles num dia enevoado de Fevereiro, levando comigo apenas meu computador, blocos de anotações, canetas, um telefone móvel e a roupa do corpo. O resto sumira na viagem, em algum lugar no Uzbequistão. Fui recebida de braços abertos e logo passei a gostar de usar os vestidos afegãos que elas iam me emprestando. Deram-me um tapete no chão ao lado de Leila, a quem foi dada a tarefa de cuidar do meu bem-estar. Você é meu bebé. Vou cuidar de você, assegurou-me a adolescente de 19 anos na primeira noite, erguendo-se num pulo toda vez que eu me levantava. Tudo o que eu pedia tinha que ser atendido, era a ordem de Sultan à família. Quem não a respeitasse seria castigado, o que só fiquei sabendo mais tarde. O dia todo me serviam comida e chá. Aos poucos fui conhecendo a vida da família. Contavam-me as coisas quando tinham vontade, não quando eu perguntava. Não era necessariamente quando eu estava com o bloco de anotações pronto que eles estavam a fim de falar; podia ser durante uma ida ao bazar, num autocarro, ou talvez tarde, da noite, deitados no tapete. A maioria das respostas vinha espontaneamente, respostas a perguntas que eu nem teria tido a imaginação de fazer. Escrevi este livro em forma literária, com base em histórias reais das quais participei ou que me foram contadas pelas pessoas que as viveram. Quando escrevo o que as pessoas pensam ou sentem, baseio-me no que me contaram ou no que pensavam ou sentiam na situação relatada.
Eu não dominava o dari, dialecto persa falado pela família Khan, porém vários membros da família sabiam falar inglês. Parece incomum? Sim, de facto é, mas a minha história de Cabul é a história de uma família afegã incomum. A família de um livreiro é incomum num país onde três quartos da população não sabem ler nem escrever. Sultan falava um inglês culto que adquirira ao ensinar dari a um diplomata. Sua filha mais nova, Leila, dominava perfeitamente o inglês, pois estudara em escolas paquistanesas quando era refugiada. O filho mais velho, Mansur, também falava um inglês perfeito, tendo estudado por vários anos em escolas no Paquistão. Ele me falava de seus medos, de suas paixões e de suas discussões com Deus. Participei da maioria das histórias relatadas neste livro, como as viagens a Peshawar e a Lahore, a peregrinação, as compras no bazar, os casamentos e seus preparativos, o ham-mam, as visitas à escola, ao Ministério da Educação, à delegacia de polícia e à prisão, e a caçada à al-Qaeda. Não participei de outras, como a tragédia de Jamila e as escapadas de Rahimullah, ou quando Mansur encontrava suas amigas na livraria. São histórias que me foram relatadas, como a do pedido de casamento de Sultan a Sonya. A família inteira estava de acordo que eu morasse com eles para escrever um livro. Se houvesse algo que eles não quisessem que eu escrevesse, eles me avisariam. Mesmo assim, optei por manter a família Khan e as outras pessoas que mencionei anónimas. Ninguém me pediu, mas senti que seria mais correcto». In Asne Seierstad, O Livreiro de Cabul, 2002, colecção Grandes Narrativas, Editorial Presença, 2003, ISBN 978-972-233-118-0.

Cortesia de EPresença/JDACT

Psicólogo no 31. O Lamento do Violino. Gabriel Rolón. «Vim do aeroporto directamente para cá. Sinto saudade de minha cama e preciso descansar. Ou você pensa, que comigo nunca acontece nada e sempre estou bem? Nada disso»

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«(…) Entregue ao prazer doloroso, Pablo deixava de ser o intelectual brilhante, o psicanalista agudo que sempre tinha a resposta adequada para cada pergunta e controle sobre todas as suas emoções. Nesse transe, era somente Pablo, um homem que gozava desesperadamente e ao qual só ela era capaz de fazer sentir dessa maneira. Mas, infelizmente, para Alejandra, ele também tinha o poder de descontrolá-la, de levá-la em um instante do prazer à angústia. Quem sabe não fosse outro o motivo pelo qual havia decidido deixar sua casa em Buenos Aires para instalar-se naquela pequena cidade a mais de mil quilómetros de tudo o que até este momento fora sua vida. Talvez fosse somente pela esperança de que cada um desses quilómetros a distanciasse de Pablo, da dor e da degradação de que ele era capaz de causar. Porque, de sua parte, ela também deixava de ser a mulher lúcida e sensível para converter-se em uma fêmea que se submetia totalmente a todos os seus caprichos. E gostava disso. Por isso, nessa noite, quando tudo se concluiu, ficou encolhida como um feto sobre a cama, chorando em silêncio. Porque já não haveria mais Pablo para ela. Sabia que iria sentir saudade de forma exagerada, contudo, sabia também que era impossível tentar o que quer que fosse, qualquer algo a mais. Já haviam se machucado demais. Alejandra não tinha como fazer mais nada para evitar e, imersa no jogo, também o havia ferido. Muito a seu pesar, ainda que por custo de sua inocência, de sua verdade. Estava arrependida, mas agora já era tarde. Por isso, ao partir, não quis acordá-lo. Vestiu-se em silêncio e apenas se atinou a olhá-lo antes de sair do quarto. Lá fora, um insistente chuvisco caía sobre Buenos Aires; relâmpagos iluminavam o céu. Lá dentro, um homem, seu homem, chorava nu e aflito sobre a cama. Quando saiu para a rua, o frio da noite bateu em seu rosto. A chuva fraca era contínua e gelada. Enfiou a chave dentro de um envelope com o nome dele, jogou-o na caixa de correio da entrada e se foi de sua vida para sempre. Faz um ano. O tempo é implacável.
Pablo olha para seu relógio. São nove da noite e, em geral, a essa hora se despede do último de seus pacientes. No entanto, acaba de ver uma pessoa na sala de espera. Olha para ela e sorri, cortês, antes de voltar a entrar em seu consultório. Helena, sua assistente, segue-o. Quem é?, pergunta Pablo. É a garota da qual falei hoje pela manhã. Você me disse para lhe dar um horário para uma consulta. Sim..., mas a esta hora? Ela disse que era urgente. Você já sabe como é..., disse Pablo. Sempre é urgente. Sim, mas ela estava muito angustiada, deu pena. E de mim, você não sente pena? Acabo de chegar de uma viagem de trabalho e hoje é um dia especialmente difícil, fez uma pausa quase imperceptível. Vim do aeroporto directamente para cá. Sinto saudade de minha cama e preciso descansar. Ou você pensa, que comigo nunca acontece nada e sempre estou bem? Nada disso. Se existe alguém que lhe conhece neste mundo, esse alguém sou eu. E mais, às vezes, acredito que você não precisa de uma assistente e que estou aqui porque o que na realidade precisa é ter alguém por perto que ame e cuide de você. Pablo deixa escapar um sorriso. Ah, não..., veja bem, o analista aqui sou eu. Silêncio. E então? O que eu faço com a garota? Se quiser, digo que me enganei ao agendar o horário e a transfiro para outro dia. Não, tudo bem, responde depois de um breve silêncio. Mande-a entrar e pode ir, já é tarde. Eu posso esperar até que a consulta acabe. Não, não tem importância. Além disso, eu sei bem o que é ter vontade de voltar para casa, disse com ironia. Mas, para isso, primeiro é preciso ter um lar para o qual regressar, não?, responde Helena ao mesmo tempo em que lhe dá um beijo. E você, desde que Alejandra foi embora..., interrompe a frase, faz um gesto de negativa com a cabeça e se retira.
Ele a vê partir e sorri. Se há alguém que pode lhe dizer qualquer coisa, é Helena. Porque Helena é muito mais que sua assistente. É sua amiga desde a época de escola no secundário. Muito antes que ele se convertesse em um renomado psicanalista. Desde aquela época, na qual o chamavam Loiro e não Doutor. O apelido de loiro nada tinha a ver com seu aspecto, Pablo era moreno, senão por seu sobrenome: Rouviot. Pablo se lembra de ter se apaixonado perdidamente por ela quando tinham quinze anos, mas Helena jamais pareceu corresponder e ele nunca lhe disse nada. Voltaram a se encontrar aos trinta e cinco, numa noite fresca de Abril. Ele já era psicólogo, e a publicação de seu primeiro livro havia gerado um grande alvoroço entre seus colegas. E foi justamente na saída de uma de suas conferências que aconteceu o reencontro. Pablo já estava saindo quando escutou uma voz que o chamava com aquele apelido que já quase esquecera. Loiro...» In Gabriel Rolón, O Lamento do Violino, 2010, Editora Planeta, tradução de Clene Salles, 2012, ISBN 978-857-665-967-9.

