terça-feira, 12 de abril de 2016

Quando os Lobos Uivam Aquilino Ribeiro. «O mano tinha posto a tigela na pilheira e esperava de pé, os braços a escorrer pelas ilhargas, que o pai se dignasse deitar-lhe os olhos. Mas já ele erguia as mãos: a bênção, senhor pai...»

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«(…) Toda a gente a dizer-me que tinhas morrido, que nunca ninguém mais te vira, que botasse luto e te fizesse os responsos... e o coração a dizer-me: não, o meu homem é vivo. Se não fosse vivo, a alma tinha-se botado cá do outro mundo a dizer-mo!, lambuzava-o com os grandes beiços amorosos, húmidos como uma esponja empapada de água salgada. Está bem, mulher, está bem! Deixa-me… Olha que me esganas... O pai? O pai está rijo e fero. Ia fazer-lhe outra pergunta, quando pela espalda desabou sobre ele, rosto, lábios, cabelos de que uma melena fugia para a testa, uma haste florida que adivinhou ser Jorgina. Ah, pois não tinha ela também os seus direitos? Tinha e ainda os não usara. Um minuto ele a vira meio indecisa. Notou que se pusera a identificá-lo e não quis interrompê-la na operação. Então seu pai era aquele homem de ar exótico, lurido do clima, tocado na figadeira, com um traje diferente ao da terra, sarja azul tão lustrosa que lhe devolvia a tinta dos olhos, relógio de prata em pulseira de oiro, sapatos amarelos, esta espécie de sapatos meio pantufos, que parecem botas de elástico aparadas por baixo do tornozelo, e ele comprara em Asunción?! Por uma nesga, dir-se-ia, da consciência seguira todo o desdobre da fita sentimental. E, zás, vencendo o acanhamento, eis que ela se lhe atirava ao pescoço. Sorrindo à amorosa freima, Manuel Louvadeus apenas sabia dizer-lhe: que moça você está! Que moça! Com quem se parecia? Com quem se pode parecer a Primavera...? Lembrava-lhe, fragrante e risoteira, a flor dum cacto, de certos cactos martirizados dos chapadões incandescidos, que desatam numa flor tão bonita que fazem pasmar os ares e chamam todos os moscardos à volta. Que moça você está!... Este é o mano?
O mano tinha posto a tigela na pilheira e esperava de pé, os braços a escorrer pelas ilhargas, que o pai se dignasse deitar-lhe os olhos. Mas já ele erguia as mãos: a bênção, senhor pai... Manuel Louvadeus enterneceu-se com aquela prática à antiga da rendição filial e, ao mesmo tempo que admirava a valente racha, cobria-lhe a cabeça com a mão, olhos embaciados de lágrimas, não achando outra palavra: seu capoeira! O avô?, perguntou-1he pela segunda vez, ao cabo da grande pausa que se seguiu. O avô está rijo e fero, respondeu ele, repisando as palavras da mãe. Já não é criança...! A exclamação diluiu-se no silêncio, sem eco, desprovida de sentido temporal. Olhavam muito estranhos uns para os outros, ele possuído da estupefacção involuntária de se ver ali e de os ver, ao contrário do resto, bem mudados, eles da sua imprevista e surpreendente presença. A candeia, bafejada pela aragem que se coava da telha-vã, passeava deste para aquele o seu espectro facecioso, carregando-lhes as feições. Foi ao envelhecer mais o pai, que Jaime acordou: pois não, mas é como se fosse. Entrou há muito na casa dos setenta. Olhe que é ele que faz a lavoira quase toda da Rochambana. Eu mal lá meto o arado. Ainda hoje pega dum saco de dez alqueires pela boca, dá-lhe o balanço, e atira com ele para as costas.
Mas sempre aflito de génio, interpôs Jorgina. Quer saber, senhor pai? Doía-lhe um queixal. Em vez de ir ao barbeiro que lho tirasse, não senhor, atou a ponta duma guita a um prego, outra ponta ao dente e, zás, deu tal safanão, que lá o botou fora. Foi o primeiro. Tinha raízes que nem uma giesta! Fartou-se de deitar sangue. Vimos modo de não haver nada que lho vedasse… Homens assim estão-se a acabar!, proferiu Manuel Louvadeus. Já não quero que haja-tornou o filho. E correr? Outro dia, pelas neves, atirou a uma lebre. Partiu-lhe a perna. Pois deitou-se atrás dela e foi apanhá-la meia légua mais longe. Dizia o Caxarreto caçador: às vezes as lebres com uma perna partida até escapam aos cães. Um homem danado! Lá está para a Rochambana... Sózinho...?» In Aquilino Ribeiro, Quando os Lobos Uivam, Libraria Bertrand, Lisboa, 1958, Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

Cortesia de LBertrand/JDACT