sábado, 28 de maio de 2016

Na Cama dos Reis. Juliette Benzoni. «Desde Eva, essa inocente, causa de toda a alegria e sofrimento do homem, que se deixou cair no pecado com tanto júbilo, que a mulher adquiriu o direito imprescritível à suspeita e à desconfiança masculinas…»

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«(…) A jovem fora escolhida entre centenas de candidatas pela sua beleza, que não devia ter qualquer defeito e tanto podia ser filha da nobreza como uma cativa ou até uma escrava. O abraço do deus arrancá-la-ia para sempre à sua condição, mas, terminada a noite, a eleita não se juntaria às servas de Ishtar dedicadas à prostituição sagrada, iria para a coorte das sacerdotisas de Marduk, dedicadas apenas ao deus e, portanto, à castidade perpétua, pelo menos oficialmente. De facto, como o deus tinha poucas hipóteses de se manifestar em pessoa, era o seu sumo-sacerdote que o encarnava, a menos que fosse de idade avançada ou estivesse em baixo de forma, o que seria uma catástrofe para as colheitas seguintes. e nesse caso seria substituído pelo próprio rei que, decerto, não se faria rogado.
Se a sua companheira por uma noite soubesse cativá-lo, sua majestade não teria qualquer dificuldade em fazê-la passar do templo para os aposentos femininos do seu palácio e se o sumo-sacerdote, tendo oficiado, se apaixonasse, poderia encontrar com toda a facilidade, no enorme dédalo do Esagil, aquela que tão forte impressão lhe causara. Se nascesse uma criança, o que era frequente e considerado sinal indubitável da benevolência de Marduk, esta destinar-se-ia, com toda a naturalidade, ao serviço do deus seu pai... Entretanto, quando este entrasse na câmara dourada, a virgem devia prostrar-se diante dele e recitar o poema de amor ritual vindo da antiga Suméria:

Tu cativaste-me, deixa-me tremer diante de ti
esposo, quero ser levada para o leito por ti
esposo, deixa-ma acariciar-te
a minha carícia amorosa
a minha carícia amorosa é mais suave do que o mel…

E, o que devia ser cumprido, cumpria-se. Seria preciso ser-se de pedra para se resistir a um convite pronunciado por uma rapariga encantadora e vestida apenas com a sua cabeleira. Em tal matéria os sacerdotes de Marduk não corriam qualquer risco e o resultado era certo, tanto mais que a bela jovem, bem instruída, juntava o gesto à palavra e apressava-se a demonstrar que as suas carícias eram, de facto, muito mais doces e sobretudo mais sábias do que o mel. No entanto, antes de sucumbir à vertigem, o deus devia olhar para o céu porque, segundo a tradição, Marduk só podia possuir a sua companheira no momento preciso em que nascesse a estrela de Ishtar. Só então o grande leito de marfim se transformaria em altar e o corpo intacto se abriria para o amante divino. Porém, o casal não estaria só. Um sacerdote de Marduk, o Vigilante Sagrado, estaria no terraço, perto da entrada da câmara. O seu dever era anunciar ao povo que o acto se cumpria para que todos os seus votos e as suas esperanças se realizassem.
Em baixo, milhares de olhares fixavam-se na sua silhueta branca, tão pequena àquela altura, e só a abandonavam depois de ele erguer os braços ao céu. Então estalava um grande clamor e Babilónia, certa de ter obtido dos deuses a fertilidade das suas terras e dos seus ventres, mergulhava numa frenética orgia de amor que durava até à alvorada..., pelo menos para aqueles com energia suficiente para não se deixarem adormecer. Babilónia considerava, assim, a mulher, e a virgem, uma companhia privilegiada do deus. Aliás, parece que a noção de virgindade não existia como hoje antes da época sumeriana porque os conhecimentos anatómicos ainda estavam na infância. Virgem era aquela que nenhum homem tocara, virgem era qualquer rapariga nova. A ideia de virgindade confundia-se com a da puberdade, durante a qual os seios começavam a crescer e o corpo adquiria as formas femininas...
Daí o costume no Ocidente, sobretudo nas famílias nobres, de casar as filhas ainda na puberdade, uma maneira como outra qualquer de tomar precauções contra eventuais surpresas desagradáveis, as quais não perturbavam muito os homens das civilizações antigas porque era frequente, entre os povos mediterrânicos, oferecer aos deuses a virgindade das raparigas, levando-as aos templos para ali serem desfloradas ritualmente por sacerdotes investidos do poder dos deuses. Uma homenagem, sem dúvida, mas também uma precaução porque o mistério do corpo feminino ainda selado inspirava alguma inquietação. Ninguém sabia que perigos, que malefícios, que demónios se podiam esconder na húmida obscuridade do ventre de uma virgem. Ao entregá-la a um deus, afastavam-se todos os medos: o sagrado tomava o risco a seu cargo, traçava o caminho no qual, em seguida, o eventual esposo entrava com toda a tranquilidade. Encontramos entre os Hebreus, nos Provérbios, vestígios dessa velha crença do homem face ao mistério feminino:

Há três coisas que são um mistério para mim
e uma quarta que não compreendo:
o voo da águia nos céus,
o rasto da cobra sobre a rocha,
o rumo de um navio em pleno mar
e a atitude do homem para com a donzela...

Desde Eva, essa inocente, causa de toda a alegria e sofrimento do homem, que se deixou cair no pecado com tanto júbilo, que a mulher adquiriu o direito imprescritível à suspeita e à desconfiança masculinas, razão pela qual o entusiasmo com que os antigos levavam as filhas ao leito dos deuses ou dos seus representantes, razão pela qual a existência do antigo princípio do famoso direito do senhor feudal, posto em prática por ocasião do aparecimento do cristianismo, após a falência dos velhos deuses». In Juliette Benzoni, Na Cama dos Reis, Noites de Núpcias, 2010, tradução de Nuno Lorena, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2012/2013, ISBN 978-989-657-351-5.

Cortesia de PlanetaM/JDACT