Cortesia de EPlaneta/JDACT

Revolta no 31. A Trégua. Primo Levi. «… vagávamos fazia dez dias como astros esbatidos, tinha encontrado o seu próprio centro sólido, um núcleo de condensação: quatro homens armados, mas não armados contra nós»

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«Sonhávamos nas noites ferozes
sonhos densos e violentos
sonhados de corpo e alma:
voltar; comer; contar.
Então soava breve e submissa
a ordem do amanhecer:
Wstavach;
e se partia no peito o coração. 
Agora reencontramos a casa,
nosso ventre está saciado,
acabamos de contar.
É tempo. Logo ouviremos ainda
o comando estrangeiro:
Wstavach».
11 de Janeiro de 1946
«Nos primeiros dias de Janeiro de 1945, sob a pressão do Exército Vermelho, já nas proximidades, os alemães desocuparam às pressas a bacia mineira silesiana. Todavia, em outros lugares, e em análogas condições, não hesitaram em destruir com fogo ou com as armas o Lager, campo de concentração ou de extermínio, juntamente com os seus ocupantes; no distrito de Auschwitz agiram de maneira diversa: ordens superiores (ao que parece ditadas pessoalmente por Hitler) impunham a “recuperação”, a qualquer preço, de todos os homens aptos para o trabalho. Por isso, todos os prisioneiros sadios foram retirados, em condições assombrosas, para Buchenwald e Mauthausen, enquanto os doentes foram abandonados à própria sorte. A partir de vários indícios, é lícito deduzir a intenção primeira alemã de não deixar nos campos de concentração nenhum homem vivo; mas um violento ataque aéreo noturno e a rapidez da investida russa induziram os alemães a mudar de ideia, e a bater em retirada, deixando inacabados o próprio dever e a própria guerra. Na enfermaria do Lager de Buna-Monowitz chegávamos a oitocentos. Destes, cerca de quinhentos morreram das próprias doenças, do frio e da fome, antes que chegassem os russos, e outros duzentos, apesar dos socorros, nos dias imediatamente sucessivos. A primeira patrulha russa pôde ser vista do campo por volta de meio-dia de 27 de Janeiro de 1945. Charles e eu fomos os primeiros a avistá-la: estávamos transportando para a vala comum o corpo de Sómogyi, o primeiro morto dentre os nossos companheiros de quarto. Reviramos a padiola na neve infecta, pois a vala já estava cheia, e outra sepultura não era possível: Charles tirou o boné, para saudar os vivos e os mortos.
Eram quatro jovens soldados a cavalo, que agiam cautelosos, com as metralhadoras embraçadas, ao longo da estrada que demarcava os limites do campo. Quando chegaram ao arame farpado, detiveram-se, trocando palavras breves e tímidas, lançando olhares trespassados por um estranho embaraço, para observar os cadáveres decompostos, os barracões arruinados, e os poucos vivos. Pareciam-nos admiravelmente corpóreos e reais, suspensos (a estrada era mais alta do que o campo) em seus enormes cavalos, entre o cinza da neve e o cinza do céu, imóveis sob as rajadas do vento húmido que ameaçava o degelo. Parecia-nos, e assim era, que o nada atravessado de morte, no qual vagávamos fazia dez dias como astros esbatidos, tinha encontrado o seu próprio centro sólido, um núcleo de condensação: quatro homens armados, mas não armados contra nós; quatro mensageiros da paz, de rostos rudes e pueris sob os pesados capacetes de pelo. Não acenavam, não sorriam; pareciam sufocados, não somente por piedade, mas por uma confusa reserva, que selava as suas bocas e subjugava os seus olhos ante o cenário funesto. Era a mesma vergonha conhecida por nós, a que nos esmagava após as selecções, e todas as vezes que devíamos assistir a um ultraje ou suportá-la: a vergonha que os alemães não conheceram, aquela que o justo experimenta ante a culpa cometida por outrem, e se aflige que persista, que tenha sido introduzida irrevogavelmente no mundo das coisas que existem, e que a sua boa vontade tenha sido nula ou escassa, e não lhe tenha servido de defesa.
Assim, a hora da liberdade soou grave e acachapante, e inundou, a um só tempo, as nossas almas de felicidade e doloroso sentimento de pudor, razão pela qual quiséramos lavar nossas consciências e nossas memórias da sujeira que as habitava; e de sofrimento, pois sentíamos que isso já não podia acontecer, e que nada mais poderia acontecer de tão puro e bom para apagar o nosso passado, e que os sinais da ofensa permaneceriam em nós para sempre, nas recordações de quem a tudo assistiu, e nos lugares onde ocorreu, e nas histórias que iríamos contar. Porque, e este é o tremendo privilégio de nossa geração e do meu povo, ninguém pôde mais do que nós acolher a natureza insanável da ofensa, que se espalha como um contágio. É absurdo pensar que a justiça humana possa extingui-la. Ela é uma inexaurível fonte do mal: quebra o corpo e a alma dos esmagados, os destrói e os torna abjectos; recai como infâmia sobre os opressores, perpetua-se como ódio nos sobreviventes, e pulula de mil maneiras, contra a própria vontade de todos, como sede de vingança, como desmoronamento moral, como negação, como fadiga, como renúncia». In Primo Levi, A Trégua, 1963, Editorial Teorema, colecção Diário de Viagem, 2010, ISBN: 978-972-695-937-3.

Cortesia de ETeorema/JDACT

Poesia no 31. Maria Soares. «Estuda! Aprende! Lê! Observa! Luta pelo teu lugar ao sol! Procura um abrigo num porto seguro, um amigo que te compreenda, e te ajude a caminhar»

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Com a devida vénia à Maria Soares, publico alguns dos seus lindos poemas, já eternizados em hinos de estudantes e cantares do povo.

Tempo de Outono
«Estão diferentes os dias!
É diferente a sua luz...
Cheira a castanha assada,
a terra molhada p'la chuva bendita,
ouvem-se nos prados novos balidos...
Anunciando o Outono, em alegre chilreio,
andorinhas agrupam-se nos beirais
preparando a partida.
Adeus! Na Primavera voltamos!
Estas vão, mas outras... Ficam
nos capotes dos estudantes
que passam alegres, pelas ruas...
Volta o tempo das aulas.
Começo para uns, regresso para outros.
E o retomo ao trabalho
Depois da liberdade do Verão.
No horizonte, o sol adormece mais cedo,
as noites ficam maiores,
e os dias, mais pequenos
tornam os corações nostálgicos.
Lentamente, as árvores vão-se despindo
estendendo ao céu os braços nus,
como que espreguiçando
e o vento, delicada ou loucamente,
dança com as suas folhas
até caírem cansadas, esquecidas,
formando no chão um tapete dourado.
É o Outono que chega na sua estranha magia,
motivo de inspiração de namorados e poetas...
É o tempo dos serões à lareira,
contando ou ouvindo histórias,
ou até mesmo dormitando...
-“Senhora dê-me os Santos,
por alma dos seus defuntos...”
Ouvem-se crianças cantando às portas.
E nos sacos, caem castanhas, fruta, doces,
às vezes uma moeda...
Em breve, cumprindo a tradição,
famílias se reunirão à volta da mesa,
lembrando a vinda do Deus-Menino.
É mais um ano que parte e outro que chega,
cheio de novas esperanças no futuro...
Ui!!! Que frio!!!
Aconchegando o casaco,
sigo o meu rumo Vida fora…»

A ti criança
«Nasceste chorando,
reclamando dos homens
um lugar que é teu!
Cresceste, brincando e rindo,
correndo na rua
com o teu balão,
viveste aventuras num corcel de madeira…
Mas a Vida traiu-te e sofreste, calado,
as dores sentidas num corpo franzino,
marcado por desejos vis e canalhas...
Sem lar, sem pai nem mãe, sem carinho…
Estendeste a mão, suja e magra
à caridade de um pão...
Procuraste abrigo num vão de escada,
por agasalho... só um papelão....
Deambulaste, ao acaso, sem rumo,
sem ninguém que te desse a mão....
O desprezo dos homens, varou o teu corpo.
Mutilou-te a alma e a condição,
negou-te os direitos mais elementares,
matou-te os sonhos mais puros da Vida.
Hoje menino, homem amanhã!
Vingança!!!
Sentimento feroz
que te fere a alma e escurece a razão!
Não! Não o aceites!
Estuda! Aprende! Lê! Observa!
Luta pelo teu lugar ao sol!
Procura um abrigo num porto seguro,
um amigo que te compreenda,
e te ajude a caminhar
por uma estrada de Luz e de Paz,
ao encontro da felicidade!»

Fado
«Fado cantado nas vielas
no desassossego de um coração
cantado a medo, com cautela
não vá despertar a razão.

Fala daquele amor que partiu
deixando um rasto de dor
quando num beijo, fugaz, fugiu
desprezando sem dó aquele amor.

Promessas e juras de amor
que pareciam tão sinceras
perderam qualquer valor
esfumaram-se em quimeras.

