domingo, 26 de junho de 2016

O Amante de lady Chatterley. D. H. Lawrence. «Algumas de suas fantasias, da forma como aparecem no romance, eram as de um rapaz romântico. A época era de tamanha ignorância sexual que hoje é difícil lembrar ou compreender»

jdact e wikipedia

«Lady Chatterley está tão viva na imaginação popular quanto lady Godiva nua, atravessando Coventry montada em seu cavalo e coberta apenas pela cortina dos cabelos. Mas lady Godiva foi uma heroína da pureza e da integridade, causando na maioria das pessoas vergonha de sequer lhe dar uma espiada, enquanto lady Chatterley sempre pode ser motivo de chacota ou de alguma piada suja: lady Chatterley e suas proezas sexuais. Graças a Lawrence, basta a qualquer comediante mencionar um guarda-caça para provocar risadas; e quanta ironia, porque Lawrence pregava o sexo como uma espécie de sacramento e, mais ainda, um sacramento capaz de nos salvar dos efeitos da guerra e dos males de nossa civilização. Denegrir o sexo, anatematizou ele, é o crime do nosso tempo, porque precisamos é de ternura pelo corpo, pelo sexo, precisamos… com ternura. Era assim que ele falava, mas o que terá acontecido? Ele virou representante da obscenidade e do riso abafado, pelo menos no nível popular. Muitos romances não ganham nada quando relacionados a seu tempo. Entre tantos, O grande Meaulnes é eterno, e quem quer conhecer a biografia de seu autor? E o mesmo acontece com O jardim secreto. Precisamos conhecer a história pessoal de Dickens para apreciar suas obras? Já outros romances, geralmente do tipo mais polémico, só podem ser compreendidos no contexto, e O amante de lady Chatterley é um deles. Lê-lo sem nenhuma outra informação, especialmente na forma febril da terceira versão, só pode levar o leitor a se perguntar do que estará falando toda essa pregação tão enfática, especialmente nos dias de hoje, quando é tão difícil sequer lembrar de quanto era hipócrita a sociedade em que Lawrence escrevia. Era puritana, reprimida e dissimulada, e, como sempre ocorre em tempos assim, o riso sujo nunca estava muito distante. As três versões de O amante de lady Chatterley foram escritas nos quatro anos anteriores à morte do autor. Foi sua maneira de reescrever completamente o texto, não se limitando a uma revisão mas chegando a uma visão renovada. Tendia a dar mais valor à vivacidade do novo que à reelaboração do texto. Podemos achar que a terceira versão não seja a melhor, e é o que muita gente pensa; no entanto, é a versão apresentada aqui, e a que Lawrence decidiu apresentar por último. É a mais emocional, insistente, urgente: talvez tenha sido a intensidade deste romance que valeu a Lawrence sua reputação de escritor obcecado por sexo. E, então, quais eram as circunstâncias? Primeiro, o autor estava morrendo de tuberculose, mas vivia, como dizemos hoje, em estado de negação, embora a doença tivesse sido devidamente diagnosticada e parte da mente de Lawrence soubesse da verdade. Ele sempre sofrera de fraqueza do peito: naqueles dias, a expressão era quase sempre um eufemismo para tuberculose. Ainda jovem tivera pneumonias, bronquites, gripes e tosses de todo tipo. Parece ter sido contaminado pela grande epidemia de gripe de 1918-9. Ainda assim, recusava-se a admitir a tuberculose e falava de suas bronquites, de suas gripes, de suas tosses, dizia que contraíra um resfriado, tudo, menos tuberculose. O que era estranho num homem que valorizava tanto a verdade, defendendo a clareza de expressão e pensamento, particularmente em questões físicas. Antes ainda de O amante de lady Chatterley, Lawrence já tinha adquirido a reputação de cruzado do sexo. Seus romances e contos eram banidos, confiscados, causavam escândalo. Às vezes os comentários às suas obras tinham mais um tom de lástima que de irritação; tamanho talento, mas aliado a tamanha crueza: este era muitas vezes o tom que a crítica literária usava para se referir a ele e à sua obra. Mulheres apaixonadas deixara as pessoas especialmente chocadas. Lawrence sempre exibia uma disposição belicosa, pronto à defesa e ao ataque, sendo defendido pelos outros. Tinha o temperamento que acompanha a tuberculose: hipersensível, excitável. Esses doentes são muito irritáveis, dados a explosões de mau humor. Sabem que seu tempo é curto. Cada arquejo, cada tosse os faz lembrar de sua morte. A tosse incessante de Lawrence em seus últimos anos de vida lhe valeu a expulsão de alguns hotéis, obrigando-o a escolher com cuidado os lugares onde se hospedava. Na juventude Lawrence se orgulhava de seu corpo, apesar da fraqueza do peito. O que transparece em seus primeiros romances, especialmente em The white peacock [O pavão branco], é