sábado, 25 de junho de 2016

Histórias íntimas. Mary del Priore. «Mas que significado teria o nu, na Idade Moderna? A nudez era erótica? Havia, então, uma grande diferença entre nudez e nu. A nudez se referia àqueles que fossem despojados de suas vestes»

jdact e wikipedia

O corpo. A igreja. O pecado
«(…) Nuas em pelo, as americanas exibiam-se, também, nas múltiplas gravuras que
circulavam sobre o Novo Mundo, com seus seios pequenos, os quadris estreitos, a cabeça coroada por plumagens ou frutas tropicais. Os gravadores do Renascimento as representavam montadas ou sentadas sobre animais que os europeus desconheciam: o tatu, o jacaré, a tartaruga. Mas, aí, a nudez não era mais símbolo de inocência, mas de pobreza: pobreza de artefactos, de bens materiais, de conhecimentos que pudessem gerar riquezas. Comparadas com as mulheres que nas gravuras representavam o continente asiático ou a Europa, nossa América era nua, não porque sensual, mas porque despojada, singela, miserável. As outras alegorias, a Ásia e a Europa, mostravam-se ornamentadas com tecidos finos, jóias e tesouros de todo tipo. Mesmo a África, parte do mundo mais conhecida no Ocidente cristão do que a América, trazia aparatos, expondo a gordura. Gordura, então, sinónimo de beleza. O retrato das americanas, além da magreza e da nudez, ostentava sempre um signo temido: os ossos daqueles que tinham sido devorados nos banquetes antropofágicos. Nudez, pobreza e antropofagia andavam de mãos dadas. As interpretações, então, se sobrepunham: passou-se da pureza à pobreza. E daí ao horror por essa gente que comia gente. Pior. À medida que os índios resistiam à chegada dos estrangeiros, aprofundava-se sua satanização. Para combate-los ou afastá-los do litoral, nada melhor do que compará-los a demónios. A nudez das índias estava, pois, longe de ser erótica.
Desde o início da colonização lutou-se contra a nudez e aquilo que ela simbolizava. Os padres jesuítas, por exemplo, mandavam buscar tecidos de algodão, em Portugal, para vestir as crianças indígenas que frequentavam suas escolas: mandem pano para que se vistam, pedia padre Manoel da Nóbrega em carta aos seus superiores. Aos olhos dos colonizadores, a nudez do índio era semelhante à dos animais; afinal, como as bestas, ele não tinha vergonha ou pudor natural. Vesti-lo era afastá-lo do mal e do pecado. O corpo nu era concebido como foco de problemas duramente combatidos pela Igreja nesses tempos: a luxúria, a lascívia, os pecados da carne. Afinal, como se queixava padre Anchieta, além de andar peladas, as indígenas não se negavam a ninguém. A associação entre nudez e luxúria provocava os castigos divinos. Ameaçavam-se as pecadoras que usavam decotes. Eis por que a luxúria foi associada a uma profusão de animais imundos: sapos, serpentes ou ratos que se agarravam aos seios ou ao sexo das mulheres lascivas. Nas igrejas, pinturas demonstravam os diabos que recebiam as almas pecadoras, nuas em pelo, com golpes de pá e tridentes. Nos livros de oração com imagens, o justo morria sempre de camisola. O pecador, despido! Enterravam-se as pessoas vestidas, para ressuscitarem com roupas que as identificassem.
Mas que significado teria o nu, na Idade Moderna? A nudez era erótica? Havia, então, uma grande diferença entre nudez e nu. A nudez se referia àqueles que fossem despojados de suas vestes. O nu remetia não à imagem de um corpo transido e sem defesa, mas ao corpo equilibrado e seguro de si mesmo. O vocábulo foi incorporado, no século XVIII, às academias de ciências artísticas, onde a pintura e a escultura faziam do nu o motivo essencial de suas obras. A realidade, porém, era menos artística. Viajantes estrangeiros que passavam pelo Brasil, nessa época, ficavam chocados com a nudez dos escravos nas ruas. As poucas blusas que escorregavam pelo ombro, os seios nus, magros e caídos, escorrendo peito abaixo. E, contrariamente aos nossos dias, não havia lugar do corpo feminino menos erótico ou atractivo do que os seios. As chamadas tetas, descritas nos tratados médicos como membros esponjosos próximos ao coração, tinham uma só função: produzir alimento. Acreditava-se que o sangue materno cozinhava com o calor do coração, tornando-se branco e leitoso. Os seios jamais eram vistos como sensuais, mas como instrumentos de trabalho de um sexo que devia recolher-se ao pudor e à maternidade. O colo alvo, o pescoço como torre de marfim cantado pelos poetas, pouco a pouco começa a cobrir-se. E isso até nas imagens sacras. Estátuas da Virgem Maria em estilo barroco, antes decotadas, ou a própria Virgem do Leite, que no Renascimento expunha os bicos, desaparecem de oratórios e igrejas. Nossa Senhora passa a cobrir-se até o queixo, quando não era vestida pelas próprias devotas». In Mary del Priore, Histórias íntimas, Sexualidade e erotismo na história do Brasil, Editora Planeta do Brasil, São Paulo, CDD-302-309-81, 2011, ISBN 978-857-665-608-1.

Cortesia de EPlaneta/JDACT