Chora baixinho a guitarra,
acompanhando aquela alma,
que triste, a ela se agarra,
a ver se a dor se acalma.

Cantam ambos uma paixão
que parecia tão bonita,
mas partiu-se o coração
ficou a mágoa infinita.

Quer ao sol, quer ao luar
se lembra dessa paixão,
que p'ra sempre quis levar,
consigo o seu coração».
Poemas de Maria Soares, in “Páginas Soltas”

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Veneno no 31. Estudos sobre Veneno. Maria V. Snyder. «Dei um demorado gole. O líquido gostoso ardeu ligeiramente ao passar pela minha garganta. Por um instante, pensei que meu estômago se fosse revoltar. Era a primeira vez que eu estava bebendo algo além de água»

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As lendas de Yelena Zaltana
«(…) Eu. Sendo assim, estou ansioso para encontrar um substituto. Além disso, o Código de Conduta estabelece que o emprego deve ser oferecido a alguém cuja vida esteja em jogo. Sem conseguir permanecer sentada, fiquei de pé e comecei a andar de um lado para o outro, arrastando as correntes comigo. Os mapas nas paredes mostravam posições militares estratégicas. Os títulos dos livros tinham a ver com técnicas de segurança e espionagem. O estado e a quantidade das velas sugeriam alguém que trabalhava até tarde da noite. Olhei de volta para o homem no uniforme de conselheiro. Ele devia ser Valek, o chefe de segurança pessoal do Comandante e líder da vasta rede de inteligência do Território de Ixia. O que digo para o carrasco? Valek perguntou. Que não sou tola.
Valek fechou a pasta. Ele caminhou até à porta, com seu andar leve e gracioso como o de um gato das neves trilhando sobre gelo fino. Os guardas que esperavam no corredor ficaram em posição de sentido quando a porta se abriu. Valek falou com eles, e os homens assentiram. Um dos guardas veio em minha direcção. Eu o fitei. Voltar para o calabouço não fizera parte da oferta de Valek. Será que eu conseguiria escapar? Passei os olhos pelo aposento. O guarda me virou e retirou os grilhões e as correntes que eu vinha usando desde que fora presa. Faixas de carne viva rodeavam meus pulsos ensanguentados. Levei a mão ao pescoço, sentindo a pele onde costumava haver metal. Meus dedos ficaram empapados de sangue. Tateei em busca da cadeira. Estar livre do peso das correntes fez com que uma estranha sensação se apossasse de mim. Sentia-me como se fosse voar para longe, ou então desmaiar. Inspirei fundo até a fraqueza passar. Quando recobrei a compostura, notei que Valek estava postado ao lado da escrivaninha, servindo bebida em dois copos. Um armário de madeira aberto revelava em seu interior fileiras de garrafas de estranhos formatos e jarras multicoloridas. Valek guardou dentro do armário a garrafa que estava segurando e trancou a porta. Enquanto estamos esperando por Margg, pensei que você talvez gostasse de uma bebida. Ele me passou um cálice alto de estanho cheio de um líquido cor de âmbar. Erguendo o próprio cálice, fez um brinde. À saúde de Yelena, nossa nova provadora de comida. Que você dure mais do que seu predecessor. Deteve meu cálice a poucos centímetros de meus lábios. Relaxe, ele disse. É um brinde tradicional.
Dei um demorado gole. O líquido gostoso ardeu ligeiramente ao passar pela minha garganta. Por um instante, pensei que meu estômago se fosse revoltar. Era a primeira vez que eu estava bebendo algo além de água. Depois, ele se acalmou. Antes que eu pudesse indagar o que exactamente acontecera com o provador de comida anterior, Valek me pediu para identificar os ingredientes da bebida. Dando um gole pequeno, eu respondi: pêssegos adoçados com mel. Óptimo. Agora, dê outro gole. Dessa vez, deixe o líquido rolar ao redor da língua antes de engolir. Eu obedeci, e surpreendi-me com um ligeiro sabor cítrico. Laranja? Isso mesmo. Agora, gargareje. Gargarejar?, perguntei. Ele assentiu. Sentindo-me tola, gargarejei com o restante da minha bebida e quase a cuspi fora. Laranjas podres! Rugas se formaram ao redor dos olhos de Valek quando ele riu. Tinha um rosto forte e angular, como se alguém o houvesse recortado de uma chapa de aço, mas que se suavizava quando o homem ria. Passando-me sua bebida, ele pediu que eu repetisse o procedimento. Com um pouco de receio, dei um gole, mais uma vez detectando o ligeiro sabor de laranja. Preparando-me para o gosto rançoso, gargarejei com a bebida de Valek e fiquei aliviada ao me dar conta de que o gargarejo apenas realçava a essência de laranja. Melhor?, Valek perguntou, tomando de volta a taça vazia. Melhor. Valek sentou-se atrás da mesa, mais uma vez abrindo a pasta. Pegando seu cálamo, ele conversou comigo enquanto escrevia. Você acaba de ter sua primeira lição no ofício de provar comidas. Sua bebida continha um veneno chamado Pó de Borboleta. O único modo de detectar Pó de Borboleta em um líquido é fazendo o gargarejo. Aquele gosto de laranja podre que sentiu era o veneno. Fiquei de pé, minha cabeça girando. É letal? Uma dose grande o suficiente mata uma pessoa em dois dias. Os sintomas só aparecem no segundo dia, porém, então, já é tarde demais. Eu tomei uma dose letal? Prendi a respiração. É claro. Qualquer coisa menos e você não teria sentido o gosto do veneno». In Maria V. Snyder, Estudos sobre Veneno, 2005, As lendas de Yelena Zaltana, tradução de Maurício Araripe, ePub, Editora HR, Harlequin Enterprises, Rio de Janeiro, 2011, ISBN 978-853-980-460-3.

Cortesia de EditoraHR/HarlequinE/JDACT

Literatura no 31. O Clube Mefisto. Tess Gerritsen. «A tia calou-se, momentaneamente estupefacta. Depois o seu rosto abriu-se num sorriso e ela subiu os degraus a correr para o abraçar. Cheirava a sabonete Dove…»


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PECCAVI
«(…) Não sabemos que será assim. Nem sequer chegámos a conhecer essa mulher! O Monty limitou-se a escrever-nos um dia do Cairo para nos comunicar que tinha um filho acabado de nascer. Tanto quanto sabemos, ele apanhou-o no meio dos juncos, como o Moisés em criança. O rapaz ouviu o chão estalar por cima dele e olhou de relance para o alto das escadas. Ficou espantado por ver a prima, Lily, a olhar para ele por cima do corrimão. Estava a observá-lo, a estudá-lo, como se ele fosse alguma criatura exótica que nunca tivesse visto antes e tentava perceber se era perigosa.  Ah!, disse a tia Amy.  Estás acordado! Os tios tinham acabado de sair do escritório e estavam no fundo das escadas, a olhar para ele. Parecendo também um pouco consternados com a eventualidade de ter ouvido por acaso toda a conversa deles. Sentes-te bem, querido?, perguntou Amy. Sinto, tia. É tão tarde. Talvez devesses voltar agora para a cama? Mas ele não se mexeu. Ficou parado na escada por alguns instantes, perguntando-se como seria viver com esta gente. O que poderia aprender com eles. Isso poderia tornar interessante o Verão, até a mãe vir ter com ele. Tia Amy, já tomei uma decisão, disse ele. Sobre quê? A respeito do meu Verão e onde gostaria de o passar. Ela calculou logo o pior. Por favor, não tomes decisões apressadas! Nós temos uma casa realmente muito boa, mesmo junto ao lago, e tu terás um quarto só para ti. Pelo menos vem fazer-nos uma visita antes de decidires o que vais fazer. Mas eu já decidi que vou ficar convosco.
A tia calou-se, momentaneamente estupefacta. Depois o seu rosto abriu-se num sorriso e ela subiu os degraus a correr para o abraçar. Cheirava a sabonete Dove e a shampô Breck. Tão comum, tão vulgar. Depois um risonho tio Peter deu-lhe uma palmada afectuosa no ombro, a sua maneira de dar as boas-vindas a um novo filho. A felicidade deles era como um rolo de algodão-doce, arrastando-o para o seu universo, onde tudo era amor, luz e riso. Os pequenos vão ficar tão contentes por vires connosco!, disse Amy. Ele olhou de lado para o alto das escadas, mas Lily já não estava lá. Tinha-se escapulido, sem que ninguém visse. Vou ter de ficar de olho nela, pensou. Porque ela já está de olho em mim. Agora fazes parte da nossa família, disse Amy. Enquanto subiam as escadas juntos, ela estava já a contar-lhe os seus planos para o Verão. Todos os lugares onde o iriam levar, todos os pratos especiais que iriam cozinhar para ele quando chegassem a casa. Ela parecia feliz, mesmo estonteada, como uma mãe com o seu filho recém-nascido. Amy Saul não fazia ideia do que estavam prestes a levar para casa com eles.
Talvez isto fosse um erro. A dra Maura Isles parou antes dos portais da Nossa Senhora da Divina Luz, sem saber se devia entrar. Os paroquianos tinham já entrado e ela ficou sozinha na noite enquanto a neve caía suavemente sobre a sua cabeça descoberta. Através das portas fechadas da igreja ouviu a organista começar a tocar o Adeste Fidelis e compreendeu que nesta altura já estariam todos sentados. Se ia mesmo juntar-se a eles, era esse o momento para entrar. Hesitou, porque verdadeiramente o seu lugar não era entre os fiéis que estavam dentro dessa igreja. Mas a música chamou-a, tal como a promessa de calor e o consolo de rituais conhecidos. Aqui fora, na rua escura, encontrava-se sozinha. Sozinha na véspera de Natal. Subiu as escadas, entrando no edifício. Mesmo a esta hora tardia, os bancos da igreja estavam cheios com as famílias e crianças sonolentas que tinham sido tiradas das camas para a missa do Galo. A chegada atrasada de Maura atraiu diversos olhares e, enquanto os acordes do Adeste Fidelis se desvaneciam, ela deslizou rapidamente para o primeiro lugar vazio que encontrou, perto da entrada. Quase imediatamente a seguir teve de se levantar para acompanhar o resto da assistência quando se iniciou o cântico de entrada. O padre Daniel Brophy aproximou-se do altar e fez o sinal da cruz. A graça e a paz de Deus nosso Pai e de Nosso Senhor Jesus Cristo estejam convosco, disse ele. E contigo também, murmurou Maura, juntamente com a assistência. Mesmo depois de todos estes anos longe da Igreja, as respostas fluíam naturalmente dos seus lábios, aí arraigadas por todos os domingos da sua infância. Senhor, tem misericórdia de nós. Cristo, tem misericórdia de nós. Senhor, tem misericórdia de nós. Embora Daniel não se desse conta da presença dela, os olhos de Maura estavam fixados nele. No seu cabelo escuro, nos seus gestos graciosos, na sua boa voz de barítono. Esta noite, podia observá-lo sem vergonha, sem constrangimento. Esta noite podia olhar para ele à vontade». In Tess Gerritsen, O Clube Mefisto, 2006, Ulisseia, colecção Vício da Leitura, 2008, ISBN 978-972-568-602-7. 
Cortesia de Ulisseia/JDACT

