sábado, 25 de junho de 2016

Infiel. Ayaan Hirsi Ali. «O estranho passou um ano na casa com o casal. Durante todo esse ano, a relva continuou verdejando e as chuvas voltaram, de modo que não havia razão para seguir viagem. A esposa teve outro filho na cabana»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Aprenda bem isso, diz minha avó, brandindo uma vara na minha direcção. Os nomes lhe darão força. São a sua linhagem. Se os honrar, eles a manterão viva. Se os desonrar, você vai ser prescrita. Não será ninguém. Há-de levar uma vida desgraçada e há-de morrer sozinha. Repita. As crianças somalis precisam decorar sua genealogia: é mais importante do que quase tudo. Sempre que depara com um desconhecido, um somali pergunta: quem és? E os dois começam a retroceder em suas linhagens distintas até encontrarem um ancestral em comum. Se tiver o mesmo antepassado que um somali, mesmo que seja na oitava geração, os dois estão ligados como primos. São membros da grande família que forma o clã. Um oferece comida e hospitalidade ao outro. Embora o filho pertença ao clã do pai, é sempre útil recordar os detalhes da estirpe da mãe, caso viaje e precise da ajuda de um estranho.
Por isso, embora o suor escorresse por nossas costas naquelas longas tardes, o meu irmão mais velho, Mahad, e eu aprendíamos a recitar em uníssono os nomes das duas genealogias. Posteriormente, minha avó começou a ensinar Haweya, minha irmã caçula, a fazer o mesmo, mas não conseguiu. Haweya era viva e inteligente, porém muito mais irrequieta do que nós. A verdade é que esse conhecimento ancestral parecia inútil para nós, crianças modernas, criadas em casas de concreto, com telhados sólidos, por trás de paredes firmes e cercadas. Geralmente fugíamos, esquivando-nos das fortes pancadas que minha avó procurava dar nas nossas pernas com as varas arrancadas da árvore. Tratávamos era de trepar na árvore e ficar brincando nos galhos. Acima de tudo, adorávamos escutar as histórias da minha avó quando a mãe estava cozinhando no fogareiro a carvão e nós nos deitávamos em uma esteira debaixo da nossa árvore. Essas histórias nunca eram narradas quando a gente queria. Chegavam de surpresa. A avó podia estar entrançando uma esteira, resmungando consigo e, de repente, a gente percebia que o murmúrio tinha se transformado em um conto de fadas.
Era uma vez um rapaz nómada casado com uma bela mulher, e eles tinham um filho, ela começava. Os três sabíamos que devíamos nos calar instantaneamente e fingir que estávamos ocupados com alguma coisa; a menor interrupção bastava para irritá-la, e a avó então ralhava connosco e voltava a entrelaçar as finas hastes de palha seca que passava dia e noite costurando para fazer grandes e caprichados tapetes. As chuvas não vieram, e o nómada empreendeu a travessia do deserto em busca de pastagens em que pudesse se fixar com a família. Pouco depois de iniciar a caminhada, chegou a um trecho de relva verde e fresca. Lá havia uma cabana feita de galhos fortes, coberta de esteiras recém-tecidas e toda varrida. A cabana estava vazia. Ele voltou para junto da mulher e contou que, com apenas uma jornada, tinha encontrado o lugar perfeito. Mas, dois dias depois, ao voltar à pastagem com a esposa e o bebé, deu com um estranho postado à entrada da cabana. Não era alto, era um homem atarracado, de dentes muito brancos e pele lisa. Haweya estremecia de prazer. E de medo. O estranho disse: tem mulher e filho. Fique com a casa, seja bem-vindo, e sorriu. O jovem nómada achou aquele sujeito admiravelmente simpático e agradeceu; convidou-o a visitá-lo quando quisesse. Mas a esposa sentiu um mal-estar com o desconhecido. E o bebé começou a chorar assim que o viu. Naquela noite, um animal entrou sorrateiramente na cabana e arrebatou a criança do berço. O nómada tinha comido bem e dormia um sono profundo, não ouviu nada. Que desgraça. O desconhecido foi visitar o casal para dar os pêsames. Mas, quando ele falou, a mulher reparou nos pedacinhos de carne vermelha entre seus dentes e viu que um daqueles dentes fortes e brancos estava quebrado.
O estranho passou um ano na casa com o casal. Durante todo esse ano, a relva continuou verdejando e as chuvas voltaram, de modo que não havia razão para seguir viagem. A esposa teve outro filho na cabana, outro lindo bebé. Porém, uma vez mais, quando a criança completou apenas uma estação de idade, um bicho apareceu de madrugada e a levou entre os dentes. Dessa vez, o pai chegou a persegui-lo, mas era muito lerdo para alcançá-lo. Na terceira vez, o nómada se engalfinhou com o animal, lutou o quanto pôde, mas acabou vencido. E o monstro lhe devorou mais um filho! Por fim, ao perder o terceiro bebé, a mulher disse ao marido que ia deixá-lo. E assim aquele nómada idiota acabou perdendo tudo! Muito bem, o que acabam de aprender?, gritava a minha avó. Sabíamos a resposta. Que o nómada era um bom vagabundo. Ficou na primeira pastagem que encontrou, mesmo sabendo que havia algo errado com ela. Foi tolo: não soube interpretar os sinais, sinais que o bebê e a mulher perceberam instintivamente. Na verdade, o estranho era aquele que se coça com uma vara, o ser monstruoso que se transformava em hiena e comia a criança. Tínhamos entendido. O nómada fora ingénuo, vagaroso, fraco e covarde. Merecia mesmo perder tudo». In Ayaan Hirsi Ali, Infiel, 2006, tradução de Luís Araújo, Editora Schwarcz, Companhia das Letras, 2007, ISBN 978-853-591-109-1.

Cortesia de CdasLetras/JDACT