o retrato de um jovem perfeitamente à vontade no campo, com amigos, atento a cada pássaro, animal, insecto e planta. Ele podia ter dito, como John Clare, amo as coisas naturais quase à loucura. Com John Clare, o jovem Lawrence estava na companhia certa. Este jovem orgulhoso do corpo mas acometido de fraqueza do peito se tornou o homem cujo corpo em decomposição o enchia de sofrimento e desprezo por si mesmo. Eram essas as muitas emoções tumultuadas e exasperantes que actuavam nesse homem muito doente quando ele escreveu e reescreveu O amante de lady Chatterley. Sua mulher Frieda vinha mantendo um caso amoroso com um italiano lascivo, e Lawrence sabia de tudo. Frieda nunca fora uma mulher muito dada ao tacto, portanto não fazia esforço para esconder seus encontros clandestinos. E não poupava em nada os sentimentos do marido. Dizem que ela contou a amigos que Lawrence estava impotente desde 1926. A tuberculose tem dois efeitos violentos e contraditórios: acentua a sexualidade e suas fantasias febris, mas provoca impotência. A vida sexual desses dois sempre foi ruidosa e tumultuada; o que jamais constituiu segredo. Os amigos, visitantes e acólitos enamorados que Lawrence atraía eram informados dos vários estágios de seu amor e de sua vida sexual, em prosa e verso, Lawrence tratava de tudo, do que pensava, do que fazia, o tempo todo, em cartas para amigos de toda parte, e em suas conversas. Frieda se queixava da sexualidade dele em conversas com as irmãs, com os ex-amantes, com amigos. Ele não a satisfazia, na verdade era mais homossexual que a média. Frieda era uma mulher que tivera e teria muitos amantes; não era nem um pouco ignorante sobre o sexo e se comportava com absoluta desinibição: levou Lawrence para a cama poucos minutos depois que se conheceram. A despeito de todo o pragmatismo e de toda a experiência da mulher, Lawrence cultivava ideias não muito distantes de uma verdadeira mística. Sempre acreditou que a única coisa que servia no amor físico era o orgasmo recíproco. Gozamos juntos desta vez, ou palavras semelhantes, figuram em mais de um de seus contos. Algumas de suas fantasias, da forma como aparecem em O amante de lady Chatterley, eram as de um rapaz romântico. A época era de tamanha ignorância sexual que hoje é difícil lembrar ou compreender. Lawrence desconhecia o clitóris, que via como um bico. Um bico que arranhava e rasgava, como nas put… velhas. Para ele, o clitóris era uma arma, usada contra o homem. E esse nível de ignorância era comum. O clitóris só era mencionado sem ênfase nos manuais de sexo, isso quando era mencionado. Lembro que, durante a guerra, um jovem aviador me contou que uma certa moça, amiga comum, tinha uma coisa que parecia um pé de coelho lá em baixo, bem peluda, com que eu adoro brincar, do que ela gosta muito também, confidenciou-me. De maneira que não era preciso conhecer bem a coisa para lhe extrair algum prazer. Quanto a mim, fiquei sabendo do clitóris através de Balzac, não de sua existência ou de seus usos, mas que fazia parte do léxico do amor, com um certo destaque. Lawrence sabia de tudo sobre o ponto G, embora jamais deva ter ouvido o termo e provavelmente achasse abominável a ideia de sair à sua procura ou lhe dar um nome. O orgasmo vaginal no que tem de melhor, da maneira como é descrito por ele, certamente informado por uma de suas amantes, é tão fidedigno quanto a ignorância do que ele diz sobre o clitóris. Mas aqui nos encontramos em meio a um verdadeiro campo de batalha emocional: Lawrence gozava depressa demais, diz Frieda, e, por outro lado, queixa-se Lawrence, ela precisava sistematicamente provocar seu próprio orgasmo com a ajuda do incómodo clitóris. Mas, visto que as ocorrências sexuais serviam de marcos do progresso em sua guerra polémica permanente, o que os dois diziam em seus momentos de queixa não devia ser mais que a metade dos factos. Quando Lawrence descobriu o sexo anal, as coisas começaram a andar bem, pelo menos para ele, embora o apelido que usasse para a mulher fosse saco de mer… Se as cenas de sexo de O amante de lady Chatterley falam sempre de uma mescla de ilusão e maravilha, as conversas no rancho de Taos, as brigas, os fuxicos eram francamente repulsivos. Enquanto Lawrence conquistava e chocava o mundo com seus romances e contos, os visitantes do rancho quase sempre se viam decepcionados e mesmo tomados de repulsa pelo casal, devido à violência e, ocasionalmente, à grosseria declarada da situação». In D. H. Lawrence, O Amante de lady Chatterley, Introdução de Doris Lessing, Penguin, 1999, 2006, Editora Schwarcz, Companhia das Letras, 2006, ISBN 978-856-339-767-6.

Cortesia de Penguin/CdasLetras/JDACT