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Casanova. Ian Kelly. «Desde a estreia da ópera, algumas transformações tinham sido feitas no teatro. Quando Casanova atravessou a plateia, seguindo por trás das poltronas do Nostitz, abriu-se diante dele uma visão…»

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«No primeiro minuto do meu sonho, tenho visões de corpos dançando, cujas formas me são perfeitamente familiares, iluminados por um estonteante conjunto de luzes». In 1791, Casanova

«Doze de Setembro de 1791. Engarrafamento em duas ruas de Praga. Os cavalos se mostram nervosos com os clarões e os fogos de artifício. A comida, transportada em carretas do mosteiro de Prikopy para o baile da coroação, é escoltada por soldados diante da multidão faminta. Um veneziano de 66 anos caminha com passos firmes da carruagem de seu patrão até às luzes do pórtico do teatro Nostitz. Apenas alguns dias antes, ele assistira ali à estreia da nova obra de Mozart, composta em homenagem ao recém-coroado imperador. Porém La Clemenza di Tito não agradou a Giacomo Casanova, e muito menos ao grupo real a quem a obra fora dedicada: a jovem imperatriz zombou dela, declarando que Herr Mozart tinha composto uma porcheria tedescha, uma ópera pior do que uma salsicha alemã ordinária. Casanova preferia Don Giovanni. Ele havia colaborado no libreto e assistido à première naquele mesmo teatro. Se assisti?, teria respondido ele a seu velho amigo Da Ponte, o libretista veneziano. Praticamente vivi tudo aquilo.
Desde a estreia da ópera, algumas transformações tinham sido feitas no teatro. Quando Casanova atravessou a plateia, seguindo por trás das poltronas do Nostitz, abriu-se diante dele uma visão que lhe chegava directamente de sua infância em Veneza. Para além da boca de cena, onde apenas uma semana antes existia um palco, depois das cortinas suspensas, onde a lista das conquistas de dom Giovanni foi apresentada pela primeira vez, via-se um cenário de pano: um pátio de seis metros de comprimento montado para o baile de coroação daquela noite. Ele se prolongava para trás, para além do poço da orquestra, da plataforma de cargas e mesmo da parede dos fundos do palco, demolida pelo imperial professor de engenharia de Praga, a fim de que o salão em forma de galeria pudesse se esticar para fora do ponto de fuga da perspectiva do palco, como se chegasse ao infinito. Forrado por oito mil varas de linho vermelho da Boémia, o salão-palco ficou lotado com a corte inteira dos Habsburgo, que dançava com a música da orquestra imperial de Antonio Salieri, comprimida nos camarotes do teatro. A cena era reflectida por uma dupla falange de espelhos venezianos. Os cortinados, os fios de ouro, os candelabros e o falso mármore, as cornijas e os céus em trompe l’oeil: todo um mundo por apenas uma noite, além da arte ou da razão, formado de gesso e tecidos, desaparecia pelo proscénio. Aquela noite de 1791 no Nostitz marcou o final de uma era. A França fora tomada pela revolução, e sua rainha, a irmã do novo imperador, foi presa. Para muitos daqueles seis mil aristocratas no palco do Nostitz, sob os céus pintados de Giovanni Tartini, aquela seria a dança derradeira no mundo que eles conheciam: sua última performance no Carnaval de Veneza, o último de tantos bailes de máscaras.
Quando criança, Casanova tinha assistido a espectáculos semelhantes. Todos os anos em Veneza, na Festa da Ascensão, quando o doge realizava o ritual das núpcias da República de Veneza com o mar, e a cidade inteira se entregava ao Carnaval, os venezianos esperavam desfrutar seus teatri del mundo. Havia dois tipos. Um era um palco flutuante, que pertencia à República. Este ficava atracado diante da piazzeta São Marcos e era usado para espectáculos patrocinados pelo Estado, encenações mirabolantes de contos míticos e fábulas celestiais nas quais se destacavam aristocratas trajados de maneira esplendorosa e fogos de artifício. Além disso, havia também, na praça São Marcos, situada nas proximidades, pequenos espectáculos de lanterna mágica encenados nas ruas: lampejos da escuridão para um mundo ao mesmo tempo sublime e ridículo, iluminações de rinocerontes, monstros, imagens americanas e amorosas, recriadas à luz de caixas com lanternas para um admirável mundo novo de consumidores voyeuristas. Por esse motivo, esses pequenos teatro del mundo também eram conhecidos como mondi nuovi: novos mundos. A julgar pelas anotações de Casanova sobre seus sonhos, descobertas no arquivo de Praga, que agora abriga suas notas um tanto esparsas (uma descoberta incalculavelmente excitante para o biógrafo), sua mente se voltou para esses teatri a partir daquela noite de 1791, quando ele passou a sonhar com o Nostitz em visões surrealistas de seres humanos que dançavam nus, olhos e narizes, órgãos genitais de ambos os sexos e outras partes do corpo cujas formas me são tão familiares. O grande cronista do século foi testemunha daquele último baile: a corte dos Habsburgo criando o seu próprio teatro del mundo sob a forma de corpos humanos cabriolando atordoados sob as luzes do teatro, reflectidos nos espelhos, dançando em meio aos cenários.
De Praga, Casanova retornou à sua escrivaninha, na biblioteca onde trabalhava, num castelo frio da Boémia. Seus sonhos estavam cheios de recordações perturbadas, porém ele passava os dias se dedicando a uma narrativa mais bem estruturada, a qual jamais veria publicada: o registo de pessoas, lugares, odores, sabores, do sexo e da sensibilidade do século anterior à revolução. O século XVIII de Casanova fora em muitos sentidos um teatro del mundo: um mundo escravizado pelo teatro. Moldada e espelhada em suas luzes e na sua literatura, deliciando-se nos artifícios do teatro, a vida dele, segundo suas anotações de sonhos e memórias, estruturou-se por essa ideia de desempenho, uma vez que ele foi formado pelas perspectivas mutáveis e reflexivas de Veneza e de sua commedia dell’arte.
Nascido em Veneza, então uma capital do teatro, oriundo de uma família de actores, ele viajou a vida inteira por toda a Europa, seguindo a antiga tradição dos mascarados venezianos. Mais do que isso, seu sucesso na vida e no amor, como libertino e libertário, foi obtido por sua capacidade de reinventar a si mesmo, de jogar todas as suas cartas em benefício próprio e de viver inteiramente para um presente estonteante. Naquela noite em 1791, é provável que não lhe tenha escapado a ironia, a ele, que era capaz de se sentir vivo apenas por meio das recordações e da escrita, de o mundo parecer compreender mais a fundo as alegrias da vida quando está diante do drama de sua recriação artificial. Sua obra-prima, história da minha vida, dá vida, como nenhum outro documento, ao século em que ele viveu, mas a alegria com que ele construiu sua vida, singularmente própria de um actor, permanece também como testamento para uma nova compreensão do eu. Como qualquer veneziano sabe, existe a máscara, e também a substância por trás dela, e um novo alvorecer revolucionário procurou compreender a personalidade com referência a ambas». In Ian Kelly, Casanova, 2008, Aletheia Editores, colecção nº 1, 2009, ISBN 978-989-622-175-1.

