quarta-feira, 25 de maio de 2016

Abadia dos Cem Pecados. Marcello Simoni. «Depois de uma breve hesitação, Jérôme anuiu e subiu para o carro com o filho. Com as indicações de Maynard, começou a retirar-lhe a espada de estoque presa ao boldrié e o cinto com o punhal»

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A pedra do exílio
Planalto de Crécy. 26 de Agosto de 1346
«(…) A chuva transformou-se num aguaceiro escuro e denso. Maynard foi obrigado a afastar-se rapidamente do cadáver de Jang Bannen e a procurar abrigo sob uma pequena elevação, para não se afogar na lama. As trevas haviam devorado o campo com tal velocidade que quaisquer referências se tornavam impossíveis, mas o receio de perder a consciência e de acordar numa terra ocupada por inimigos impeliu-o a não parar. Escondeu o rolo com o anel sob a placa de metal que lhe protegia o tórax e prosseguiu, deslizando em direcção àquela que esperava ser a sua via de salvação. Era-lhe necessário deslocar-se em linha recta, pois estava quase certo de ter o leste à sua frente. A perna esquerda atrasava-o, latejando numa dor selvagem. Transformou-se num obstáculo sobretudo quando teve de transpor a margem de um fosso, depois do qual avançou sobre um tapete de relva molhada, finalmente sob as árvores. Já longe do cenário do confronto, continuou até colocar as mãos numa pedra gasta pela passagem dos carros. Percebeu então que havia alcançado a antiga estrada romana e, vencido pela prostração, perdeu os sentidos. Uma oscilação monótona despertou-o por um instante. Encontrava-se num carro coberto, e uma figura encapotada estava sentada ao seu lado. A visão turvou-se-lhe, fazendo-o deslizar novamente na lama.
Quando retomou a consciência, ouviu a voz de Jang Blannen ecoar-lhe nos ouvidos. Era de dia, o carro detivera-se. Tentou erguer-se, mas uma correia que lhe apertava o joelho obrigou-o a manter-se deitado. Decidiu então arrastar-se com cautela pelos cantos do veículo, para se sentar e poder olhar para fora. Tinha parado de chover. Duas pessoas envoltas em capas olhavam para ele. Um rapaz e uma mulher. Estavam acocorados na beira da estrada, perto de uma fogueira. A mulher remexia algo num caldeiro. Antes que Maynard pudesse dizer alguma coisa, viu um homem aparecer pela direita e estender-lhe um cantil. Agradeceu-lhe com um gesto de cabeça e bebeu. Sentia-se fraco, aturdido. A dor na perna direita, invadida pelo torpor, tornara-se mais suportável. Abençoado, senhor, disse o homem. Não fosse o olho atento do meu filho, e teria ficado à chuva. Devo-vos a vida. O cavaleiro restituiu-lhe o cantil, aproveitando para o observar melhor. Era calvo e robusto, trazendo nas costas uma esclavina verde. Pareceu-lhe demasiado bem-educado para um camponês ou um mero artesão.
Chamo-me Maynard Rocheblanche e saberei recompensar a vossa bondade de espírito. Eu sou Jérôme Bataille, e estes, e apontou para a mulher e para o rapaz, são a minha mulher Marie e o meu filho Nicolas. Partimos de Bruges com destino a Paris. No caminho, soubemos de um confronto entre exércitos, e a notícia levou-nos a avançar de noite, para não nos vermos envolvidos no mesmo. Faríeis bem em avançar ainda mais para sul, e depressa aconselhou Maynard, acocorando-se. Regresso do confronto de que falais e, acreditai, dentro em pouco os ingleses infestarão estes feudos. O jovem Nicolas fitou-o com admiração. Dizei, senhor, sois cavaleiro do rei de França? Sou sim, e necessito da vossa ajuda. Bateu com o punho na armadura que envergava. Preciso que me ajudeis a retirar todo este metal, e de seguida mostrou a seta cravada acima do joelho, e esta também.
Depois de uma breve hesitação, Jérôme anuiu e subiu para o carro com o filho. Com as indicações de Maynard, começou a retirar-lhe a espada de estoque presa ao boldrié e o cinto com o punhal, soltando uma a uma as peças da couraça. Libertou primeiro os braços e depois o tronco. Quando chegou a vez de retirar a peça do tórax, fez cair uma chuva de incrustações de lama juntamente com o pequeno rolo que pertencera ao rei da Boémia. Nesse momento, o cavaleiro fez sinal para que esperasse, apanhou o pergaminho e limpou-o. Estava sujo, mas ainda em bom estado. O mesmo se poderia dizer do anel em que vinha enfiado. Um anel de ouro maciço. Rodou-o entre os dedos e, observando o engaste, reconheceu um brasão religioso. No centro da insígnia, num campo esmaltado a vermelho, destacava-se um leão de prata. Era difícil definir a linhagem. Mas a presença do chapéu, em cima, e das borlas laterais testemunhava a pertença a um cardeal. Rocheblanche guardou-o e pediu aos seus salvadores que também o libertassem da parte de baixo da armadura. Tinha pressa em destapar a perna esquerda, para avaliar a ferida Dizei, mestre Jérôme, como ganhais a vida?, perguntou entretanto». In Marcello Simoni, A Abadia dos Cem Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016, ISBN 978-989-724-278-6.

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