quarta-feira, 13 de abril de 2016

Moscas nos Olhos. Luísa Beltrão. «Miguel abençoava a ideia de a ter ali, duas vezes por semana, a abraçá-la, a amá-la, a sua doce Filippa, limpa, macia e, embora vergonhoso, a permitir-lhe aliviar-se do desejo»

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«(…) O marido dormia enrolado num cobertor, depois de se ter lavado, a primeira coisa que fazia ao chegar da frente era esfregar-se todo a diluir o cheiro pestilento das trincheiras, não queria que Filippa o visse coberto daquele cheiro infecto, Filippa já o cheirara em tantos corpos, porque não no dele? Olhou-o com uma tristeza terna, o seu marido Miguel, o belo oficial venerador da honra e da disciplina que a levara ao altar, o pai dos seus filhos, aprisionado nesta teia destrutiva que nada tinha a ver com ele. Sentiu alívio por não ter que se sujeitar, como de costume, ao seu desejo tirânico, ali, de imediato, quase sem falarem. Mas logo sentiu culpa pelo alívio, pobre gladiador exaurido, mudámos os dois, no corpo e na alma. Ao longo de oito anos de casados, nunca Miguel dera sinais de volúpia, sempre comedido, executando os deveres conjugais com o cuidado respeitoso da castidade cristã, como era possível transformar-se de súbito num amante brutal e opressivo que a assustara no princípio e continuava a incomodá-la, embora o tolerasse como uma doença de guerra? Saciado, vinha-lhe a vergonha, pedia desculpa, sou um bruto, desculpa, regressando ao senhor cortês, de bigode à Kaiser.
Que estranho o bigode à Kaiser manter-se viçoso, disse em voz alta. De três em três dias, a não ser que houvesse algum contratempo, e havia-os com frequência, Miguel vinha passar a noite com ela, privilégio de oficial a combater na frente, tal como o posto de capitão lhe facultava um carro para transpor os quarenta quilómetros que separavam Arras de Neuve Chapelle, onde ele exercia a guerra. De início, o marido recusara a sugestão de Filippa ficar em Arras, demasiado próxima da frente de batalha, os alemães estão a 10 quilómetros, é uma loucura! Aí que te enganas, objectara o tio Louis François. Agora, quase três meses passados sobre a decisão, Miguel abençoava a ideia de a ter ali, duas vezes por semana, a abraçá-la, a amá-la, a sua doce Filippa, limpa, macia e, embora vergonhoso, a permitir-lhe aliviar-se do desejo, o quarto da casa de madame Seignier tornara-se um paraíso sonhado nas longas horas de espera nas trincheiras.
Pequenina e seca, madame Seignier usava o carrapito grisalho e o xaile preto dos lutos, o luto do marido na Bélgica, dia 30 de Agosto de 1914, logo no começo,
e a seguir, a 11 de Outubro, o luto da filha Ivette, do genro e do neto, mortos nos bombardeamentos de Lille, ocupada desde então pelos alemães, tantos lutos que nem dava para chorá-los. Os dois filhos homens combatiam na frente do Meuse e, num silêncio vazio, madame Seignier ia cumprindo as tarefas domésticas.
Só então reparou nas duas cartas colocadas na mesa do meio, notícias, ia ter notícias, o alvoroço afastou-lhe o cansaço. Uma era da mãe e a outra da irmã. Abriu primeiro esta, Maria Joana escrevia-lhe longas missivas carregadas de superlativos, como era de seu feitio, e narrava pequenas ocorrências que a enchiam de prazer, [...] o Tião já lê o jornal e sabe imenso da guerra, um dia destes escreve-te uma carta pela mão dele. O Zezinho tem uma paixão pelo pónei que o avô lhe deu pelos anos! Tem sido difícil convencê-lo que não pode trazê-lo para Lisboa. Dorme com a fotografia debaixo da almofada. Têm tantas saudades vossas, coitadinhos. É tão diferente educar rapazes e meninas! Mas cá me vou arranjando com a ajuda da Maman». In Luísa Beltrão, Moscas nos Olhos, Filippa na Grande Guerra, Edição Glaciar, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-877-600-6.

Cortesia EGlaciar/JDACT