sábado, 23 de abril de 2016

Se Isto é um Homem. Primo Levi. «Também sabemos agora que não é a mesma coisa receber a concha de sopa da superfície ou do fundo da selha, e já somos capazes de calcular, na base da capacidade das várias selhas, qual o lugar mais conveniente onde ficar…»

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Se isto é um homem
«Vós que viveis tranquilos
nas vossas casas aquecidas,
vós que encontrais regressando à noite
comida quente e rostos amigos:
considerai se isto é um homem
quem trabalha na lama
quem não conhece paz
quem luta por meio pão
quem morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher,
sem cabelos e sem nome
sem mais força para recordar
vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no Inverno.
Meditai que isto aconteceu:
recomendo-vos estas palavras,
esculpi-as no vosso coração
estando em casa andando pela rua,
ao deitar-vos e ao levantar-vos;
repeti-as aos vossos filhos.
Ou então que desmorone a vossa casa,
que a doença vos entreve,
Que os vossos filhos vos virem a cara».

«(…) Ainda nos falta aprender muitas coisas, mas muitas outras já as aprendemos. Já temos uma certa ideia da topografia do Lager; este nosso Lager é um quadrado com cerca de seiscentos metros de lado, cercado por duas redes de arame farpado, sendo a interior percorrida por corrente de alta-tensão. É constituído por sessenta barracas de madeira, que aqui se chamam Blocks, uma dezena das quais em construção; a estas acrescentam-se o corpo das cozinhas, que é de alvenaria; uma horta experimental, gerida por um destacamento de Häftlinge privilegiados; as barracas dos duches e das latrinas, uma por cada grupo de seis ou oito Blocks. Para além disso, alguns Blocks são destinados a funções especiais. Primeiro, um grupo de oito, na extremidade leste do campo, constitui a enfermaria e o posto médico; há depois o Block 24 que é o Krätzeblock, reservado aos sarnosos; o Block 7, onde nenhum Häftling comum jamais entrou, reservado à Prominenz, isto é, à aristocracia, aos internados que desempenham os cargos mais elevados, o Block 47, reservado aos Reichsdeutschs (os arianos alemães, políticos ou criminosos); o Block 49, exclusivamente para Kapos; o Black 12, do qual metade, para uso dos Reichsdeutsche e Kapos, faz funções de Kantine, isto é, de posto de distribuição de tabaco, insecticida e, ocasionalmente, outros artigos; o Block 37, que contém os escritórios centrais e os serviços de trabalho; e finalmente o Block 29, que mantém as janelas sempre fechadas porque é o Frauenblock, o prostíbulo do campo, servido por raparigas Häftlinge polacas e reservado aos Reichsdeutsche.
Os Blocks de habitação comum são divididos em duas zonas: num deles (Tagesraum),vive o chefe da barraca com os seus amigos: contém uma mesa comprida, cadeiras, bancos; por todo o lado, uma quantidade de objectos estranhos de cores vivas, fotografias, recortes de revistas, desenhos, flores artificiais, bibelôs; nas paredes, grandes letreiros, provérbios e breves poesias exortando à ordem, à disciplina, à higiene; num canto, uma vitrina com os instrumentos do Blockfrisör (barbeiro autorizado), as conchas para distribuir a sopa e duas vergastas de borracha, uma maciça e outra oca, para manter a disciplina. O outro local é o dormitório; não há outra coisa a não ser cento e quarenta e oito camas em beliches de três andares, apinhadas, como celas de uma colmeia, de forma a utilizar sem desperdícios todo o volume do local, até ao tecto, e divididas por três corredores; aqui vivem os Häftlinge comuns, num total de duzentos, duzentos e cinquenta por barraca, portanto, dois na maioria das tarimbas, que são de tábuas de madeira móveis, equipadas com enxergão de palha muito fino e com dois cobertores cada. Os corredores de passagem são tão estreitos, que duas pessoas passam com muito dificuldade; a superfície total de chão é tão escassa, que os habitantes do mesmo Block não a podem ocupar ao mesmo tempo, sem que pelo menos metade esteja deitada nas camas. Daí, a proibição de entrar num Block ao qual não se pertence. No meio do Lager está a Praça da Chamada, enorme, onde nos reunimos de manhã, para constituirmos as esquadras de trabalho, e à noite, para sermos contados. Em frente à Praça da Chamada há um canteiro com a relva cuidadosamente cortada, onde são montadas as forcas quando é preciso.
Cedo aprendemos que os hóspedes do Lager estão divididos em três classes: os criminosos, os políticos e os judeus. Todos andam com farda às riscas, todos são Häftlinge, mas os criminosos trazem ao lado do número, cosido no casaco, um triângulo verde; os políticos, um triângulo vermelho; os judeus, que são a maioria, trazem a estrela judaica, vermelha e amarela. Há também os SS, mas poucos e fora do campo, e vêem-se relativamente poucas vezes: os nossos verdadeiros patrões são os triângulos verdes, que têm liberdade de acção sobre nós, e também os das outras duas classes dispostos a ajudá-los: que não são poucos. E aprendemos mais coisas ainda, mais ou menos rapidamente, conforme o carácter de cada um; a responder Jawohl, a não fazer perguntas, a fingir sempre ter percebido. Aprendemos o valor dos alimentos; agora, também já raspamos cuidadosamente o fundo da marmita depois do rancho, e mantemo-la debaixo do queixo ao comermos o pão para não desperdiçar as migalhas. Também sabemos agora que não é a mesma coisa receber a concha de sopa da superfície ou do fundo da selha, e já somos capazes de calcular, na base da capacidade das várias selhas, qual o lugar mais conveniente onde ficar no momento de ir para a bicha». In Primo Levi, Se Questo è um Uomo, Einaudi, Turim, 1958, Se Isto é um Homem, 1998, Tradução de Simonetta Neto, 10ª edição, 2013, Teorema, ISBN 978-972-695-945-8.
  
Cortesia de Teorema/JDACT