sexta-feira, 24 de junho de 2016

As Três Leonores. Alexandre Borges. «Como se tivesse aprendido, por fim, a lição, o rei amainaria os ânimos nos anos seguintes. Por uma vez, deixou de olhar para Castela e concentrou-se nos assuntos internos»


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«(…) A notícia correu o reino e passou a fronteira. João Lourenço foi procurar vingança a Castela, sem grandes resultados. Depois, tomou o assunto em mãos e tentou envenenar o rei. Acabou descoberto e espoliado, por isso, de todos os bens. O povo também não aceitava aquele casamento e começava a duvidar da lucidez deste rei. Naquela que é talvez a primeira grande manifestação da voz popular de que há registo na História de Portugal, uma multidão de 4000 pessoas comparece diante do rei Fernando para lhe fazer saber que não aceitaria que se casasse com aquela mulher, aquela terceira Leonor acerca de quem corriam os piores rumores e a quem o povo se habituaria a referir apenas como a Aleivosa. O fraco Fernando estremeceu. Jurou que sim, que assim faria, que se o seu povo não queria aquela rainha, ele encontraria outra, e saiu, prometendo mais esclarecimentos para dali a dias. Porém, na data combinada, o rei não compareceu. O povo ficou a olhar para um palanque vazio e temendo o pior. Nos tempos seguintes, veria confirmarem-se esses receios: Fernando casa, de facto, com Leonor Teles no Mosteiro de Leça do Balio e manda matar os chefes que tinham organizado a contestação.
Em tudo isto, faltava ainda um pormenor: a quebra de nova promessa de casamento com uma princesa de Castela, isto é, a quebra de um tratado de paz com um antigo inimigo de guerra. Felizmente para Fernando, Henrique de Trastâmara, esse bastardo sanguinário que matara o próprio irmão para chegar ao trono, parecia ter acalmado naqueles poucos anos que haviam passado. Fechou os olhos ao caso e anulou a cláusula do casamento constante do acordo de Alcoutim. Em 1372, em Tui, assinou-se novo tratado de paz e Henrique casou rapidamente a sua Leonor com outro homem: Carlos III, de Navarra. Em português prosaico e contemporâneo, Fernando tinha acabado de escapar de boa, provavelmente porque Henrique já percebera que mais lhe valia um partidário navarro do que uma aliança com um rei cuja palavra tinha a solidez duma gota de água. Fernando, porém, era dado a uma feroz atracção pelo abismo...
Poucos meses passados da emenda ao tratado, chega à península o duque de Lencastre, um filho do rei de Inglaterra que tinha pretensões ao trono de Castela. Como de costume, precisava de apoios para lançar a candidatura e decidiu bater à porta do rei de Portugal... Certo. O inglês não tinha obrigação de conhecer a fundo a situação diplomática da península, até porque ela mudava bem depressa, mas bastaria uma criança que aqui vivesse para saber que a única resposta possível a dar ao forasteiro era um não. Bastaria uma criança para perceber que Fernando já fora inimigo de Henrique, depois amigo e, por pouco, não voltara a ser inimigo. Que esse mesmo rei já tinha desbaratado o antigo aliado de Aragão e deixado o país de mão estendida com as suas loucuras de guerra. Mas isso seria uma criança e quem estava no trono era Fernando, e Fernando decidiu dizer que sim. Que o duque de Lencastre contasse com ele. Que o apoiaria numa guerra com Castela.
O acordo foi formalizado a 10 de Julho de 1372 pelo Tratado de Tagilde e, depois, actualizado pelo Tratado de Westminster. Estalava a segunda guerra fernandina. Com o país empobrecido e o exército desgastado pela guerra anterior, a contenda foi profundamente mais desequilibrada do que a primeira. Henrique invadiu Portugal e, deparando-se-lhe tão fraca resistência, avançou depressa, e, a 23 de Fevereiro de 1373, já tinha alcançado Lisboa. À beira da capitulação, valeu a Portugal a intervenção do cardeal Guido de Bolonha, que exigia o fim da violência e que as partes se entendessem num novo acordo de paz. Com efeito, o tratado foi assinado pouco depois, a 24 de Março, em Santarém, mas, na sua precária condição negocial, Fernando não conseguiria mais do que um acordo desequilibrado e dispendioso, cuja única virtude era libertar o país da ocupação estrangeira.
Como se tivesse aprendido, por fim, a lição, o rei amainaria os ânimos nos anos seguintes. Por uma vez, deixou de olhar para Castela e concentrou-se nos assuntos internos. Teve três filhos de Leonor; dois morreram pequenos, mas sobreviveu a mais velha, dona Beatriz. Focou-se na administração do reino. Trocou o ataque pela defesa e, assim, mandou construir novas muralhas em volta de Lisboa e do Porto, reparar muitos dos castelos destruídos pelo tempo e pelas guerras e fazer outros novos, de raiz. Revelou, afinal, ser dotado de alguma visão estratégica e apostou no desenvolvimento da marinha. Mandou construir novas embarcações e autorizou para esse mesmo fim o abate de árvores para a obtenção da madeira necessária. Isentou de impostos a aquisição de novos navios e a importação de ferragens e demais apetrechos para a construção de outros. E criou ainda a Companhia das Naus, à qual todos os navios pagavam uma percentagem dos lucros trazidos em cada viagem, criando um fundo que servia depois para cobrir os prejuízos daqueles que naufragassem ou necessitassem de reparação». In Alexandre Borges, Histórias Secretas de Reis Portugueses, Casa das Estrelas, 2012, ISBN 978-972-46-2131-9.

Cortesia de CdasLetras/JDACT