quarta-feira, 8 de junho de 2016

A Esmeralda Partida. Fernando Campos. «Abanavam-te, esfregavam-te as mãos, os pés. Diogo Almeida agarrou-te a barba: acorda, senhor!, clamou num vozeirão. De imediato abriste os olhos, totalmente desperto: prior, essa mão seria mais honesta noutro lugar»

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«(…) Ninguém melhor do que eu engodava ele o pedido requererá as coisas de teu filho Jorge, que tanto recomendas ao senhor duque... Talvez o senhor duque..., me queira acrescentar... Vai consentiste quase a morrer. Álvaro Castro, teu cunhado, vá contigo. Beneficiará também das mercês que o duque vos queira fazer. Eles saíram, numa mesura, e tu comentaste como para ti: os ratos abandonam a nau. Não valho nada! Sem conseguirem disfarçar o brilho dos olhos, cochichavam outros pelos cantos mais recatados da casa que ia chegar o momento de se reporem liberdades e privilégios perdidos ou de se perderem acrescentamentos mal ganhos... Conservava o secretário um papel na mão para tu assinares. Que é mais?, perguntaste. Aquele documento referente a uma tença a conceder a Ana de... Dá cá. Tomaste a pena que eu te estendia, mas de repente desataste a chorar e deixaste-a cair. Apresentei-te outra: sossega, meu senhor! Não me consoles. Um aceno, um olhar ao príncipe que ia a passar... Gentil dona, mãe de meu filho, perdoa-me. O bicho que eu era logo mordia..., e com muito pranto assinaste. Tratavam-te por alteza, que assim te era devido: Alteza!, consideraste. Não me chameis alteza. Não passo de um saco de trampa e de vermes. Não cheirais o fedor que lanço? E tenho na boca um amargor difícil de suportar. Avizinhava-se o tempo de desenlace. Com mezinhas oficinais trataram os médicos de te estancarem o fluxo cada vez mais abundante, que a todo o momento era preciso ajudar-te a sentares-te na cadeira estercorária, com grande trabalho do prior do Crato e do camareiro, que neste particular te serviam, e náuseas dos restantes. Alagavas-te pelas pernas abaixo até aos pés e ao soalho, de modo que depois tinham de te lavar, mudar-te a roupa e entravam os criados a limpar o chão. Abriam-se as janelas a arejar o quarto e, quando regressavas à cama, já num queimador de prata ardiam resinas de incenso e aloés. Com o estancamento do fluxo o humor corrupto espalhou-se-te por todo o corpo. Saltou contigo profunda letargia que te prostrou em teimosa sonolência. A custo te acordavam e, acordado, pedias: por amor de Deus, não me deixeis dormir como um animal. Bradavam-te ao ouvido: Senhor! Senhor!
Abanavam-te, esfregavam-te as mãos, os pés. Diogo Almeida agarrou-te a barba: acorda, senhor!, clamou num vozeirão. De imediato abriste os olhos, totalmente desperto: prior, essa mão seria mais honesta noutro lugar. Havia aí os pés. Os físicos mostravam-se indecisos. O doutor Lucena era de parecer que te tornassem ao fluxo: temos de arrancá-lo a este torpor. Concordaram com ele mestres Rodrigo e Josepe e assim fizeram. Antão Faria falava a um canto com os do teu conselho: temo o pior e é necessário prevenir. Dei instruções para que fosse a Lisboa uma caravela a buscar adereços de nojo, veludos e damascos, cobertas, tochas, tudo o que convém... Pranteavam em redor com algum descomedimento. Não chorassem, rogavas tu, para te não causarem torvação em tão grave extremo. Vinha de fora o sal da maresia e o marulho das ondas. Em que altura se encontra a maré?, quiseste saber. Disseram-to, afirmaste: daqui a duas horas me finarei. Conhecias segredos do sólido e do líquido, do fogo, da água e da terra, das estrelas e dos ventos, do regime das marés e das horas da noite, das sombras dos corpos. Certa vez me ensinaste tu as horas pelo setentrião. Com uma vara desenhaste no pó do chão uma rosa dos ventos: não sei debuxar com tanta segurança e perfeição como tu ias dizendo mas esforça-te por entenderes os rabiscos.
Marcaste os quadrantes, espetaste no centro a estaca a prumo e, com paciência de mestre, levaste-me a ler o apontar da sombra... Neste aposento em que agonizavas apenas se permitiu a entrada de uns poucos. Ao fundo da cama, de pé, postaram-se os três bispos: Jorge, o de Coimbra, no centro com a cruz; de um e outro lado, Ortiz, o de Tânger, que segurava um ícone do vulto de Cristo, e Camelo, o do Algarve, com a caldeira e o hissope. Na cabeceira, de joelhos, o conde de Penela segurava-te na mão a candeia e junto rezavam Almeida e Cabral. Em frente, da outra banda, acompanhavam as orações o capitão de ginetes, o tesoureiro e Eça. Um pouco afastados ajoelhávamos o moço da guarda-roupa e eu que a tudo assisti pois dormia na tua câmara e quase nunca daqui saía. Conservaste até ao fim o teu completo conhecimento, vista e ouvido inteiros, sem te moveres, seguindo versículo por versículo as orações dos bispos: Agnus Dei qui tollis peccata mundi, miserere mei…, ainda os teus lábios articulavam. Súbito deixaram de mexer, no desmaio final. Em querendo pôr-se o Sol, despegou-se-te a alma da carne com um suspiro que se escoou cansado do fundo do peito até à boca». In Fernando Campos, A Esmeralda Partida, 1995, Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-330-1.

Cortesia de Difel/JDACT