terça-feira, 12 de julho de 2016

A Primeira Crónica Portuguesa. José Mattoso. «… corresponde a maneira como o cronista introduz o relato de Badajoz, como um acrescento, depois de uma breve avaliação de todo o reinado: depois desto pollo mall e pollo pecado que fez a sua madre…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Vejamos as outras sequências. A relativa autonomia das duas primeiras é menos evidente do que a do Bispo Negro. Além do que acabamos de dizer acerca da possível origem do episódio da intervenção de Soeiro Mendes em S. Mamede, acrescentemos que não se pode ignorar que a época em que Filipe Moreira situa a redacção da Primeira Crónica, o fim do reinado de Afonso III ou o principio do de Dinis I, coincide exactamente com aquela em que se avolumam as resistências aristocráticas ao cerceamento dos privilégios senhoriais, e começam a surgir textos que exprimem o dever que o rei tem de reconhecer o que deve às linhagens pela conquista do reino. Assim acontece, por exemplo, no prólogo do Livro Velho de Linhagens. O seu autor, conta os linhagens dos bons homens filhos d’algo do reino de Portugal dos que devem a armar e criar e que andaram a la guerra a filhar o reino de Portugal. Na mesma ordem de ideias, o conde Pedro apesar de tão próximo do rei, ao apresentar as razões que o levaram a reunir as suas genealogias, diz, em quinto lugar, por os rreys auerem de conhecer aos uiuos com merçees por os merecimentos e trabalhos e gramdes lazeiras que rreçeberom os seus auoos em se guaanhar esta terra de Espanha per elles.
O tópico haveria de se manter e exprimir durante muito tempo. Continuava a ser ideologicamente fundamental basear a reivindicação dos direitos senhoriais na colaboração que as linhagens mais antigas tinham prestado ao rei na conquista do território aos mouros. Como se sabe, as tensões entre a coroa e a nobreza senhorial não cessam de crescer até rebentar a guerra civil de 1319-1325. A conexão destas rivalidades com as anedotas depreciativas para com Afonso Henriques registadas pelos Livros de Linhagens é fundamental para esclarecer o aparecimento e a transmissão de narrativas breves mais ou menos isoladas umas das outras mas de inegável valor ideológico. A comparação deste género literário com o género cronístico só pode enriquecer o conhecimento dos fenómenos de criação literária medieval. Não vejo, pois, nenhuma razão para ignorar ou desprezar as minhas investigações nesse sentido. Com efeito, é importante ter em conta o ambiente de rivalidade entre o rei e as linhagens mais importantes para compreender o alcance da criação de uma narrativa cronística destinada (aceitemos a tese de Filipe Moreira) a exaltar a memória dos reis antecedentes, sobretudo o primeiro deles. Mas o facto de os materiais usados nem sempre lhe serem favoráveis torna ainda mais interessante o resultado. Com efeito, dir-se-ia que o redactor, não podendo, ou não querendo, excluir tradições contraditórias acerca de Afonso Henriques, acaba por mostrá-lo como personagem marcado pela ambiguidade. Em primeiro lugar, na narrativa da batalha de S. Mamede, acentua, como vimos, o decisivo apoio das linhagens e o papel de adjuvante de Soeiro Mendes (hesita em manter a designação de amo atribuída pela Crónica de Veinte Reyes a Soeiro Mendes, ausente da IV Crónica Breve e do Livro de Linhagens, mas acaba por omiti-la. O problema prende-se com a lenda de Egas Moniz que noutro trabalho considerei como criação do trovador João Soares Coelho, para esquecer a sua origem de uma linha bastarda e justificar a sua ascensão na corte de Afonso III. Seja como for, a dualidade dos nomes parece indicar a existência de versões alternativas num estádio posterior da transmissão textual. É evidente que a versão original da Primeira Crónica favorece a família da Maia ou a de Sousa, Soeiro Mendes, e não a de Riba Douro, Egas Moniz. Mas ficamos sem saber se lhe atribuía ou não a função da criação). Por mais favorável que queira ser, o cronista não deixa de informar que o primeiro rei de Portugal precisou do apoio dos nobres para entrar na posse da herança paterna, e que sairia derrotado se ela não tivesse existido. Mais ainda, a tentativa de lutar sozinho é qualificada de falta de siso. Aproxime-se este passo da qualificação de «esquivo» usada pelo cronista para caracterizar o comportamento inicial do seu herói, ao fazer um certo balanço de todo o reinado.
Em segundo lugar, é também ambivalente o sentido atribuído ao comportamento de Afonso Henriques para com sua mãe, apesar de ser esse mesmo comportamento que constitui o fio condutor da intriga que envolve o primeiro reinado da Primeira Crónica. O cronista utilizou, sem dúvida, este episódio como elemento de ligação entre as sequências definidas pelos materiais que reuniu, incluindo a narrativa sobre o destino trágico do seu herói, mas não nega, antes acentua, que a derrota em Badajoz se deveu a uma maldição ou um castigo divino. A maldição funciona de facto como a chave da coerência narrativa. A memória construída pelo primeiro cronista português não só não apaga por completo visões divergentes acerca do rei fundador, conforme os meios sociais que a interpretaram, mas também faz prevalecer como sentido fundamental da vida do herói o destino marcado pela maldição. Com efeito, à artificialidade formal da frase com que se liga a história do Bispo Negro à narrativa de S. Mamede, e o apostolico ouvio dizer…, corresponde a maneira como o cronista introduz o relato de Badajoz, como um acrescento, depois de uma breve avaliação de todo o reinado: depois desto pollo mall e pollo pecado que fez a sua madre…» In José Mattoso, A Primeira Crónica Portuguesa, Revista Medievalista, Ano 5, Número 6, 2009, Instituto de Estudos Medievais, Lisboa, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT