quinta-feira, 5 de maio de 2016

As Mulheres de D. Manuel I Maria Pilar del Hierro. «Quando mo entregou, aquele corpo que devia ter sido o pai dos meus filhos não era mais do que um belo e frio pedaço de mármore. Pergunto-me, minha mãe, se a morte de Afonso foi um castigo merecido»

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A noiva de luto. Isabel. 1470-1479
«(…) Tudo era felicidade, mãe, naqueles dias. Mas lá passou e agora confundem-se na minha memória as tochas brilhantes que nos acompanhavam até aos Alcáceres sevilhanos, com as outras envoltas em crepes de luto; e o cheiro a incenso da comitiva fúnebre mistura-se com o aroma das madressilvas que bordejavam o Guadalquivir ou com o cheiro a erva fresca das terras de Estremoz onde Portugal quis confirmar o meu casamento. Até os sinos a tocar a finados parecem evocar os outros que volteavam alegres para celebrar a união de dois corpos e duas almas. Tão feliz me senti que, justo é dizê-lo, quase não senti tristeza por me separar de vós e da terra em que tinha crescido. Só tinha olhos para o meu marido Afonso e para o seu porte sereno. A maturidade que apesar da sua juventude acompanhava os seus gestos e a sua voz, essa voz que ainda me persegue!, grave e envolvente parecia-me um talismã que haveria de me proteger de todos os males que me espreitassem.
Não foi assim. Nem se conseguiu proteger a si próprio. E pouco duraram os meus prazeres. Bastou que um cavalo se encabritasse para que a felicidade se desfizesse entre os meus dedos como a neve que apanhava quando era criança e gostava de derreter com o calor das minhas mãos. Foi tudo tão inesperado! Na manhã de 25 de Julho, Afonso partiu a caminho da sua habitual partida de caça. Como de costume, do ouvir o som do corno de caça, assomei à janela. O meu marido montou, acenou-me com a mão e partiu a galope. Não voltei a vê-lo com vida. Tinha decorrido pouco tempo quando um dos cães se atravessou diante das patas do seu cavalo, um alazão jovem e imprudente, que se encabritou e o deitou ao chão. O seu tio Manuel, duque de Viseu, quis reanimá-lo mas nada pôde fazer para lhe salvar a vida.
Quando mo entregou, aquele corpo que devia ter sido o pai dos meus filhos não era mais do que um belo e frio pedaço de mármore. Pergunto-me, minha mãe, se a morte de Afonso foi um castigo merecido. Era tal a minha felicidade que esqueci que esta terra é um vale de lágrimas onde expiamos os nossos pecados e possivelmente Deus castigou-
me por isso. Assumo a minha culpa. Não agradou a Deus tanta entrega a um homem; não é próprio de uma alma cristã pôr os prazeres da carne à frente dos do espírito e eu, minha mãe, desfazia-me em desejo entre os seus braços. Em público, distraía a minha mente evocando as formas daquele corpo que me abraçava ao amanhecer debaixo dos ricos panos que o cobriam e depois, na solidão da nossa alcova, procurava-o como o vento procura as copas das árvores para se perder nelas. Pequei, mãe. Pequei por amor e tenho o justo castigo. Agora peco por desesperação e, só ao vosso lado, tendo-vos a vós e aos vossos confessores como guia, poderei redimir-me». In As Mulheres de D. Manuel I, María Pilar Queralt del Hierro, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-626-247-1.

Cortesia de EsferadosLivros/JDACT