Cortesia de AletheiaE/JDACT

O Mistério das Lágrimas da Virgem. Alana White. «Por que motivo uma voz não gritou sinais de alarme dentro de si? As famílias Medici e Pazzi não eram amigas. As suas casas eram demasiado antigas»

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«(…) A voz única e doce do coro era apenas um murmúrio e as pessoas curvavam as cabeças, esperando pela Elevação da Hóstia. Determinado, abriu caminho por entre a multidão até chegar ao vulto escuro e musculado de Lorenzo Medici, perto do lado sul do altar, onde tinham combinado encontrar-se naquela manhã, mas recuou ao vislumbrar o irmão de Lorenzo, Giuliano, estranhamente isolado com Francesco Pazzi e Bernardo Bandini, no lado oposto da igreja, perto da Via Servi. Aqueles três não eram amigos. Francesco, hirsuto e de cabelo claro, parecia nervoso, com o braço pousado sobre os ombros de Giuliano e lançando olhares furtivos para um lado e para o outro. Os olhos de Guid'Antonio desviaram-se para Lorenzo e novamente para o outro lado. Não viu o machado de Bandini até que a lâmina brilhou com a luz das velas e cortou a cabeça de Giuliano. Depois disso, o tempo abrandou, como se se desenrolasse languidamente numa longa e negra fita. Giuliano caiu de joelhos, com a cabeça a jorrar sangue. Francesco saltou para cima dele com uma excitação selvagem e espetou-lhe uma faca na carne suave do pescoço desnudo. Perto deles, um rapaz gritou: A cúpula vai cair! Homens, mulheres e crianças atrapalharam-se e caíram numa nova onda de medo e pânico. Não!, gritou Guid'Antonio. Giuliano! Tentou avançar, mas perdia repetidamente terreno, como se mãos fantasma lhe agarrassem no manto carmesim e o puxassem para trás pela bainha. Giuirano! O seu bom e jovem amigo, esfaqueado repetidamente como se de um boneco de trapos se tratasse e não de um corpo feito de músculos rijos e ossos. Assassinado, enquanto Guid’Antonio observava à distância. Como podia ter sido tão impotente? Ouviu o som da trovoada a rugir no exterior do apartamento no castelo, em Plessis-les-Tours, e escutou o vento francês a gemer e a uivar. Inquieto e transpirado, atirou os lençóis para trás e ficou a olhar para o vazio, agarrado às memórias que cravavam nele as suas garras sem jamais o largarem.
Vinte e seis de Abril de 1478, dois anos antes. Ainda conseguia sentir o ar fresco do interior da Catedral de Florença e cheirar o aroma residual do Inverno. Conseguia ouvir o tinir do sino do padre. O que via quando ficava acordado de noite era a imagem de Giuliano Medici no chão da igreja, com o sangue a jorrar-lhe da cabeça. A dor dilacerava o peito de Guid’Antonio. Porque não percebera o que estava a acontecer quando viu Giuliano com Francesco Pazzi e Bernardo Bandini, aqueles dois insurrectos? Por que motivo uma voz não gritou sinais de alarme dentro de si? As famílias Medici e Pazzi não eram amigas. As suas casas eram demasiado antigas, bem conhecidas e ricas. A rivalidade entre ambas era feroz. Porém, até àquela manhã de Abril, as duas grandiosas casas florentinas tinham conseguido gerir as animosidades. Nadando à superfície das águas espelhadas, nenhuma das duas se afundava. Eram mentiras em cima de mentiras. Por que motivo não tinha ido para junto de Giuliano quando o viu na igreja? Porque não ficou ao lado dele a rezar? Mas não. Não. Em vez de salvar o filho favorito de Florença, ajoelhou-se ao lado do seu corpo mutilado no chão de pedra fria da igreja e ergueu as mãos para o céu na mais completa e crua incredibilidade. Deitara-se à sua frente, protegendo-o da debandada de gente de sandálias, de botas e de pés descalços. Tinha ajudado os monges a embrulhar o corpo de Giuliano no manto de veludo preto do jovem Medici; ficara profundamente grato por Lorenzo ter conseguido escapar ao padre armado que o atacou, conseguindo apenas fazer-lhe um golpe superficial no pescoço, isto, se o que os monges afirmaram era a verdade. Como podiam saber? Os dedos manchados de tinta dos monges estavam tão trémulos como os de Guid’Antonio». In Alana White, O Mistério das Lágrimas da Virgem, 2012, Marcador Editora, 2013, ISBN 978-989-847-096-6.

Cortesia de MarcadorE/JDACT

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

A Coroa. Nancy Bilyeau. «Ouvi um ruído áspero. Era o meu próprio riso, um som amargo e desprovido de alegria. Que passou despercebido, pois ouviu-se um grito mesmo ao lado da carroça»


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Londres. Maio de 1537
«(…) Encostei-me às guardas da carroça. Passámos por um pequeno mercado, que parecia não vender senão especiarias e ervas aromáticas. Tinha deixado de chover, pelo que os vendedores afastaram as mantas que protegiam as suas bancas estreitas. Uma mistura rica de borragem, salva, tomilho, alecrim, salsa e cebolinho espalhou-se pelo ar, dissolvendo-se à medida que nos afastávamos sacolejando. Os odores urgentes da cidade retomaram a sua intensidade. Uma fila de edifícios de quatro andares surgiu à nossa vista: ainda não tinha visto nada tão próspero. Uma placa de ourives pendia numa esquina. Um rapaz novo, que ia sentado à minha frente, sorriu e disse, em voz alta, para todos os passageiros da carroça: estamos gratos ao rei Hal por queimar uma jovem beldade em Smithfield. A última pessoa a morrer na fogueira foi um falsário velho e feio.
Um pedaço do pão que engolira subiu-me à garganta. Tapei a boca com a mão. Mas é uma beldade?, perguntou outra voz. Um velhote, com os olhos azuis aguados, torceu um pêlo comprido que lhe nascia no meio do queixo. Conheço uma pessoa que viu lady Bulmer em carne e osso, e, sim, é bonita, declarou lentamente. Mais bonita do que a rainha. Qual das rainhas?, bradou um dos homens. Todas as três, replicou outro. Um riso nervoso percorreu a carroça. Troçar dos casamentos do rei, do divórcio da primeira mulher e da execução da segunda para abrir caminho para a terceira, era crime. Já tinham sido amputadas mãos e orelhas por causa disso. O velhote torceu o pêlo do queixo ainda com mais força: lady Bulmer deve ter ofendido gravemente o rei, para ele a mandar queimar em público, diante da plebe, em vez de a condenar ao machado em Tower Hill ou de a enforcar em Tyburn.
O rapaz novo retorquiu: todos os nobres e aristocratas que seguiam Robert Aske foram trazidos para Londres. Pela justiça do rei. Ela vai ser apenas a primeira a morrer. O meu coração bateu mais depressa. Que diriam aqueles londrinos, que me fatiam, se soubessem quem eu era e de onde vinha? Uma coisa era certa: nunca chegaria a Smithfield. Procurei uma oração que pudesse sustentar-me o ânimo. Ó Senhor, meu Deus, ajudai-me a ser obediente sem reserva, pobre sem servilismo, casta sem vacilação. Essa tal Bulmer é uma rebelde nojenta!, gritou a mulher que tinha partilhado o seu pão comigo. É uma papista do Norte, que conspirou para destronar o nosso rei. Humilde sem pretensão, alegre sem depravação, séria sem afectação, activa sem frivolidade, submissa sem amargura, verdadeira sem duplicidade. O velhote replicou suavemente: no Norte, deram a vida pelos costumes antigos. Queriam proteger os mosteiros. Houve uma irrupção geral de desprezo. Esses frades gordos escondem potes de ouro, enquanto os pobres morrem de fome às suas portas. Ouvi contar de uma freira que teve um filho de um padre. As freiras são prostitutas. Ou então são aleijadas. Idiotas corridas de casa pelas famílias. Ouvi um ruído áspero. Era o meu próprio riso, um som amargo e desprovido de alegria. Que passou despercebido, pois ouviu-se um grito mesmo ao lado da carroça. Um diabrete corria ao nosso lado, tão depressa que ultrapassou os cavalos. Um olhar aterrorizado, por cima do ombro, revelou que a criança não era um rapaz, mas sim uma rapariga de rosto enfarruscado e cabelo curto. Um pedaço de lama voou pelo ar e atingiu-a no ombro. Au!, gritou ela. Seus canalhas! Dois rapazes grandalhões, que corriam pesadamente ao lado da carroça, riram. Estavam quase a apanhá-la. Os homens que viajavam na carroça puseram-se a encorajá-los.
A presa dos rapazes acelerou pela rua abaixo, em direcção a uma fila de lojas. Outra rapariga acenou-lhe de uma porta, bradando: aqui! A criança correu lá para dentro e a porta fechou-se atrás delas. Os rapazes chegaram lá poucos segundos depois e bateram furiosamente, mas a porta estava trancada». In Nancy Bilyeau, A Coroa, 2012, Editorial Presença, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-234-862-1.

