terça-feira, 14 de junho de 2016

A Jesuíta de Lisboa. Titus Muller. «Há anos que está habituado a apostar tudo numa única carta. Eu esfalfei-me a trabalhar até chegar a este posto, fiz sacrifícios, fi-los a minha vida inteira. Nem sequer entendo bem por que razão arrisco tudo isso pelo seu dinheiro»

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«(…) A cabina estava, com efeito, seca. Antero sentiu inveja. Parecia que o comandante tinha celebrado um pacto com a tempestade, como se ele fosse misteriosamente mantido a salvo, enquanto as forças da natureza tentavam acabar com a vida do resto da tripulação do navio. Talvez, porém, se desse apenas o caso de a cabina do comandante ter a melhor localização possível naquela embarcação. Antero pousou o lampião sobre a mesa e curvou-se sobre o pesado baú colocado por baixo das janelas da popa. Inseriu cuidadosamente a chave na fechadura. Rodou-a uma vez e depois uma outra. A fechadura abriu-se. Ergueu a tampa do baú. Era ali que estavam os pacotes dos membros da tripulação. A qualquer marinheiro era permitido fazer um pouco de tráfico por sua própria conta desde que as quantidades envolvidas se mantivessem pequenas. Para que não chegasse a haver contrabando, cabia aos comandantes guardar a mercadoria. Antero pôs de lado alguns desses pacotes. Retirou do baú o seu embrulho e colocou-o em cima da mesa. Uma após a outra, foi enovelando as tiras de cabedal que serviam de invólucro. As folhas de tabaco crepitavam. Um suave aroma ascendeu às suas narinas, provocando um leve prurido no nariz. Antero levantou as folhas de cima, pondo a descoberto as de baixo, e apalpou-as. Eram grandes. Estavam secas, tanto que delas até se esmigalhavam pequenos pedaços. Iriam indispor os funcionários da Coroa. O rei português reclamava para si o monopólio do comércio do tabaco. Se os guardas portuários revistassem a bagagem dos membros da tripulação e a dele, o passageiro, deparar-se-lhes-ia aquela descoberta, enfurecer-se-iam e isso desviar-lhes-ia a atenção. Deste modo, a grande carga de tabaco no porão não seria posta a descoberto.
Sob as folhas de tabaco havia ele arrumado os seus livros, os dois volumes da nova obra de Carl Nilsson Lineu, chamada Species Plantarum. Inseridas no meio desses livros havia folhas com os desenhos que ele mesmo, Antero, fizera. Destacavam-se das folhas impressas do livro e acrescentara-as sempre que acreditava ter encontrado uma planta que não figurava entre as espécies descritas por Lineu. Dava-lhe gozo descobri-las. Em tempos havia tido esse prazer mais amiúde, nessa altura tinha de se contentar com uma publicação chamada Hortus Cliffortianus, na qual apenas surgiam descritas duas mil e quinhentas espécies. Actualmente era já mais difícil conseguir encontrar uma omissão no minucioso trabalho de investigação realizado pelos botânicos. Um dia haveria de enviar os seus resultados a Lineu, para a Suécia, e talvez este viesse a usá-los para completar a sua obra. A par dos livros e das folhas de tabaco estava o pacote com os seus pertences. Abriu-o e retirou de lá o seu relógio de bolso de prata. O mostrador indicava seis horas e trinta e nove minutos. Era uma sensação estranha ter noção da hora certa ali no meio do mar. O comandante precisava de saber as horas com exactidão para poder determinar a longitude, quatro minutos equivaliam a um grau, por isso olhava regularmente para o relógio do navio. Para além disso, porém, qual era afinal o significado de um minuto no mar?
O relógio fora a única recordação que mantivera. A única coisa que ainda o ligava àquele perverso passado. A voz do comandante, com o seu tom mal-humorado, fez-se ouvir nas suas costas. Lá em baixo a água atingiu duas caixas, nessas a mercadoria ficou molhada. O resto permanece intacto. A minha parte mantém-se inalterada. Isso vemos depois. Antero nem sequer se virou. Ia passando os dedos sobre a superfície arredondada do vidro do mostrador do relógio e através das janelas da popa olhava para o mar. O comandante Wrightson chegou-se. Aproximou-se tanto que Antero pôde sentir o calor da respiração dele na nuca. Escute lá, a si poderá dar gozo não cumprir a lei. Para mim não é bem assim! Se vierem passar revista ao meu navio e encontrarem as caixas, nunca mais poderei voltar a navegar. Vão é mandar-me executar! Antero virou-se então. As pontas dos narizes de ambos quase se tocaram. Acha então que nesse caso eu serei poupado? Durante esta viagem, as nossas vidas dependem uma da outra. E bem que gostaria de saber se a minha continua em mãos em que eu possa confiar. E que tem a perder? Há anos que está habituado a apostar tudo numa única carta. Eu esfalfei-me a trabalhar até chegar a este posto, fiz sacrifícios, fi-los a minha vida inteira. Nem sequer entendo bem por que razão arrisco tudo isso pelo seu dinheiro. Os pêlos esbranquiçados das suíças do comandante tremiam e a pele da sua face, coberta de poros grossos, enrubescera. Antero voltou a virar-se para a mesa e embrulhou os seus pertences.
O melhor é recompor-se rapidamente. Quando chegarmos ao porto será demasiado tarde, voltou a colocar o embrulho no baú. E, no que diz respeito à minha vida, não pense que me comecei a dedicar ao contrabando por vontade. Eu quis seguir os estudos. Quis ler e aprofundar os conhecimentos sobre o modo como o mundo, esta gigantesca máquina, funciona, mas impediram-me de fazê-lo. Acha, porventura, prosseguiu ele, virado para o baú, que não tenho sonhos? Tenho-os, tal como você. Há-de chegar o dia em que me deixo destas viagens, e nessa altura começará para mim a vida que sempre quis, aquela que me negaram o direito a ter.
Os marinheiros iam baixando baldes presos a cordas, os quais dançavam sobre as ondas, e não era fácil recolher água quando a embarcação navegava velozmente. Repetidas vezes desceram os homens baldes presos a cordas até estes acertarem nas vagas no ângulo correcto e nelas mergulharem. Içavam-nos de seguida, já cheios, e lançavam a água sobre as tábuas do convés. Com a ajuda de vassouras varriam-na de novo para fora, fazendo-a passar pela abertura abaixo da amurada. A sujidade ia fluindo para o exterior. Dali a pouco o convés brilhava como um espelho. Os cabos foram reunidos e arrumados. Marinheiros treparam às velas quadradas e verificaram se tudo estava em conformidade. O comandante Wrightson preparou o Fortune para entrar no porto de Lisboa. Aparentemente pretendia disfarçar a culpa que sentia. Queria, por meio do seu navio, projectar para o exterior uma imagem de pureza, para que a terrível mácula no porão passasse despercebida. Que cobarde! Se alguma coisa conseguisse alcançar com aquilo seria apenas que o navio desse ainda mais nas vistas. Que sorte tinham aqueles que contrabandeavam à grande, dirigindo os seus próprios navios! Para esses não havia comandantes medrosos que lhes estragassem os planos». In Titus Muller, A Jesuíta de Lisboa, 2010, tradução de Paulo Rêgo, Casa das Letras, 2011, ISBN 978-972-462-047-3.

Cortesia Cletras/JDACT