domingo, 17 de abril de 2016

O Evangelho Segundo Jesus Cristo. José Saramago. «Um sopro de vento ali mesmo nascido bateu na cara de José, agitou-lhe os pêlos da barba, sacudiu-lhe a túnica, e depois girou à volta dele como um espojinho atravessando o deserto, ou isto que assim lhe parecia…»

Cortesia de wikipedia

«(…) O burro voltou a cabeça, fazendo brilhar no escuro os olhos salientes, depois sacudiu com força as orelhas peludas e tornou a meter o focinho na manjedoura, a tentear os restos da ração com os beiços grossos e sensíveis. José aproximou-se da talha das abluções, inclinou-a, fez correr a água sobre as mãos, e depois, enquanto as enxugava na própria túnica, louvou a Deus por, em sua sabedoria infinita, ter formado e criado no homem os orifícios e vasos que lhe são necessários à vida, que se um deles se fechasse ou abrisse, não devendo, certa teria o homem a sua morte. Olhou José o céu, e em seu coração pasmou. O sol ainda tarda a despontar, não há, por todos os espaços celestes, o mais lavado indício dos rubros tons do amanhecer, sequer uma pincelada leve de róseo ou de cereja mal madura, nada, a não ser, de horizonte a horizonte, tanto quanto os muros do pátio lhe permitiam ver, em toda a extensão de um imenso tecto de nuvens baixas, que eram como pequenos novelos espalmados, iguais, uma cor única de violeta que, principiando já a tornar-se vibrante e luminosa do lado donde há-de romper o sol, vai progressivamente escurecendo, mais e mais, até se confundir com o que, do lado de além, ainda resta da noite. Em sua vida, José nunca vira um céu como este, embora nas longas conversas dos homens velhos não fossem raras as notícias de fenómenos atmosféricos prodigiosos, todos eles mostras do poder de Deus, arcos-íris que enchiam metade da abóbada celeste, escadas vertiginosas que um dia ligaram o firmamento à terra, chuvas providenciais de manjar-do-céu, mas nunca esta cor misteriosa que tanto podia ser das primordiais como das derradeiras, flutuando e demorando-se sobre o mundo, um tecto de milhares de pequenas nuvens que quase se tocavam umas às outras, espalhadas em todas as direcções como as pedras do deserto. Encheu-se-lhe o coração de temor, imaginou que o mundo ia acabar, e ele posto ali, única testemunha da sentença final de Deus, sim, única, há um silêncio absoluto na terra como no céu, nenhum rumor se ouve nas casas vizinhas, uma voz que fosse, um choro de criança, uma prece ou uma imprecação, um sopro de vento, o balido duma cabra, o ladrar dum cão, Por que não cantam os galos, murmurou, e repetiu a pergunta, ansiosamente, como se de cantarem galos é que pudesse vir a última esperança de salvação. Então, o céu começou a mudar. Pouco a pouco, quase sem perceber-se, o violeta tingia-se e deixava-se penetrar de rosa-pálido na face interior do tecto de nuvens, avermelhando-se depois, até desaparecer, estava ali e deixara de estar, e de súbito o espaço explodiu num vento luminoso, multiplicou-se em lanças de ouro, ferindo em cheio e trespassando as nuvens, que, sem saber-se porquê nem quando, haviam crescido, tornadas formidáveis, barcas gigantescas arvorando incandescentes velas e vogando num céu enfim liberto. Desafogou-se, já sem medos, a alma de José, os olhos dilataram-se-lhe de assombro e reverência, não era o caso para menos, de mais sendo ele o único espectador, e a sua boca proferiu em voz forte os louvores devidos ao criador das obras da natureza, quando a sempiterna majestade dos céus, tendo-se tornado pura inefabilidade, não pode esperar do homem mais do que as palavras mais simples, Louvado sejas tu, Senhor, por isto, por aquilo, por aqueloutro. Disse-o ele, e nesse instante o rumor da vida, como se o tivesse convocado a sua voz, ou apenas entrando de repente por uma porta que alguém de par em par abrisse sem pensar muito nas consequências, ocupou o espaço que antes pertencera ao silêncio, deixando-lhe apenas pequenos territórios ocasionais, mínimas superfícies, como aqueles breves charcos que as florestas murmurantes rodeiam e ocultam. A manhã subia, expandia-se, e em verdade era uma visão de beleza quase insuportável, duas mãos imensas soltando aos ares e ao voo uma cintilante e imensa ave-do-paraíso, desdobrando em radioso leque a roda de mil olhos da cauda do pavão-real, fazendo cantar perto, simplesmente, um pássaro sem nome.
Um sopro de vento ali mesmo nascido bateu na cara de José, agitou-lhe os pêlos da barba, sacudiu-lhe a túnica, e depois girou à volta dele como um espojinho atravessando o deserto, ou isto que assim lhe parecia não era mais do que o aturdimento causado por uma súbita turbulência do sangue, o arrepio sinuoso que lhe estava percorrendo o dorso como um dedo de fogo, sinal de uma outra e mais insistente urgência. Como se se movesse no interior da rodopiante coluna de ar, José entrou em casa, cerrou a porta atrás de si, e ali ficou encostado por um minuto, aguardando que os olhos se habituassem à meia penumbra. Ao lado dele, a candeia brilhava palidamente, quase sem irradiar luz, inútil. Maria, deitada de costas, estava acordada e atenta, olhava fixamente um ponto em frente, e parecia esperar. Sem pronunciar palavra, José aproximou-se e afastou devagar o lençol que a cobria. Ela desviou os olhos, soergueu um pouco a parte inferior da túnica, mas só acabou de puxá-la para cima, à altura do ventre, quando ele já se vinha debruçando e procedia do mesmo modo com a sua própria túnica, e Maria, entretanto, abrira as pernas, ou as tinha aberto durante o sonho e desta maneira as deixara ficar, fosse por inusitada indolência matinal ou pressentimento de mulher casada que conhece os seus deveres. Deus, que está em toda a parte, estava ali, mas, sendo aquilo que é, um puro espírito, não podia ver como a pele de um tocava a pele do outro, como a carne dele penetrou a carne dela, criadas uma e outra para isso mesmo, e, provavelmente, já nem lá se encontraria quando a semente sagrada de José se derramou no sagrado interior de Maria, sagrados ambos por serem a fonte e a taça da vida, em verdade há coisas que o próprio Deus não entende, embora as tivesse criado». In José Saramago, O Evangelho segundo Jesus Cristo, Editorial Caminho (o Campo da Palavra), Lisboa, 1991, ISBN 972-210-524-8.

Cortesia de Caminho/JDACT