Cortesia de EPresença/JDACT

Uma Questão de Orgulho. Linda Carlino. «Estais de acordo em nunca fazer perguntas, nem escolher outros caminhos, e a confiar sempre no meu julgamento? Ainda bem! Então podemos dar início…»


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«(…) Digo-te já, Alonso, que talvez tenhamos sorte, respondeu Manuel, que era ligeiramente mais alto, dando uma palmada no ombro do amigo. Espero bem que sim. Foi uma desgraça completa em Jarandilla. Passámos semanas a fio sem uma mulher. Tens razão, não havia lá nada para fazer. Só gente feia. Mas estas aqui não estão nada mal. O problema é que cheiram mal. Tu também cheirarias se tivesses de dormir com os animais durante o Inverno, seu idiota! Nós temos muita sorte, sabes? Dormimos em cima do feno. Elas têm de dormir na palha, ao pé de bosta de vaca e das cabras. Pelo menos é o que parece pelo cheiro. Então não deve haver problema, desde que seja ao ar livre, não achas, Manuel? É mesmo isso! Prenderam as túnicas de linho grosseiro dentro das calças castanhas, mal cortadas mas resistentes, apertaram os cintos, ajeitaram os casacos de lã, tapando com um capuz o cabelo penteado com os dedos. Por fim, cuspiram na biqueira dos coturnos de couro e limparam-nos na parte de trás das pernas.  Que tal? Estamos apresentáveis? Bom, vamos lá! Alonso foi à frente, passando pelos enormes portões de madeira, escancarados em sinal de boas-vindas, e atravessando o chão de gravilha para se juntarem a um grupo de rapazes que também se estava a preparar. Meu Deus! Sentiste isto, Alonso? Parece que alguém abriu uma porta e passou uma corrente de ar gelada! Não, não senti nada. Estarás a chocar alguma coisa? Já, vais aquecer, quando estiveres no meio de umas coxas bem macias!
Tereis de desculpar estes tão fervorosos rapazes. Ao que parece, têm muito poucos prazeres na vida. Espero que a nossa presença não lhes tenha arrefecido o ardor. Bem-vindos a Yuste, este esplendoroso mosteiro de São Jerónimo. Não poderia haver lugar mais tranquilo. Pois bem, estais aqui para saber o mais possível sobre Carlos, o homem que, até há pouco tempo, ostentava as coroas do Sacro Império Romano e de Espanha. Como tão bem dissestes, toda a gente já ouviu falar do imperador e rei, mas o que se sabe realmente sobre o homem? Farei todo o possível por ajudar-vos. Serei o vosso guia, levando-vos, como observadores invisíveis, à presença do rei; espreitando pelos corações e pelas mentes de todas as pessoas que iremos conhecer. Espero também ser fonte de informações úteis. Estais de acordo em nunca fazer perguntas, nem escolher outros caminhos, e a confiar sempre no meu julgamento? Ainda bem! Então podemos dar início a uma experiência que, prometo, será muito interessante. Mas, primeiro, uma ou duas palavras acerca de Yuste. Há mais de um século que a Ordem dos Jerónimos aqui está instalada e é, hoje uma comunidade abastada, proprietária de vastos hectares de terra fértil ao longo do vale, e de muitos pomares, olivais e florestas nas montanhas vizinhas. Não há muito tempo, construíram aquele magnífico segundo claustro do lado esquerdo e acolhedores aposentos para o rei, o seu pequeno palácio, graciosamente acrescentado do lado direito, o mosteiro tornou-se uma verdadeira jóia, incrustada num mar verde-esmeralda de carvalhos e castanheiros. E, ao fundo, à esquerda, há uma outra extensão necessária, as cavalariças; através do arco, vê-se parte do pátio». In Linda Carlino, Uma Questão de Orgulho, 2008, Editorial Presença, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-234-705-1.

Cortesia de EPresente/JDACT

A Coroa. Nancy Bilyeau. «Quando trepei para a carroça, vi um misto de piedade e desprezo nos rostos dos outros passageiros. O meu anel devia valer mais do que o preço da viagem»

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Londres. Maio de 1537
«Sempre que é anunciada uma execução pelo fogo, as tabernas de Smithfield encomendam mais uma porção de barris de cerveja, mas quando a pessoa que vai ser executada é mulher e nobre de nascimento, a cerveja é encomendada às carroças. Seria numa dessas carroças que eu viajaria, na sexta-feira de Pentecostes, no vigésimo oitavo ano do reinado do Rei Henrique VIII, para rezar pela alma da traidora condenada, lady Maryaret Bulmer. Percorria a Cheapside Street, agarrada ao mapa de Londres que tinha copiado de um livro em segredo, há duas noires, quando ouvi o brado do carroceiro. Agora que estava numa rua tão larga e calcetada, conseguia avançar mais depressa, mas doíam-me as pernas. Tinha passado a manhã a caminhar penosamente pela lama. Smithfield, quem vai para Smirhfield? Era uma voz alegre, como se o destino anunciado fosse uma feira do Dia de S. Jorge. Um pouco mais adiante, mesmo em frente de uma fábrica de curtumes, vi quem apregoava: um homem corpulento, que fazia estalar um chicote sobre o dorso de quatro cavalos atrelados a uma grande carroça. Meia dúzia de cabeças espreitavam por cima das guardas da carripana. Esperai!, gritei, o mais alto que pude. Quero ir para Smithfield. O carroceiro virou-se bruscamente; os seus olhos esquadrinharam a multidão. Acenei e o seu rosto exibiu um sorriso húmido. Quando me aproximei, senti o estômago contrair-se. Tinha jurado não falar com ninguém em todo o dia, não procurar auxílio. O risco de ser descoberta era demasiado grande. Mas Smithfield ficava fora das muralhas da cidade, para noroeste, ainda bastante longe. Ao ver-me chegar, o carroceiro mirou-me de cima a baixo e o seu sorriso vacilou. Eu vestia um pesado traje de lã, o único de que dispunha para aquela jornada. Tratava-se um conjunto de corpete e saia feito para o pino do Inverno, não para a Primavera, e seguramente não para um dia em que a neblina ondulante servia de âncora a ondas de calor. Tinha a bainha da saia empastada de lama. Só podia agradecer o facto de ninguém poder espreitar através do tecido pesado e ver a minha camisa encharcada em suor. Mas sabia que o meu aspecto desalinhado não era a única causa da hesitação do carroceiro. O meu aspecto parece estranho a muita gente. Tenho o cabelo preto como ónix polido, os olhos, castanhos mesclados de verde. A minha pele cor de azeitona não fica vermelha em Julho, nem pálida no Advento. Herdei as cores da minha mãe espanhola. Mas não as suas feições delicadas. Não, o meu rosto é o do meu pai inglês: testa larga, malares altos e queixo forte. É como se a dissonância do casamento dos meus pais lutasse na própria estrutura da minha cara, à vista de todos. Num país de raparigas rosadas e brancas, destaco-me como um corvo. Houve um tempo em que isso me perturbava, mas, aos vinte e seis anos, já não me preocupava com tais ninharias. Um xelim pela viagem, dona, disse o carroceiro. Pagai e arrancamos. Aquela exigência apanhou-me de surpresa, embora, claro, fosse de esperar. Não tenho moedas, gaguejei. O carroceiro ladrou uma gargalhada. Julgais que faço isto para me divertir? Tenho pouca cerveja..., bateu num barril de madeira equilibrado atrás de si..., e preciso de ganhar com que pagar a carroça. Os passageiros esticavam o pescoço por cima do barril, para olharem para mim.  Esperai, atalhei. Procurei a pequena bolsa de pano que escondera no bolso cosido ao meu vestido. Revolvi a bolsa e encontrei um anel delgado. Não queria dar-lhe nada de maior valor. Ainda tinha de pagar alguns subornos importantes. Estendi-lhe o anel. Isto chega? A carranca dele transformou-se imediatamente numa expressão deliciada, e o pequeno anel de ouro da minha falecida mãe desapareceu na palma da mão suja. Quando trepei para a carroça, vi um misto de piedade e desprezo nos rostos dos outros passageiros. O meu anel devia valer mais do que o preço da viagem. Descobri um bocado de palha limpa num canto e baixei os olhos, tentando evitar os olhares curiosos assestados sobre mim, enquanto a carroça se punha de novo em movimento. Alguém me acotovelou. Uma mulher robusta chegou-se para o meu lado. Era de meia-idade e a única outra mulher presente. Sorriu e estendeu-me um pedaço de pão escuro. Eu não comia nada desde a noite anterior. Normalmente, orgulhava-me de resistir às ânsias da fome, da sensação de domínio sobre a minha fraca carne mortal, mas a missão que empreendera exigia um certo vigor. Um pouco de comida e um trago da cerveja aguada da caneca de madeira da minha companheira de viagem deram forças ao meu corpo aturdido». In Nancy Bilyeau, A Coroa, 2012, Editorial Presença, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-234-862-1. 
Cortesia de EPresença/JDACT

