quinta-feira, 2 de junho de 2016

Herege. Ayaan Hirsi Ali. «Para muitos desses muçulmanos, após anos de dissonância parece haver apenas duas alternativas: deixar o islão de uma vez, como eu fiz, ou abandonar a insípida rotina de observância diária»

jdact e wikipedia

«(…) Os muçulmanos de Medina acreditam que assassinar um infiel é obrigatório se ele não se converter voluntariamente ao islão. Pregam a jihad e glorificam a morte pelo martírio. Os homens e mulheres que aderem a grupos como Al-Qaeda, EI, Boko Haram e Al-Shabaab na minha Somália natal, para citar apenas quatro dentre centenas de organizações jihadistas, são todos muçulmanos de Medina. E são minoria esses muçulmanos de Medina? Ed Husain estima que apenas 3% dos muçulmanos do mundo concebem o islã nesses termos belicosos. Mas acontece que 3% de mais de 1,6 bilhão de crentes, 23% da população mundial, são 48 milhões: parece mais do que suficiente. Com base em levantamentos das atitudes em relação à sharia em países muçulmanos, calculo que a parcela é significativamente maior. Também acredito que ela está crescendo, conforme muçulmanos e convertidos ao islamismo gravitam em torno de Medina. Seja como for, os muçulmanos desse grupo não são susceptíveis à persuasão ou envolvimento pelos liberais ocidentais ou reformistas muçulmanos. Eles não são o público visado por este livro. São a razão de ele ter sido escrito.
O segundo grupo, sem dúvida alguma a maioria em todo o mundo muçulmano, compõe-se daqueles que são leais ao credo fundamental e fazem as suas devoções com fervor, mas não se sentem inclinados a praticar violência. Chamo-os de muçulmanos de Meca. Como os cristãos ou judeus devotos que seguem os serviços religiosos diariamente e cumprem regras religiosas na alimentação e no vestuário, os muçulmanos de Meca concentram-se na observância religiosa. Fui criada como uma muçulmana de Meca. Assim como a maioria dos muçulmanos, de Casablanca a Jacarta. Mas os muçulmanos de Meca têm um problema: as suas crenças religiosas vivem em incómoda tensão com a modernidade, o complexo das inovações económicas, culturais e políticas que não só remodelou o mundo ocidental mas também transformou tremendamente o mundo em desenvolvimento à medida que o Ocidente o exportou. Os valores racionais, seculares e individualistas da modernidade são fundamentalmente corrosivos para as sociedades tradicionais, sobretudo para as hierarquias baseadas em género, idade e status herdado.
Em países de maioria muçulmana, pode ser limitada a capacidade da modernidade para transformar as relações económicas, sociais e (em última instância) as de poder. Nessas sociedades, os muçulmanos podem usar telefone móvel e computador sem necessariamente ver um conflito entre a sua fé religiosa e a mentalidade racionalista e secular que possibilitou a tecnologia moderna. No Ocidente, contudo, onde o islão é uma religião minoritária, os muçulmanos devotos vivem numa condição que se poderia descrever muito bem como dissonância cognitiva. Encurralados entre dois mundos de crenças e experiências, esses muçulmanos travam uma luta diária para seguir o islamismo no contexto de uma sociedade secular e pluralista que contesta os valores e crenças islâmicos a cada momento. Muitos só conseguem resolver essas tensões isolando-se em enclaves (que cada vez mais são autogovernados). Chama-se encasulamento essa prática na qual os imigrantes muçulmanos tentam barrar as influências externas, permitindo apenas a educação islâmica para os seus filhos e desligando-se da comunidade não muçulmana maior.
Para muitos desses muçulmanos, após anos de dissonância parece haver apenas duas alternativas: deixar o islão de uma vez, como eu fiz, ou abandonar a insípida rotina de observância diária em favor do credo islâmico inflexível oferecido por aqueles que rejeitam explicitamente a modernidade ocidental, os muçulmanos de Medina. Espero trazer esse segundo grupo de muçulmanos, os que estão mais próximos de Meca do que de Medina, para um diálogo sobre o significado e a prática da sua fé. Espero que eles sejam um dos principais públicos deste livro. Reconheço, é claro, que esses muçulmanos provavelmente não dariam atenção a uma conclamação pela reforma doutrinária vinda de alguém que eles julgam apóstata e infiel. Mas talvez reconsiderem se eu puder persuadi-los a pensar em mim não como uma apóstata, e sim como uma herege: alguém dentre um número crescente de pessoas nascidas no islão que procura pensar, com uma postura crítica, a respeito da fé em que fomos criados. É com esse terceiro grupo, do qual apenas uns poucos deixaram de vez o islão, que hoje me identifico». In Ayaan Hirsi Ali, Herege, tradução de Laura Motta e Jussara Simões, Editora Schwarcz, Companhia das Letras, 2015, ISBN 978-854-380-373-9.

Cortesia de ESchwarcz/CLetras/JDACT