domingo, 19 de junho de 2016

O Pensamento de Teixeira de Pascoaes. Jorge Coutinho. «O próprio Pascoaes disso estava consciente quando escrevia: … “seguir a ordem cronológica, é lançar na desordem, quase sempre, a obra de um poeta”»

Cortesia de wikipedia e jdact

Estudo hermenêutico e crítico
«(…) A obra de Pascoaes é um nunca acabar de tesouros escondidos, prontos a encher de encantamento aquele que souber desencantá-los sob a leve camada de cinza vulcânica que os cobre (in Génio Nocturno de Pascoaes). Conforme a natureza e o objectivo, não nos ocuparemos dos aspectos estéticos e estritamente literários da obra em si mesmos, ainda que, tratando-se de um pensamento genesicamente concebido e dado à luz em modo poético, não possamos separar o filosófico do poético. Não é nossa intenção tratar propriamente da poesia e da literatura filosóficas do autor de Sempre, mas daquilo que desde já podemos considerar como a sua filosofia poética. Enquanto verdadeira ou genesicamente poética, todavia, e não apenas enquanto expressa em poesia. Por pensamento de Pascoaes entenderemos, pois, aqui aquilo que vários críticos e comentadores têm designado simplesmente como a sua filosofia e que, em boa verdade, se constitui justamente como um pensamento filosófico-poético ou uma filosofia sui generis. O seu sentido e valor epistemológico essenciais procuraremos determiná-lo em capítulo próprio. À partida, e no próprio título que demos ao nosso estudo, evitando prematuras e escusadas ambiguidades, preferimos designá-lo simplesmente por O Pensamento de Teixeira de Pascoaes. Sem dúvida que nele se incluem componentes e derivações, ora mais desenvolvidas ora mais fragmentárias, nas linhas de um pensamento social e político, ideológico, religioso, ético, pedagógico, e até mesmo estético. No âmbito da nossa exposição, porém, estes aspectos parcelares serão apenas contemplados no seu essencial sentido, enquanto integrantes do corpus pascoaesiano de pensamento. A outros, ou a outras oportunidades, deixamos a tarefa de ir atrás dessas componentes sectoriais ou específicas em estudos de aprofundamento e desenvolvimento. Para atingir o nosso objectivo, precisámos naturalmente de utilizar um caminho ou um método adequado. Além do que decorre da natureza das coisas, ele foi-nos expressamente sugerido pelo próprio Pascoaes quando diz em Os Poetas Lusíadas: … compete ao leitor e aos antologistas subordinar as criações do Poeta a uma ordem natural e compreensível, que parta do corpo para a alma e da terra para o céu; isto é do menor para o maior. O objectivo de uma suma expositivamente sistemática e integradora reclamava essa subordinação do pensamento do Poeta-Pensador a uma ordem natural e compreensível. Isso, porém, só podia dar-se num momento segundo do nosso trabalho. Para lá chegarmos, precisámos primeiro de ler, com preocupação de compreender, a totalidade da obra, pela ordem cronológica da sua produção. Ler com a preocupação de compreender significou essencialmente, para nós, explorar hermeneuticamente o sentido dos textos, entendidos como terra onde aquele se enraíza e oculta e de onde se abre para um céu de esplendor e desocultação. Mais importante que reproduzir fotograficamente o corpo morto da obra escrita foi, seguindo, ainda a sugestiva imagem do Poeta, penetrar-lhe a alma que o anima e encontrá-la vivendo para além da morte daquele. Ler por ordem cronológica, por sua vez, significou tentar captar o sentido evolutivo de um pensamento a fazer-se e jamais dado como feito.
É verdade que a obra de Pascoaes aparece como por demais complexa, anárquica e mesmo incoerente, para poder ser reduzida a uma exposição sistematizante (tentar uma sistematização do seu pensamento é desfocar a coerência interna da sua obra, por vezes racionalmente incoerente, mal informada ou infundada, in A filosofia em Pascoaes). Como se deduz, isto é verdade, se na tentativa de sistematização implicarmos a redução do poético pensamento pascoaesiano a um pensamento abstractamente conceptual, o que, se averigua epistemologicamente ilegítimo. No entanto, do seu estudo mais aprofundado fica-nos a convicção de que a anarquia e a incoerência são mais superficiais e aparentes do que profundas e reais, pertencendo mais à génese da obra e sua tradução em texto escrito do que ao pensamento em si mesmo. O próprio Pascoaes disso estava consciente quando escrevia: … seguir a ordem cronológica, é lançar na desordem, quase sempre, a obra de um poeta. Neste dito está subentendida a intuição do Autor de que, na aparente desordem e incoerência em que foi sendo dada à luz, anda latente uma unidade solidária de fundo, essencialmente dinâmica, a presidir e a determinar a sua construção como obra. Aliás, não poderemos prescindir do pressuposto de que se trata de uma obra que, no essencial, é formalmente poético-literária e de que, nela, a lógica do discurso não é a da razão aristitélica ou filosófico-científica mas a do génio intuitivo e espontâneo do poeta. Se lhe acresce um notável esforço de racionalização, ele é conseguido por vias que todavia não são as do discurso filosófico científico.
Foi justamente esta característica formal que, no essencial, acabou por ditar, na elaboração deste trabalho, a necessidade de uma Primeira Parte, introdutória ao pensamento propriamente dito. Tornava-se indispensável, antes de tentar compreender este, estudar os pressupostos dessa compreensão: a génese da obra desde a terra-mãe do seu Autor-poeta e do seu contexto espácio-temporal, o seu modo próprio de pensar e de se exprimir e a particular problemática hermenêutica daí decorrente. Pareceu-nos, por outro lado, que o pensamento, cuja matéria se expõe na Segunda Parte, ficaria melhor compreendido se fechássemos o círculo (sempre necessariamente inacabado e paradoxalmente aberto) da sua compreensão com uma síntese das mais relevantes marcas formais que naquela matéria se detectam e o caracterizam. Com este trabalho, a que nos atrevemos, além do mais, confiados em alguma prévia formação científica de base na dupla área da filosofia e da literatura, esperamos contribuir não só para um melhor conhecimento da obra de pensador do Poeta de Gatão, mas também, por acréscimo, para a história da filosofia em Portugal e mesmo, no caso com particular incidência, para aquilo que, no panorama da nossa cultura, se vai desenhando como história da filosofia portuguesa. Como escreveu um dos seus admiradores, José Marinho, a exegese e hermenêutica da obra de Pascoaes, que, em boa medida, se mantém ainda secreta [...] afiguram-se decisivas [...] para o destino da nossa filosofia radicada e universal». In Jorge Coutinho, O Pensamento de Teixeira de Pascoaes, Estudo hermenêutico e crítico, Dissertação de Doutoramento em Filosofia, Braga, UC Portuguesa, 1994.

Cortesia da UCPortuguesa/Braga/JDACT