A Obra Prima Desaparecida. Jonathan Harr. «O palazzo ocupava um quarteirão completo. Tratava-se de um edifício gigantesco construído em travertino rústico e tijolo, coberto de fuligem e enegrecido pelo incessante tráfego do Corso»

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O inglês
«(…) Deram início ao seu trabalho de investigação na Biblioteca de Arte Nacional, situada na Piazza Venezia. Começaram por estudar um livro conhecido informalmente como a bíblia dos estudos sobre Caravaggio, compilada por uma historiadora de arte de seu nome Mia Cinotti. Tinha como subtítulo Tutte le Opere, Todas as Obras, e a sua bibliografia integrava três mil artigos de jornais, monografias e outras obras sobre Caravaggio. Na secção sobre o S. João, ficaram a saber que a maioria dos estudiosos acreditava que Caravaggio havia criado a obra entre 1598 e 1601, apesar de alguns apontarem 1596 como a data mais provável. Existiam onze cópias conhecidas. Cinotti considerava a versão do Capitolino descoberta por Denis Mahon a autêntica, apesar de a autora admitir que a pintura de Doria, a única cópia digna de importância, na sua opinião, poderia ter sido concebida pelo próprio Caravaggio. A primeira menção ao quadro foi efectuada por outro artista, Giovanni Baglione, que vivera e trabalhara em Roma na mesma época que Caravaggio. Os dois homens haviam sido rivais, inimigos implacáveis. Nenhum deles tinha algo de positivo a dizer acerca do outro. Trinta anos após a morre de Caravaggio, Baglione publicara uma série de pequenas biografias de artistas e escultores de Roma. Deixara registado que Caravaggio, um indivíduo agressivo, cujas obras eram excessivamente apreciadas por pessoas maldosas, havia criado o S. João e outras duas obras para um abastado cobrador romano chamado Ciriaco Mattei. Uma dessas obras, ao que parecia, era o desaparecido A Deposição de Cristo. Depois da morte de Mattei, segundo Cinotti, o S. João tivera uma história rocambolesca, passando por várias mãos antes de vir a acabar na Galeria Capitolina. A história do S, João de Doria era, simultaneamente, mais simples e envolta em contornos mais misteriosos. Conhecia-se apenas um proprietário, a família Doria Pamphili. A obra estivera na sua posse desde, pelo menos, 1666, ano em que veio à luz pela primeira vez num inventário familiar, mais de quinze anos após a morte de Caravaggio. Não se conhecia a história do quadro anterior a esta data. Vários estudiosos haviam tentado recuar no tempo, mas os seus esforços haviam sido infrutíferos. Francesca e Laura chegaram a acordo. Decidiram começar pela versão de Doria. Visto que era sobre este quadro que menos informação havia, parecia ser aquele que ofereceria as maiores probabilidades de dar origem a uma verdadeira descoberta. Para além disso, Palazzo Doria Pamphili ficava mesmo ao virar da esquina, na Via del Corso, cinco minutos a pé desde a biblioteca.
O palazzo ocupava um quarteirão completo. Tratava-se de um edifício gigantesco construído em travertino rústico e tijolo, coberto de fuligem e enegrecido pelo incessante tráfego do Corso. Ao centro do palazzo, visível através de uma entrada, as duas jovens estudantes vislumbraram um pátio repleto de laranjeiras, limoeiros e palmeiras enormes, um jardim onde quase não chegava qualquer som da cidade circundante. A família Doria Pamphila e os seus descendentes ocupavam este palazza havia quase quatro séculos. A galeria de arte, com uma colecção de centenas de pinturas e esculturas, estava aberta ao público. O arquivo da família encontrava-se bem no interior do palazzo. Nas traseiras do edifício, acabadas de sair de uma ruela estreita chamada Via della Gatta, Francesca e Laura entraram por uma porta de madeira castigada pelo tempo, subiram um lanço de escadas em mármore mal iluminado e atravessaram um corredor povoado de pequenos gabinetes pardacentos, o centro burocrático do património da família, opulento em tempos idos. Um homem sentado à escrivaninha indicou-lhes o caminho, percorrendo o corredor até chegarem a duas enormes portadas de madeira. Abriu-se diante delas uma sala espaçosa com o pé-direito alto e o tecto trabalhado, pavimento em terracotta e janelas com vistas para outro pátio. No centro da sala, jazia uma sólida mesa de madeira rodeada por estantes pejadas de centenas de antigos volumes encadernados a couro e estojos muito bem classificados.
Por uma porta entreaberta, Francesca conseguiu entrever o centro do arquivo, uma câmara comprida e estreita ladeada por prateleiras de metal cinzento que guardavam milhares de livros. A arquivista que as veio receber era uma jovem inglesa, apenas alguns anos mais velha do que elas, de longa cabeleira ruiva que lhe caía solta sobre o pescoço e de tez branca a fazer lembrar uma boneca de porcelana. Tinha uma voz doce, quase murmurada. De início, Francesca pensara que era assim que se devia falar no arquivo Doria Pamphili, apesar de não se achar mais ninguém na sala. Mais tarde, quando encontrara por acaso a arquivista em plena rua, Francesca compreendera que era esta a sua forma habitual de se exprimir. Como um espectro de tempos idos, observara». In Jonathan Harr, A Obra Prima Desaparecida, 2005, Editorial Presença, Lisboa, 2006, ISBN 978-972-233-676-2.

Cortesia de EPresença/JDACT

domingo, 28 de agosto de 2016

A Catedral do Mar. Ildefonso Falcones. «Velha estúpida! Como te atreves a entornar o vinho. A mulher baixou a cabeça em sinal de submissão e, quando o senhor fez menção de lhe dar uma bofetada…»

