segunda-feira, 9 de maio de 2016

Onde Vais Isabel? Maria Helena Ventura. «Entusiasmo ceifado pela luz. É-me vedada a passagem logo a seguir à casa do bispo. Um guarda adiantado sugere que contorne o edifício pelas traseiras, fazendo a baixada perpendicular à rua principal»

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«(…) Escancaro a porta com um pontapé, como tantas vezes me tem feito. Só ao fim de algum tempo se levanta, como se descobrisse então que o barulho não vem do sonho, e o coração lhe adivinhasse tempestade. Agito o rolo da mensagem, ensaiando uns passos à rectaguarda. Com um salto arranca-mo das mãos, de olhos fitos nos meus, a boca salitrada por alguma bebida forte da véspera. E ainda atento ao mínimo movimento, chega-se à porta para ver melhor, a desenrolar o velino com mãos trémulas. Basta ver-lhe o nariz franzido quando começa a leitura, para entender que deve ser coisa grave. Mas cedo se recompõe. Quando volta a encarar-me já tem firmeza na voz. Julgas que não sei que andaste a farejar a mensagem? Quem, eu? Era lá capaz de devassar escritos que não me são dirigidos. Hum..., não és tu capaz senão de vasculhar o que não te diz respeito e montar na garupa das mundairas... Pois fica sabendo que te atiro da ravina, se deres um pio sobre o que viste. E mais nenhuma palavra de jeito enquanto aparelha a mula, companheira de hospedaria, a não ser repetir parte de uma frase estranha bastas vezes repetida pelo monge cego de Monzón, a mesma frase destacada da última conversa que Ángel teve comigo, tempos antes. Lágrimas e rosas, nada mais que lágrimas e rosas... De quem falais, afinal? Da infanta dona Isabel. Já tanto tumulto em redor mal começa vida nova. Alguma notícia ruim, acerca dela? Não sabes então o que viste? Vê la se te dou com a vara para não seres dissimulado.
Agora rumina frases, pouco disposto a conversas. Nem sequer me pede para o acompanhar quando informa que tenciona vencer as vinte léguas até Barcelona, antes do sol raiar. E dito isto rapa a mistela que sobra da véspera, um cozido de favas ressequido agarrado às paredes da escudela, antes de engolir o líquido da cabaça, esquecida num poial improvisado com cestos. Mal acena do lado de fora, a picar a mula roliça direito ao caminho mais curto, monto logo o burro para ir atrás dele, a pouca distância, que não me falha o instinto quando adivinho grande segredo no pedido de ajuda dissimulado no anverso do tornez: vem em nosso auxílio senhor que fizeste o céu e a terra. Não descanso enquanto o não descobrir. As bestas correm ligeiras, rumo aos muros da cidade, de modo que em pouco tempo avistamos os contornos do burgo. À direita os esboços das torres sineiras, gráceis ornamentos da catedral que em breve vai ser demolida, para nova construção. À esquerda as chaminés do Palau Reial Major, talhadas contra o céu da manhã, como ponteiros pardos lavados por jorros de luz. Mais abaixo, ainda no exterior da muralha, descansam os telhados de um aglomerado de casas, já denso junto à porta principal, bordados por uma auréola dourada.
A vigilância foi reforçada. Há mais guardas em cada uma das torres cilíndricas que ladeiam o portal, de vigia sobre o aqueduto. É tanta gente que gritam cá para baixo, a tentar pôr ordem na circulação penosa. O meu burro é pequeno, consigo aninhá-lo na passagem de peões que começa à porta do Arcediago, para cruzar a frente da catedral e meter pela Carrer dos Condes. Entusiasmo ceifado pela luz. É-me vedada a passagem logo a seguir à casa do bispo. Um guarda adiantado sugere que contorne o edifício pelas traseiras, fazendo a baixada perpendicular à rua principal. Mas de novo sou travado por mais guardas a meio, uns passos à frente da porta das cavalariças do paço. Só me resta voltar para trás pelo largo da catedral, fazendo um troço da rua del Bisbe, ao lado dos claustros, antes de cortar à esquerda e desenhar, com burricadas ligeiras, o novelo da rua da Pietat. Mal acabo de vencer o lado de trás do monumento, dou com nova fila de almogávares vindos da fronteira de Aragão, onde a baixada de Santa Clara, direita à Plaça del Palau, cruza a Carrer dos Condes». In Maria Helena Ventura, Onde Vais Isabel, Saída de Emergência, 2008, ISBN 978-989-637-034-3.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT