quinta-feira, 7 de julho de 2016

Número Zero. Umberto Eco. «E note-se que o curso era sobre a tradução da Bíblia, no alemão de Lutero. Uma libidinagem, diziam os meus colegas, com o olhar atónito»

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«(…) Aquela luz verde induzia-me sonolências aquosas, diziam outro tanto os olhos dos assistentes. Eu conhecia o sofrimento deles. Passadas as duas horas, enquanto nós, estudantes, saíamos em enxame, o professor Di Samis mandava rebobinar a fita, descia do pódio, sentava-se democraticamente na primeira fila com os assistentes e, todos em conjunto, tornavam a ouvir as duas horas de lição, enquanto o professor assentia com satisfação a cada passagem que lhe parecia essencial. E note-se que o curso era sobre a tradução da Bíblia, no alemão de Lutero. Uma libidinagem, diziam os meus colegas, com o olhar atónito. No fim do segundo ano, tendo frequentado pouquíssimo, ousara requerer uma tese sobre a ironia em Heine (parecia-me consolador o seu tratamento de amores infelizes com o que me parecia um conveniente cinismo, estava a preparar-me, quanto a amores, para os meus): vós, jovens, vós, jovens, dissera-me Di Samis desconsolado, quereis atirar-vos de imediato aos contemporâneos… Compreendera, numa espécie de iluminação, que a tese com Di Samis estava perdida. Pensara então no professor Ferio, mais novo, que tinha fama de inteligência brilhante e se dedicava à época romântica e afins. Mas os colegas mais velhos tinham-me avisado de que, na tese, apanharia de qualquer maneira Di Samis como segundo arguente, e que não deveria abordar o professor Ferio de modo oficial porque Di Samis saberia imediatamente e jurar-me-ia ódio eterno.
Deveria ir por vias travessas, como se tivesse sido Ferio a pedir-me para fazer a tese com ele, e assim Di Samis virar-se-ia contra ele e não contra mim. Di Samis odiava Ferio, pela simples razão de o ter colocado na cátedra. Na universidade (então, mas acho que ainda hoje) as coisas passam-se ao contrário do mundo normal, não são os filhos que odeiam os pais, mas os pais que odeiam os filhos. Pensava que poderia abordar Ferio de modo quase casual, durante uma das conferências mensais que Di Samis organizava na sua aula magna, frequentadas por muitos colegas, porque conseguia convidar sempre estudiosos célebres. Mas as coisas passavam-se assim: imediatamente após a conferência, seguia-se o debate, que era monopolizado pelos docentes, depois saíam todos, porque o orador era convidado para o restaurante La Tartaruga, o melhor da zona, estilo meados de oitocentos, com os empregados ainda de fraque. Para ir do ninho da águia ao restaurante era necessário percorrer uma grande rua com arcadas, depois atravessar uma praça histórica, virar a esquina de um palácio monumental e, finalmente, atravessar uma segunda praceta. Ora, ao longo das arcadas, o orador avançava rodeado pelos professores catedráticos, seguido a um metro pelos auxiliares, a dois metros pelos assistentes e, a distância razoável, pelos estudantes mais corajosos. Chegados à praça histórica, os estudantes afastavam-se, na esquina do edifício monumental despediam-se os assistentes, os auxiliares atravessavam a praceta mas cumprimentavam à porta do restaurante, onde entravam apenas o convidado e os catedráticos.
Assim, o professor Ferio nunca soube da minha existência. Entretanto, eu perdera o amor aquele meio, deixara de o frequentar. Traduzia como um autómato, mas temos que aceitar o que nos dão, e passava para o dolce stil novo uma obra em três volumes sobre o papel de Friedrich List na criação do Zollverein, a União Aduaneira Alemã. Compreende-se porque tinha então deixado de traduzir do alemão, mas era já tarde para voltar à universidade. O problema é que não aceitas a ideia: continuas a viver convencido de que um dia ou outro vais acabar todos os exames e farás a tese. E, quando se vive a cultivar esperanças impossíveis, já se é um perdedor- Quando depois te apercebes disso, então deixas-te ir. Num primeiro momento, tinha encontrado trabalho como tutor de um rapaz alemão, demasiado estúpido para ir à escola, em Engadina. Excelente clima, solidão aceitável, e resisti um ano porque a remuneração era boa. Depois, a mãe do rapaz chegou-se-me bem perto, um dia, num corredor, dando-me a entender que não lhe desagradaria conceder-se (a mim). Tinha dentes salientes e uma sombra de bigode, e eu dei-lhe gentilmente a entender que não estava de acordo. Três dias depois, fui despedido, porque o rapaz não fazia progressos». In Umberto Eco, Número Zero, 2015, tradução de José Vaz Carvalho, Gradiva Publicações, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-616-643-4.

Cortesia de Gradiva/JDACT