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Servos da terra. Ano de 1320. Quinta de Bernat Estanyol Navarcles. Principado da Catalunha
«(…) Até os cavalos, quietos, com os seus grandes olhos redondos assestados nele, pareciam aguardar a resposta de Bernat. Ao meu casamento, senhor. Com quem casaste? Com a filha de Pere Esteve, senhor. Llorenç Bellera permaneceu em silêncio, olhando Bernat por cima da cabeça do seu cavalo. Os animais resfolegaram ruidosamente. E?, ladrou Llorenç Bellera. A minha mulher e eu próprio, disse Bernat, tratando de dissimular o seu asco, sentir-nos-íamos muito honrados se sua senhoria e seus acompanhantes tivessem por bem juntar-se a nós. Temos sede, Estanyol, afirmou o senhor de Bellera, como única resposta. Os cavalos puseram-se em movimento sem necessidade de que os cavaleiros os esporeassem. Bernat, cabisbaixo, dirigiu-se para a casa, ao lado do seu senhor. No final do caminho tinham-se juntado todos os convidados, para o receber; as mulheres de olhos no chão, os homens descobertos. Um rumor ininteligível ergueu-se quando Llorenç Bellera se deteve diante deles. Vamos, vamos, ordenou-lhes, enquanto desmontava. Que siga a festa! As pessoas obedeceram e deram meia-volta, em silêncio. Vários soldados aproximaram-se dos cavalos e encarregaram-se dos animais. Bernat acompanhou os seus novos convidados até à mesa a que tinham estado sentados Pere e ele. Tanto as suas escudelas como os seus copos tinham desaparecido. O senhor de Bellera e os seus dois acompanhantes sentaram-se. Bernat afastou-se alguns passos quando estes começaram a conversar. As mulheres acudiram, rápidas, com jarros de vinho, pães, escudelas de galinha, pratos de porco salgado e com o borrego acabado de assar. Bernat procurou Francesca com o olhar, mas não a encontrou. Não estava entre as mulheres. O olhar de Bernat cruzou-se com o do sogro, que já estava junto dos restantes convidados, e este fez sinal com o queixo em direcção às mulheres. Com um gesto quase imperceptível, Pere Esteve abanou a cabeça e deu meia-volta. Continuem com a vossa festa!, gritou Llorenç Bellera com uma perna de borrego na mão. Vamos, venham, avancem! Em silêncio, os convidados começaram a dirigir-se para as brasas, onde os borregos tinham sido assados. Só um grupo permaneceu quieto, a salvo dos olhares do senhor e dos seus amigos: Pere Esteve, os filhos e mais alguns convidados. Bernat avistou o branco da camisa de linho entre eles, e aproximou-se. Vai-te embora daqui, estúpido!, rosnou o sogro. Antes que ele pudesse dizer alguma coisa, a mãe de Francesca aproximou-se, colocou-lhe um prato de borrego nas mãos e sussurrou-lhe: trata de atender ao senhor e não te aproximes da minha filha. Os camponeses começaram a dar conta do borrego, em silêncio, olhando de soslaio para a mesa. No terreiro só se ouviam as gargalhadas e os gritos do senhor de Navarcles e dos seus amigos. Os soldados descansavam, afastados da festa.
Antes, ouvia-vos rir, gritou o senhor de Bellera. De tal forma que me espantaram a caça. Riam, malditos sejam! Ninguém o fez. Bestas rústicas, disse para um dos seus acompanhantes, que receberam o comentário com gargalhadas. Os três saciaram o apetite com o borrego e o pão branco. O porco salgado e as escudelas de galinha ficaram abandonados na mesa. Bernat comeu de pé, um pouco afastado, e olhando de soslaio para o grupo de mulheres, entre as quais se escondia Francesca. Mais vinho!, exigiu o senhor de Bellera, levantando o copo. Estanyol, gritou de repente, procurando-o por entre os convidados, da próxima vez que me pagues o censo das minhas terras, terás de me trazer vinho como este, e não a zurrapa com que o teu pai me andou a enganar até agora. Bernat escutou-o, atrás dele. A mãe de Francesca aproximava-se com mais um jarro. Estanyol, onde estás tu? O cavaleiro bateu na mesa quando a mulher aproximava o jarro para lhe encher de novo o copo. Algumas gotas de vinho salpicaram a roupa de Llorenç Bellera. Bernat já se aproximara dele. Os amigos do senhor riam-se da situação e Pere Esteve levou as mãos ao rosto. Velha estúpida! Como te atreves a entornar o vinho. A mulher baixou a cabeça em sinal de submissão e, quando o senhor fez menção de lhe dar uma bofetada, fugiu e caiu por terra. Llorenç Bellera voltou-se para os amigos e desatou a rir, vendo como a anciã se afastava, gatinhando, Depois, recuperou a seriedade e dirigiu-se a Bernat: ai estás aqui, Estanyol. Vê só o que fazem as velhas inúteis. Por acaso pretendes ofender o teu senhor? Serás tão ignorante que não sabes que os convidados devem ser atendidos; pela senhora da casa? Onde está a noiva?, perguntou, passeando o olhar pelo terreiro. Onde está a noiva?, gritou, perante o silêncio de Bernat». In Ildefonso Falcones, A Catedral do Mar, 2006, Bertrand Editora, 2009, ISBN 978-972-251-511-5.

Cortesia de BertrandE/JDACT

Mistérios Sombrios do Vaticano. Paul Jeffers. «… depois de ter sobrevivido a invasões bárbaras, perseguições, inúmeras pragas e cismas ocasionais, o papado agora enfrenta um problema da era moderna: um profundo aperto financeiro»

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Os Tesouros do Vaticano
«(…) Centro geográfico da Igreja Católica Romana, o Vaticano possui algumas das mais preciosas obras de arte do mundo, e muitos acreditam que seja a organização mais rica do planeta. Num livro sobre os tesouros do Vaticano, The Vatican Billions (Os bilhões do Vaticano), Avro Manhattan observou que a Igreja Católica é o maior poder financeiro, maior acumuladora de riquezas e a maior proprietária de terras actualmente. Possui mais riquezas materiais do que qualquer outra instituição, corporação, banco, truste gigantesco, governo ou estado do mundo inteiro. O papa, como governante desse imenso acúmulo de riquezas, é, consequentemente, o indivíduo mais rico do século XX. Ninguém tem condições de dizer precisamente quanto ele vale em termos de bilhões de dólares. Segundo o autor, a Santa Sé tinha grandes investimentos com os Rothschild na Inglaterra, França e Estados Unidos, e no Hambros Bank e Credit Suisse em Londres e Zurique. Nos Estados Unidos, tem holdings com o Morgan Bank, Chase-Manhattan Bank, First National Bank of New York, Bankers Trust Company e outros. Entre seus investimentos estão bilhões de acções das mais poderosas corporações internacionais, como Gulf Oil, Shell, General Motors, General Electric, IBM e outras. Segundo uma estimativa conservadora, a quantidade de investimentos é superior a 500 milhões de dólares só nos Estados Unidos. Num comunicado publicado recentemente, a rquidiocese de Boston declarou activos no valor de US$ 635.891.004, o que representava 9,9 vezes o seu passivo. Com isso restava um património líquido de US$ 571.704.953. Não é difícil descobrir a riqueza absolutamente impressionante da igreja, disse Manhattan, quando somamos as riquezas das vinte e oito arquidioceses e 122 dioceses nos Estados Unidos, algumas das quais são ainda mais ricas que a de Boston. Pode-se ter uma ideia das propriedades e outras formas de riqueza controladas pela Igreja Católica pela declaração de um membro da Conferência Católica de Nova Iorque, segundo a qual sua igreja provavelmente só perde para o governo dos Estados Unidos no volume de compras anuais.
Essas estatísticas indicavam que a Igreja Católica Romana, uma vez calculados todos os activos, era o corrector mais incrível do mundo. A Santa Sé, independentemente do papa que estivesse ocupando o cargo, foi se voltando cada vez mais para os Estados Unidos. Um artigo do Wall Street Journal disse que os negócios financeiros do Vaticano só nos Estados Unidos eram tão grandes, que frequentemente envolviam a compra ou venda de ouro em lotes de um milhão de dólares ou mais de cada vez. Segundo a United Nations World Magazine, o tesouro do Vaticano chegava a vários bilhões de dólares em ouro. Boa parte dele estava armazenada em lingotes no Federal Reserve Bank dos Estados Unidos, e o restante em bancos da Suíça e Inglaterra. A riqueza do Vaticano apenas nos Estados Unidos era maior do que a das cinco corporações mais ricas do país. Mas, em 1987, a revista Fortune noticiou que apesar de todo o seu esplendor, o Vaticano está praticamente falido. O artigo dizia: depois de ter sobrevivido a invasões bárbaras, perseguições, inúmeras pragas e cismas ocasionais, o papado agora enfrenta um problema da era moderna: um profundo aperto financeiro. Os custos da burocracia crescente do Vaticano superam em muito os seus recursos. No ano anterior, a Santa Sé captou 57,3 milhões de dólares de fontes tão diversas quanto taxas de cerimónias; receitas de publicações, anúncios em jornais e vendas de videocassetes; e modestos ganhos de investimento de 18 milhões de dólares. Com investimentos da ordem de 500 milhões de dólares, o Vaticano controlou menos recursos financeiros do que muitas universidades norte-americanas. Na Primavera de 2008, o Vaticano informou que seus contabilistas haviam registado uma perda em suas contas anuais pela primeira vez em quatro anos. O relatório dizia que a Santa Sé perdera quase 10 milhões de euros depois de investir em dólares antes da queda acentuada da moeda norte-americana em relação ao euro. E o buraco no orçamento teria sido ainda pior, disse uma fonte, se a Igreja não tivesse elevado os contratos das suas propriedades em Roma, sobre as quais não paga impostos ao estado italiano.
Os aumentos nos contratos teriam provocado grande polémica em Roma, pois a Igreja teria ameaçado despejar os inquilinos que não pagassem. O prejuízo também foi atribuído ao péssimo desempenho dos meios de comunicação do Vaticano, incluindo um jornal e uma estação de rádio, que haviam perdido aproximadamente 15 milhões de euros no ano anterior. Em 2007, o Vaticano reportou uma receita geral de 236,7 milhões de euros, enquanto as despesas totalizaram 245,8 milhões de euros. Boa parte da receita do Vaticano vem de doações de membros da Igreja em todo o mundo. Os católicos norte-americanos contribuem com cerca de 80 milhões de dólares. Especialistas avaliaram que a riqueza total do Vaticano em 2008 superava os 5 bilhões de euros». In Paul Jeffers, Mistérios Sombrios do Vaticano, 2012, tradução de Elvira Serapicos, Editora Jardim dos Livros, 2013, ISBN 978-856-342-018(7)-3(6).

Cortesia de EJLivros/JDACT