sexta-feira, 24 de junho de 2016

Portugal é uma Ilha. Alexandre Borges. «António, acabado de regressar ao país, apresenta logo uma primeira candidatura ao trono, mas a pretensão é-lhe prontamente negada pelo regente: ‘o seu tio e inimigo de estimação, cardeal Henrique’»

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António, o seu Rei
«(…) Pêro Valdez fitou a mulher. Não estava certo de que ela continuasse a gritar ou se era apenas ele mesmo que a ouvia ainda na sua cabeça: estamos por dom António! O capitão olhou uma última vez aquele cenário de desolação, o que restava de 1000 homens bem preparados e armados fugindo como podiam para os barcos, carregando mortos e feridos, implorando clemência a um adversário que não conhecia convenções de guerra. Valdez desceu por fim do morro de onde contemplara o massacre e apressou-se também ele. Lançou-se ao mar e nadou furiosamente para o bote que o levaria de regresso ao galeão. Já a bordo, rosnou que se levantasse o ferro. Os que faltavam nadaram de modo ainda mais aflito. Agora, na calmaria absurda das águas, olhou a baía em panorâmica. Fixou um ponto negro que talvez fosse Brianda Pereira e amaldiçoou o nome que ela gritava e repetia, António. António.
António nasceu em 1531, em Lisboa. Era filho do infante Luís e, portanto, neto do rei Manuel I. Pelo lado masculino da família, não havia, pois, dúvidas acerca da realeza do sangue que lhe corria nas veias; a polémica que no futuro se levantaria em torno da sua pretensa legitimidade enquanto possível candidato ao trono prendia-se com a identidade da mãe. Violante Gomes tinha por alcunha a Pelicana e, se uns diziam que se tratava de uma mulher de famílias da pequena nobreza por quem o infante Luís se teria apaixonado e com a qual casara em segredo, outros defendiam que descendia, na verdade, de famílias judias e que era, portanto, uma cristã-nova. Era uma acusação grave, tendo em conta que ainda não tinham passado assim tantos anos desde que Manuel I expulsara do país os judeus e entregara as suas crianças ao cuidado de famílias cristãs. Essa dúvida e o preconceito que acarretava, somados ao facto de Luís ter sido prior da Ordem dos Hospitalários em Portugal, estando por isso impossibilitado de casar sem especial dispensa do papa, fizeram com que, durante muito tempo, António não fosse olhado como mais do que um mero bastardo. Com a família real bem distribuída por muitos filhos e filhas oficiais, nada levava a crer que, um dia, viesse a entrar nas cogitações para o lugar de rei.
António cresceu rodeado de figuras religiosas, desde logo o tio, cardeal Henrique, mas também frei Bartolomeu dos Mártires, seu mentor durante a formação em Coimbra, e os padres jesuítas que o instruíram depois em teologia, na cidade de Évora. Não estranhou, pois, que fosse ordenado diácono, professasse na Ordem de Malta e recebesse, tal como o pai, o priorado do Crato. Inesperado foi o que se passou depois: António recusa as ordens de presbítero e decide viver no século, ser mundano ou, como outros dirão, devasso. O comportamento poderá explicar, porventura, uma obra de 1592, intitulada Psalmi Confessionales, verdadeiro acto de contrição cuja autoria é atribuída a António. Por agora, o facto era este: tinha comprado uma guerra pela qual pagaria até ao fim dos seus dias: em 1565, é expulso do priorado pelo papa Pio IV e ganha a inimizade eterna do tio Henrique e de dona Catarina, a regente.
Com a reputação desfeita dentro de portas, encontra-se uma saída airosa para o neto de Manuel I: é nomeado governador de Tânger e, em breve, estava de partida para África, a fim de assumir as novas funções. E é justamente em África que se encontrará com o momento determinante da sua vida e da História do país... A 4 de Agosto de 1578, António de Portugal é um dos 16 000 soldados que sobrevivem ao horror de Alcácer Quibir. Um dos 16 000 que vêem morrer 9000 companheiros e desaparecer o rei Sebastião. Um dos 16 000 que caem em mãos inimigas e são lançados nos calabouços do sultão. A ascendência real e os cargos que tinha ocupado faziam dele um dos prisioneiros mais preciosos de todo o lote, mas, com astúcia e muita fortuna, António conseguiria convencer os captores precisamente do contrário. De que se tratava de um dos mais pobres e anónimos soldados portugueses, acabando por ser um dos primeiros a obter a libertação e a troco de um resgate bem mais pequeno do que pagariam os familiares de muitos companheiros. Como sabemos, o rei Sebastião tinha desaparecido sem deixar descendência. Aliás, tinha desaparecido levando consigo a dinastia de Avis, pois o pai havia já morrido, bem como o avô e todos os tios. Para encontrar o novo rei de Portugal era, pois, necessário que se saltasse para fora da ortodoxia e rezar para que tudo corresse bem. António, acabado de regressar ao país, apresenta logo uma primeira candidatura ao trono, mas a pretensão é-lhe prontamente negada pelo regente: o seu tio e inimigo de estimação, cardeal Henrique. O passado de António volta à liça: o seu comportamento errante, mas, sobretudo, a origem duvidosa, putativo filho de uma cristã-nova. O próprio cardeal assume o trono numa inacreditável fuga para a frente. O problema da sucessão continuava todo lá; tinha apenas sido adiado por alguns momentos». In Alexandre Borges, Histórias Secretas de Reis Portugueses, Casa das Estrelas, 2012, ISBN 978-972-46-2131-9.

Cortesia de CdasLetras/JDACT