sexta-feira, 8 de julho de 2016

Olga. Fernando Morais. «… tenho em minhas mãos o depoimento de uma sobrevivente de Ravensbruck que jura ter visto Olga ser fuzilada naquele campo de concentração. A segurança das declarações leva-me a crer que ela de facto viu…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) No Rio de Janeiro, o fotógrafo e pesquisador Paulo César Azevedo, que já vinha colaborando com o meu trabalho através de pesquisas em arquivos públicos decidiu requerer oficialmente ao Ministério das Relações Exteriores autorização para consulta a documentos reservados referentes à deportação de Olga. Um ano de espera e de reiteradas reclamações, entretanto, não foram suficientes para que as portas da burocracia do Itamaraty se abrissem. Eu já havia recebido do professor Ricardo Maranhão cópias de documentos que comprovavam o comprometimento de diplomatas brasileiros com a Gestapo, mas senti-me no direito de obter, oficialmente, toda a correspondência sobre o assunto. Foi preciso que interviesse pessoalmente na demanda o próprio chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro para que eu pudesse receber, ainda que previamente censurado, o material solicitado, ao contrário do que ocorrera no Itamaraty até a intervenção de Saraiva Guerreiro, obtive do Superior Tribunal Militar todas as facilidades para pesquisar nos seus arquivos. A partir da intermediação de seu sobrinho e meu velho amigo Flávio Bierrenbach, o almirante de esquadra Júlio Sá Bierrenbach, presidente do STM, determinou que se liberasse rigorosamente tudo o que havia nos arquivos do Tribunal sobre a revolta de 1935, incluindo aí documentação inédita, que se encontrava lacrada desde o encerramento do processo n.° 1 do Tribunal de Segurança Nacional. Vladimir Sacchetta, meu grande colaborador na parte brasileira deste livro, passou uma semana em Brasília vasculhando 70 volumes para selecionar centenas de documentos e ilustrações que, dias depois, seriam fotografados e reproduzidos por Paulo César Azevedo. Sacchetta, além disso, já me franqueara o arquivo de seu pai, Hermínio Sacchetta, e toda a documentação sobre o tema que havia recolhido em Londres, no Public Record Office.
A leitura de toda essa papelada me obrigaria a uma nova viagem, desta vez a Buenos Aires, onde a boa vontade do correspondente da revista Veja, Tosé Meirelles Passos, aproximou-me de Rodolfo Ghioldi, o velho dirigente do PC argentino e do Comintern. Apesar de devastado por um enfisema pulmonar que quase o impedia de falar (e que o mataria meses depois), Ghioldi recebeu-me em companhia de sua mulher, Carmen, para cinco horas de entrevista gravada, ao fim das quais presenteou-me com uma verdadeira relíquia que guardava no fundo de um cofre: um envelope contendo fotografias inéditas, feitas no Brasil em 1935. A falta de dinheiro e de tempo para empreender novas viagens obrigou-me a utilizar o correio e o telefone internacional para conferir dados ou buscar novas informações, foi assim que recorri ao professor Boris Koval, do Instituto do Movimento Operário, em Moscou, ao Memorial Yad Vashem, em Israel, e, por mais duas vezes, a Richard Gould, do National Archives. Simultaneamente, minha conta de telefone engordava com interurbanos dados a vários pontos do país para reconfirmar datas e dados ou mesmo para buscar a exacta precisão das palavras usadas num determinado diálogo. A tudo isto acrescentei documentos que chegavam às minhas mãos, remetidos por anónimos militantes comunistas de vários pontos do país, que, alertados por notas de jornais ou notícias de televisão sobre meu trabalho, generosamente tomavam a iniciativa de procurar-me, interessados não só em ajudar-me, mas em enriquecer a verdadeira arqueologia em que me meti para reconstituir com a maior fidelidade possível esta história de amor e de intolerância.
Este livro não é a minha versão sobre a vida de Olga Benario ou sobre a revolta comunista de 1935, mas aquela que acredito ser a versão real desses episódios. Não vai impressa aqui uma só informação que não tenha sido submetida ao crivo possível da confirmação. Qualquer incorrecção que for localizada ao longo desta história, entretanto, deve ser debitada exclusivamente à minha impossibilidade de confrontá-la com versões diferentes. E certamente haverá incorrecções, até porque eu próprio cheguei a avançar investigações a partir de versões aparentemente verdadeiras, mas que depois seriam desmentidas por novas pesquisas ou entrevistas. Um exemplo: tenho em minhas mãos o depoimento de uma sobrevivente de Ravensbruck que jura ter visto Olga ser fuzilada naquele campo de concentração. A segurança das declarações leva-me a crer que ela de facto viu alguma mulher sendo fuzilada lá e supôs tratar-se de Olga. A verdade, no entanto, é que Olga não foi fuzilada em Ravensbruck. Outro exemplo: um eminente historiador brasileiro assegurou-me que Paul Gruber não passou de um personagem de ficção inventado pelo Comintern para confundir os serviços de inteligência capitalistas. De novo, factos, documentos e testemunhos comprovaram que Gruber não só existiu em carne e osso como jogou um papel importante no desfecho da revolta de 1935. E houve, ainda, situações em que, colocado diante de versões contraditórias sobre determinado episódio, fui levado por investigações e evidências a optar por uma delas. Não apenas como referencial, nesses casos, mas para introduzir-me por inteiro na época em que esta história se passa, recorri à extensa bibliografia que vai ao final deste volume, de importância capital para quem pretenda conhecer melhor essa época. As raras passagens deste livro em que foi necessária a recriação referem-se sempre a cenários de determinados factos, nunca a factos em si». In Fernando Morais, Olga, 1985, Editora Ómega, 1993/1994, Companhia das Letras, 1985/1999, epub, 2014, ISBN 978-857-164-250-8.

Cortesia de CdasLetras/JDACT