terça-feira, 28 de junho de 2016

A Varanda do Frangipani. Mia Couto. «Depois me deitavam terra com suavidade de quem veste um filho. Não usavam pás. Apenas serviço de mãos. Paravam quando a areia me chegava aos olhos»

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Moçambique: essa imensa varanda sobre o Índico... In Eduardo Lourenço, 1995

«(…) Lembrei o caso do camaleão. Todos sabem a lenda: Deus enviou o camaleão como mensageiro da eternidade. O bicho demorou-se a entregar aos homens o segredo da vida eterna. Demorou-se tanto que deu tempo a que Deus, entretanto, se arrependesse e enviasse um outro mensageiro com o recado contrário. Pois eu sou um mensageiro às avessas: levo recado dos homens para os deuses. Me estou demorando com a mensagem. Quando chegar ao lugar dos divinos já eles terão recebido a contrapalavra de outrem.
Certo era que eu não tinha apetência para herói póstumo. A condecoração devia ser evitada, custasse os olhos e a cara. Que poderia eu fazer, fantasma sem lei nem respeito? Ainda pensei reaparecer no meu corpo de quando eu era vivo, moço e felizão. Me retroverteria pelo umbigo e surgiria, do outro lado, fantasma palpável, com voz entre os mortais. Mas um xipoco que reocupa o seu antigo corpo arrisca perigos muito mortais: tocar ou ser tocado basta para descambalhotar corações e semear fatalidades. Consultei o pangolim, meu animal de estimação. Há alguém que desconheça os poderes deste bicho de escamas, o nosso halakavuma? Pois este mamífero mora com os falecidos. Desce dos céus aquando das chuvadas. Tomba na terra para entregar novidades ao mundo, as proveniências do porvir. Eu tenho um pangolim comigo, como em vida tive um cão. Ele se enrosca a meus pés e faço-lhe uso como almofada. Perguntei ao meu halakavuma o que devia fazer. Não quer ser herói? Mas herói de quê, amado por quem? Agora, que o país era uma machamba de ruínas, me chamavam a mim, pequenito carpinteiro!? O pangolim se intrigou: não lhe apetece ficar vivo, outra vez? Não. Como está a minha terra, não me apetece. O pangolim rodou sobre si próprio. Perseguia a extremidade do corpo ou afinava a voz para que eu lhe entendesse? Porque não é com qualquer que o bicho fala. Ergueu-se sobre as patas traseiras, nesse jeito de gente que tremexia comigo. Apontou o pátio da fortaleza e disse: veja à sua volta, Ermelindo. Mesmo no meio destes destroços nasceram flores silvestres. Não quero regressar para lá. É que aquele será, para sempre, o teu jardim: entre pedra ferida e flor selvagem.
Me irritavam aquelas vagueações do escamudo. Lhe lembrei que eu queria era conselho, uma saída. O halakavuma ganhou as gravidades e disse: você, Ermelindo, você deve remorrer. Voltar a falecer? Se nem foi fácil deixar a vida da primeira vez! Seguindo a tradição de minha família não deveria ser sequer tarefa fazível. Meu avô, por exemplo, durou infinidades. Com certeza, não morreu ainda. O velho deixava a perna de fora do corpo, dormia junto de perigosas folhagens. Oferecia-se, desse modo, à mordedura das cobras. O veneno, em doses, nos dá mais vivência. Falava assim. E parecia a vida lhe dava razão: cada vez ele ficava mais cheio de feitio e forma. O halakavuma se parecia com meu avô, teimoso como um pêndulo. O bicho insistia-me: escolha um que esteja próximo para acabar. O lugar mais seguro não é no ninho da cobra-mamba? Eu devia emigrar em corpo que estivesse mais perto de morrer. Apanhar boleia dessa outra morte e dissolver-me nessa findação. Não parecia difícil. No asilo não faltaria quem estivesse para morrer. Quer dizer que eu vou ter que fantasmear-me por um alguém? Você irá exercer-se como um xipoco. Deixe-me pensar, disse eu. No fundo, a decisão já tinha sido tomada. Eu fingia apenas ser dono da minha vontade. Nessa mesma noite, eu estava transitando para xipoco. Pelas outras palavras, me transformava num passa-noite, viajando em aparência de um outro alguém. Caso reocupasse meu próprio corpo eu só seria visível do lado da frente. Visto por detrás não passaria de oco de buraco. Um vazio desocupado. Mas eu iria residir em corpo alheio. Da prisão da cova eu transitava para a prisão do corpo. Eu estava interdito de tocar a vida, receber directamente o sopro dos ventos. De meu recanto eu veria o mundo translucidar, ilúcido. Minha única vantagem seria o tempo. Para os mortos, o tempo está pisando nas pegadas da véspera. Para eles nunca há surpresa. No princípio, ainda depositei dúvida: esse hala-kavuma dizia a verdade? Ou inventava, de tanto estar longe do mundo? Há anos que ele não descia ao solo, suas unhas já cresciam a redondear umas tantas voltas. Se mesmo as patas dele tinham saudade do chão, por que motivo sua cabeça não fantasiava loucuras? Mas, depois, eu me fui deixando ocupar pela antecipação da viagem ao mundo dos vivos.
Me enchi tanto desta vontade que até sonhei sem chuva nem noite. O que sonhei? Sonhei que me enterravam devidamente, como mandam nossas crenças. Eu falecia sentado, queixo na varanda dos joelhos. Descia à terra nessa posição, meu corpo assentava sobre areia que haviam retirado de um morro de muchém. Areia viva, povoada de andanças. Depois me deitavam terra com suavidade de quem veste um filho. Não usavam pás. Apenas serviço de mãos. Paravam quando a areia me chegava aos olhos. Então, espetavam à minha volta paus de acácias. Tudo em aptidão de ser flor. E para convocar a chuva me cobriam de terra molhada. Assim eu me aprendia: um vivo pisa o chão, um morto é pisado pelo chão. E sonhei ainda mais: após a minha morte, todas as mulheres do mundo dormiam ao relento. Não era apenas a viúva que estava interdita a abrigar-se, como é hábito da nossa crença. Não. Era como se todas as mulheres tivessem, em mim, perdido o esposo. Todas estavam sujas por minha morte. O luto se estendia por todas as aldeias como um cacimbo espesso. As lamparinas iluminavam o milho, mãos trémulas passavam com o cadinho do fogo entre os espigueirais. Limpavam-se os campos dos maus-olhados. No dia seguinte, mal acordei me pus a abanar o halakavuma. Queria saber quem era a pessoa que ia ocupar. É um que está para vir. Um? Qual? É um de fora. Vai chegar amanhã. Depois, acrescentou: foi pena não me ter lembrado antes. Uma semana antes e tudo estaria já resolvido. Há uns poucochinhos dias mataram um grande, lá no asilo. Que grande? O director do asilo. Foi morto ao tiro. Por motivo desse assassinato vinha da capital um agente da polícia. Eu que me instalasse no corpo desse inspector e seria certo que morreria. Você vai entrar nesse polícia. Deixe o resto por minhas contas. Quanto tempo vou ficar lá, na vida? Seis dias. É o tempo do polícia ser morto». In Mia Couto, A Varanda do Frangipani, 1996, Editorial Caminho, colecção Outras Margens, 2000, ISBN 978-972-211-050-1.

Cortesia de ECaminho/JDACT