segunda-feira, 27 de junho de 2016

A Armadilha de Dante. Arnaud Delalande. « O carnaval de Veneza remonta ao século X. Durava seis meses ao ano: do primeiro domingo de Outubro até 15 de Dezembro; depois da Epifania à Quaresma»

jdact e wikipedia

Maio de 1756
«Francesco Loredan, príncipe da Sereníssima, 116° doge de Veneza, estava sentado na Sala dei Collegio, onde, em circunstâncias normais, recebia os embaixadores. De quando em quando, levantava os olhos para admirar o imenso quadro de Veronese, A vitória de Lepanto, que enfeitava uma das paredes. Por vezes perdido em pensamentos, movia os olhos em direcção aos revestimentos de ouro do tecto, a Marte e Neptuno, ou Veneza entronizada entre Justiça e Paz, até se achar novamente forçado a concentrar-se no assunto urgente que o preocupava. Era um homem idoso, de rosto enrugado, formando um contraste surpreendente com a veste púrpura. Alguns raros fios de cabelo escapavam-lhe do chapéu ducal. Sobrancelhas e barba brancas contribuíam para dar-lhe à fisionomia um ar patriarcal totalmente adequado às circunstâncias e funções exercidas no seio da República. À sua frente, uma escrivaninha recoberta de um dossel no qual figurava um leão alado mostrando as garras, símbolo de poder e majestade. Ao doge não faltava pompa nas roupas sumptuosas; um manto de tecido ornado com gola de arminho e grandes botões nos ombros, aberto, deixava entrever outro hábito de um tecido mais fino que lhe descia até as pernas cobertas de vermelho. A bacheta, o ceptro simbolizando o poder dogal, repousava displicentemente entre seus braços. As mãos longas e delicadas, ostentando um anel com as armas e a balança veneziana, apertavam nervosamente o relatório da última deliberação do Conselho dos Dez, acompanhado de uma correspondência marcada com o sinete oficial do Conselho. A última reunião acontecera naquela manhã, em circunstâncias excepcionais. O relatório informava Francesco de um assunto no mínimo tenebroso cuja conclusão era: uma sombra passa sobre a República. Uma sombra perigosa, que tem nesse assassinato, Vossa Alteza Sereníssima, nada mais que uma de suas múltiplas manifestações. Veneza encontra-se em situação desesperadora; os criminosos mais odiosos nela penetram como lobos numa selva escura. O vento da decadência paira sobre a cidade: não é mais possível ignorá-lo. O doge limpou a garganta, tamborilando com os dedos a carta. E assim, um drama abominável ocorreu.
O carnaval de Veneza remonta ao século X. Durava seis meses ao ano: do primeiro domingo de Outubro até 15 de Dezembro; depois da Epifania à Quaresma. Por fim, ressurgia na Sensa, a Ascensão. A cidade inteira ocupava-se com os preparativos. As mulheres de Veneza desfilavam pelas ruas: sob as máscaras, exibiam a brancura da pele, iluminadas por adereços, jóias, colares, pérolas e drapejados de cetim, golas de pele e metros de rendas, os seios apertados em corpetes. Os cabelos, daquele louro tão raro, tinham sido arrumados, com o maior esmero, em coques, enrolados em torno de diademas, à sombra de um chapéu, soltos e ondulando numa liberdade calculada, ou então frisados, de várias cores, arrumados em penteados mais inesperados, mais extravagantes. Mascaradas, se faziam de importantes e caminhavam com a cabeça erguida, segundo as regras do portamento, afectando a dignidade da mais alta nobreza. Com seus sumptuosos vestidos e porte elegante, desfilavam com graça e altivez. Nesses tempos de carnaval, não eram elas as mais cobiçadas, as mais ardentemente desejadas, enfim, as mais lindas mulheres do mundo? Essa segurança tranquila servia de fonte de inspiração. Um dilúvio de beleza, um arco-íris de cores sedutoras; uma num vestido de cambraia branca sem transparências, com a barra guarnecida por camadas de renda; outra se adornava com mangas bufantes, em gaze da Itália, um cinto de fitas azuis cujas pontas esvoaçavam ao andar; outra, ainda, usava um grande lenço plissado, com nó no pescoço, abrindo-se em triângulos sobre um vestido estilo andrienne ou saia armada com anáguas, sombrinha na mão. Algumas sustentavam a moretta, a máscara negra, apertando com os dentes a pequena saliência interna introduzida na boca. Adiante, outras alisavam os vestidos, abriam os leques com um movimento do pulso. As cortesãs da mais alta linhagem misturavam-se às moças alegres numa extrema confusão. O Catalogo di tutte le principal e piú onorate cortigiane di Venezia e o tratado La
tariffa delle puttane di Venezia, acompanhados de considerações técnicas acerca dos talentos dessas amantes de uma noite, clandestinamente voltaram a circular». In Arnaud Delalande, A Armadilha de Dante, Editora Record 2009, ISBN 978-850-107-907-7.

Cortesia de ERecord/JDACT