terça-feira, 14 de junho de 2016

A Menina que Nunca Chorava. Torey Hayden. «Fiquei horrorizada quando tomei conhecimento do facto, porque essas duas horas após o termo das aulas estavam destinadas ao meu trabalho de planeamento e preparação do dia seguinte…»

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«(…) Seguiu-se um momento de silêncio enquanto eu acabava de a secar e lhe pentear o cabelo. Sheila estava mais pensativa. A minha mamã não gostar tanto de mim, disse por fim. A sua voz era concentrada, mas ao mesmo tempo, calma e directa. Era como se estivesse a falar de uma das outras crianças da turma, de um trabalho escolar, ou até mesmo do tempo. A minha mamã levar Jimmie e ir para a Califórnia. Jimmie ser o meu irmão e ter quatro anos, mas ter apenas dois anos, quando a minha mamã partir. Seguiu-se um hiato de alguns instantes e Sheila examinou de novo a cicatriz. No princípio, a minha mamã levar Jimmie e eu, só que ficar farta de mim. Depois, abriu a porta do carro e empurrar-me para fora e uma pedra cortar-me a perna neste sítio.
Aquelas primeiras semanas com Sheila foram como uma viagem na montanha russa. Havia dias em que estávamos nas nuvens. O espanto encantado com este novo mundo em que se via envolvida revelava em Sheila uma personagem pequena e radiante. Ansiava por ser aceite no grupo e, ao seu modo desajeitado, tentava desesperadamente agradar-nos, tanto a Anton como a mim. Noutros dias, contudo, ia-se abaixo, por vezes em voo picado. Apesar dos progressos que fizera logo desde o início, Sheila continuava a ser capaz de ter comportamentos verdadeiramente arrepiantes. O mundo era um sítio mau, na opinião de Sheila. Vivia segundo o princípio de agir contra os outros, antes que estes agissem contra ela. A vingança, em particular, era lancinante. Se alguém enganasse Sheila ou simplesmente a tratasse de uma forma arbitrária, ela retribuía de uma maneira precisa e dolorosa. Numa ocasião, causou danos no valor de centenas de dólares na sala de aula de outra professora como retaliação por esta a ter repreendido no refeitório. O que nos salvou for o horário dos autocarros ser tão complicado. Alguns meses antes de ter ingressado na minha aula, o comportamento de Sheila fizera com que tivesse sido excluída de dois autocarros escolares e o único que passou a estar disponível foi o autocarro do liceu. Infelizmente, este só passava pelo campo de imigrantes duas horas após o fim das nossas aulas. Assim, até esse momento, Sheila tinha de ficar na escola comigo e com Anton. Fiquei horrorizada quando tomei conhecimento do facto, porque essas duas horas após o termo das aulas estavam destinadas ao meu trabalho de planeamento e preparação do dia seguinte, e não podia imaginar como conseguiria dar conta do recado quando, ao mesmo tempo, tinha de olhar por uma criança tão imprevisível como Sheila. No entanto, não havia outra alternativa.
Inicialmente, deixava-a entretida com os brinquedos da sala de aula, enquanto eu ficava sentada tentando fazer o meu trabalho; porém, ao fim de quinze minutos sozinha, inevitavelmente, Sheila vinha ter comigo e ficava de pé enquanto eu trabalhava. Fazia sempre muitas perguntas. O que é isso? Para que é aquilo? Porque estás a fazer isso? Porque é que isto é assim? O que fazes com essa coisa? Constantemente. Até que compreendi que passávamos muito tempo a conversar. Por conseguinte, comecei a fazer leituras com ela. Havia algo de constrangedor ao partilhar a leitura de um livro com Sheila. Aconchegávamo-nos uma à outra no cantinho de leitura enquanto me preparava para ler em voz alta, e ela ficava tão expectante com as experiências narradas no livro que todo o seu corpo se retesava de entusiasmo. O Ursinho Puf, O Pirata da Perna-de-Pau e Peter Pan revelavam uma magia mais forte do que a Escrava do Amor. No entanto, entre todos os livros, foi o Principezinho, de Saint-Exupéry, que conquistou o coração de Sheila. Adorava aquele pequeno personagem divertido e admirável. Compreendia perfeitamente a sua alteridade. Cheio de maturidade num dado momento, imaturo no momento seguinte; ora profundo, ora carinhoso, mas sempre, sempre à margem, o principezinho tinha um significado profundo para Sheila. Lemos o livro tantas vezes que Sheila já era capaz de recitar de cor alguns excertos. Quando não estávamos a ler, ficávamos simplesmente a conversar. Sheila debruçava-se sobre a mesa e observava-me a trabalhar ou fazíamos uma pausa em determinado momento da história para lhe explicar algum conceito; e a partir daí a conversa derivava, nunca voltando totalmente à história que estava a ser narrada. Aos poucos ia sabendo mais coisas sobre a vida de Sheila no campo de imigrantes, e sobre o seu pai e as amantes com quem muitas vezes regressava a casa a altas horas da noite. Sheila contou-me que lhe escondia as garrafas de cerveja atrás do sofá para o impedir de beber demais, e que se levantava muitas vezes, após o pai adormecer, para apagar os cigarros que ele deixava acesos. Fiquei a saber mais sobre o irmão, a mãe e o seu abandono. E fiquei a conhecer a outra escola de Sheila e os seus outros professores, o que fazia para ocupar os dias e as noites, quando não estava connosco. Em contrapartida, eu abria-lhe o meu mundo e dava-lhe a esperança de que também viesse a ser o dela.
Aquelas duas horas eram uma dádiva de Deus. Durante todo o seu curto tempo de vida, Sheila tinha sido ignorada, negligenciada e, muitas vezes, ostensivamente rejeitada. Tinha muito pouca experiência vivida com adultos responsáveis e carinhosos e em ambientes estáveis; e naqueles momentos, ao descobrir a sua existência, Sheila ansiava por essa experiência. A azáfama da sala de aula durante o dia, pelos cuidados que implicava, não me permitia dedicar a atenção exclusiva de que Sheila necessitava para recuperar tudo o que lhe faltara. Era no delicado silêncio da tarde, quando estávamos a sós, que ela ousava deixar para trás os seus velhos comportamentos e experimentava alguns dos meus». In Torey Hayden, 1995, A Menina que Nunca Chorava, tradução de Fernando Antunes, Editorial Presença, 2007, 2012, Lisboa, ISBN 978-972-233-804-2.

Cortesia de EPresença/JDACT