terça-feira, 21 de junho de 2016

Fernando Pessoa. Sónia Louro. «As palavras estão mortas porque nunca as enviei. Para quê enviá-las? Do que me teriam servido? Estou só e pronto! Que dia é esse hoje que escrevi?»

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Cai chuva do céu cinzento
«Desde hoje estou só, escrevi eu um dia à mamã, mais querida para mim do que algum dia eu fui para ela. Outrora, criança, via-me reflectido na humidade azulácea dos olhos da mamã, completamente desprovido da consciência de que aquele momento era irrepetível. O momento quase palpável em que o seu sentimento por mim era tão vívido quanto aquele azul que me mirava ou o som metálico do aro daquelas outras crianças que brincavam lá fora e que eu via através do gradeamento de ferro da janela. Era a janela por onde eu via o mundo, ou acaso seria uma outra. Não, era esta. Era a mesma por onde observei o féretro do meu pai afastar-se. Era a janela por onde observei tudo até já não ter nada que observar ou razão por que observar. Observava tudo como a um mistério, como a alma de criança observa. Observava até que o mistério esmoreceu, ou, porventura, a janela. A janela é hoje outra, por mais que eu tente que seja a mesma.
Recordo a laje da janela, era fria e eu cria. Cria em coisas que hoje já nem sei, mas que recordo e já nem choro. Recordo as palavras que trocámos, a mamã e o seu menino, que relaciono vagamente comigo. Essa ideia vaga é um ténue fio de Ariadne para mim mesmo, que já alguém cortou. Recordo também com a mesma saudade as outras, as palavras que não trocámos, mas que lhe enviei por vapores lentos percorrendo mares lentos entre as duas grandes margens que nos apartavam. Nada regressou. Memórias, tristezas, manhãs de luz baça após uma madrugada de chuva, o prazer de lhe ter escrito..., tudo se perdeu. Tudo se perdeu, não no vórtice do tempo e das mudanças que tudo suga para o fundo de um lugar sem endereço, mas simplesmente porque eram minhas. Eram minhas as palavras e as cartas e a mamã nada guardou daquele tempo que ficou por ter sido escrito. Por um paradoxo filial, aqui mesmo, guardo-as todas. Guardo até hoje todas as cartas que ela me escreveu quando a nossa separação se tornou também geográfica. Contudo, quando ela regressou a Portugal com todos os seus haveres encerrados naqueles baús magoados de viajante perdida, a verdade desatou-se sobre mim como uma manhã sobre a cidade: eu perdera a mamã muito cedo, naquele dia, nos seus olhos azuis, à janela.
Nem uma folha amarrotada, que arrependida e saudosa do filho tivesse salvado do desaparecimento eterno, aqueles baús pesados escondiam. Não voltarei a dizer aquelas palavras que lhe escrevi. Ninguém voltará a lê-las, a começar por ela que provavelmente nunca as releu. Resta-me o consolo de pelo menos as ter lido. Isso já é alguma coisa. Desde hoje estou só, escrevi eu um dia à mamã. Já vo-lo tinha dito? Escrevi-o num dia com lágrimas em que os meus olhos me ardiam e as palavras me fugiam, mas estas estão hoje tão mortas quanto podem estar as palavras que nunca foram lidas. Estas palavras não morreram porque a mamã as deitou fora, estariam assim, talvez, menos mortas, porque ao menos uma vez alguém as teria lido. As palavras estão mortas porque nunca as enviei. Para quê enviá-las? Do que me teriam servido? Estou só e pronto!
Que dia é esse hoje que escrevi? O dia em que o meu pai morreu, quando eu tinha cinco anos? Ou seria um dia do ano seguinte, quando o meu irmão morreu? Ou terá sido quando, com sete anos, julguei que via morrer a minha pátria à medida que o vapor se afastava do cais? Ninguém me dirá que dia foi e eu não saberei qual foi». In Sónia Louro, Fernando Pessoa, Saída de Emergência, 2014, ISBN 978-989-637-674-1.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT