terça-feira, 5 de julho de 2016

Sonetos. Florbela Espanca. «Sou talvez a visão que Alguém sonhou, alguém que veio ao mundo p’ra me ver e que nunca na vida me encontrou!»

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«Ama-se quem se ama e não quem se quer amar»



Este Livro
«Este livro é de mágoas. Desgraçados
que no mundo passais, chorai ao lê-lo!
Somente a vossa dor de Torturados
pode, talvez, senti-lo..., e compreendê-lo.

Este livro é para vós. Abençoados
os que o sentirem, sem ser bom nem belo!
Bíblia de tristes... Ó Desventurados,
que a vossa imensa dor se acalme ao vê-lo!

Livro de Mágoas... Dores... Ansiedades!
Livro de Sombras... Névoas... e Saudades!
Vai pelo mundo... (Trouxe-o no meu seio...)

Irmãos na Dor, os olhos rasos de água,
chorai comigo a minha imensa mágoa,
lendo o meu livro só de mágoas cheio!...»

Vaidade
«Sonho que sou a Poetisa eleita,
aquela que diz tudo e tudo sabe,
que tem a inspiração pura e perfeita,
que reúne num verso a imensidade!

Sonho que um verso meu tem claridade
para encher todo o mundo! E que deleita
mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!

Sonho que sou Alguém cá neste mundo...
Aquela de saber vasto e profundo,
aos pés de quem a terra anda curvada!

E quando mais no céu eu vou sonhando,
e quando mais no alto ando voando,
acordo do meu sonho... E não sou nada!...»

Eu
«Eu sou a que no mundo anda perdida,
eu sou a que na vida não tem norte,
sou a irmã do Sonho, e desta sorte
sou a crucificada... a dolorida...

Sombra de névoa ténue e esvaecida,
e que o destino amargo, triste e forte,
impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber por quê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
alguém que veio ao mundo p’ra me ver
e que nunca na vida me encontrou!»

Castelã
«Altiva e couraçada de desdém
vivo sozinha em meu castelo, a Dor...
Debruço-me às ameias ao sol-pôr
e ponho-me a cismar não sei em quem!

Castelã da Tristeza vês alguém?!...
E o meu olhar é interrogador...
E rio e choro! É sempre o mesmo horror
e nunca, nunca vi passar ninguém!

Castelã da Tristeza, porque choras,
lendo toda de branco um livro de horas,
à sombra rendilhada dos vitrais?...

Castelã da Tristeza, é bem verdade,
que a tragédia infinita é a Saudade!
Que a tragédia infinita é Nunca Mais!!»
Sonetos de Florbela Espanca, in “Sonetos Completos

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