quarta-feira, 27 de abril de 2016

A Terra Toda. José Manuel Saraiva. «Para mim, nada justificava o seu procedimento; nada havia acontecido no quotidiano das nossas vidas que pudesse fundamentar a atitude dela, e por isso desconfiei, ao princípio…»

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«(…) Ora, eu não louvo esses heróis que mantêm um contrato utilitário, seja de direito ou de facto, só porque do ponto de vista social, familiar ou material o consideram cómodo ou proveitoso. Eu não seria capaz de aceitar uma situação desse género, que consome vidas e destrói afectos. Mas também não aceito o contrário, ou, para ser mais rigoroso, dificilmente consigo aceitar, nem sequer compreender, o propósito de se pôr fim a uma relação sustentada, às vezes perfeita, por causa de um ou de alguns factos de consequências mínimas. Pergunta-me se há relações perfeitas?... Bem, perfeitas não digo, mas quase perfeitas, seguramente. A minha era assim; uma relação em que tudo parecia certo e se me afigurava definitivo. Era como se ela e eu vivêssemos para além dos nossos próprios limites; como se estivéssemos sempre a morrer, apaixonados, para renascermos outros, melhores ainda, em cada manhã de um novo dia. Nada falhava no percurso discreto das nossas vidas. A dor de um era a dor do outro; a alegria de um era a alegria do outro, sempre celebrada no entusiasmo do compromisso e da partilha. Por isso pensava eu que tudo aquilo a que nos entregávamos de corpo e alma, tão vasto, tão intenso, iria ser eterno, esquecendo-me, ou provavelmente não sabendo ainda, de que só são eternos os instantes que vivemos. Por outro lado, à excepção dos últimos meses de convivência, sobre os quais lhe falarei mais adiante, eu nunca havia dado conta de qualquer gesto de renúncia por parte dela, e também essa circunstância me levava a supor que jamais seria capaz de me esconder uma aventura ou de disfarçar uma intenção.
Até que um dia, lembro-me de que era uma tarde de Verão, descobri que eu não era, afinal, o único homem da sua vida. E esse foi o grande choque; um choque de que ainda me não recompus, que me abalou e destruiu. Mas por favor, doutora, não me peça para lhe descrever o que senti nessa hora, ou na seguinte, ou nas que lhe sucederam, porque seria incapaz de o fazer. Aliás, nem sequer me consigo recordar de certos pormenores ocorridos naquela altura, nem do que disse ou do que pensei quando uma amiga de ambos, talvez até mais dela do que minha, me telefonou de propósito para me revelar o segredo. Pouco ou nada retenho dessa conversa, repito. Apenas me lembro de que num primeiro momento cheguei a duvidar, injustamente, da sua confidência, porque o meu problema se tornou de repente mais de fé do que de prova. Custava-me a crer que a mulher que amava, com quem me relacionava numa harmonia estável, quase perfeita, cometesse uma traição infame. Para mim, nada justificava o seu procedimento; nada havia acontecido no quotidiano das nossas vidas que pudesse fundamentar a atitude dela, e por isso desconfiei, ao princípio, da denúncia feita por essa amiga. Só me lembro de lhe ter perguntado: tens a certeza do que estás a dizer?, e de ela me responder tenho.
Sabe, doutora, entre uma verdade dolorosa e uma suave mentira eu prefiro a verdade dolorosa. Aprendi isto em casa dos meus pais, com a minha mãe. O meu pai era um homem cuja vida parecia regulada por impulsos que lhe vinham não sei de que regiões mais fundas de si mesmo. Embora manifestasse uma permanente atitude de bonomia, era de difícil acesso. E tinha outra característica, não sei se boa se má: nunca se irritava, nunca se ia emocionalmente abaixo, nem mesmo quando perdia dinheiro ao jogo ou quando as suas aventuras amorosas, extraconjugais, lhe corriam mal. A minha mãe sabia de tudo, mas quase sempre se calava. E aquilo doía-me. Algumas vezes, não muitas, ela ganhava coragem e confrontava-o, utilizando um tom suave, quase inaudível: por favor, António, diga-me a verdade. Coisa a que o meu pai respondia, invariavelmente, num registo de voz idêntico, baixinho e muito calmo: que verdade quer saber de mim?
O que é a verdade para si? É a que os outros lhe vêm contar? Nessas alturas, ela emudecia, afastava-se dele e ia chorar para o quarto, em contido silêncio. Deixe-me no entanto dizer que os meus pais nunca tiveram conversas destas à minha frente; nem destas nem de outras que pudessem, talvez na opinião deles, perturbar a ascética educação do filho. Eu escutava-as, sim, mas atrás das portas. Um dia ouvi a minha mãe dizer ao meu pai: António, prefiro a verdade, por mais dura que seja, à mentira piedosa. E você está farto de saber isto. Pela última vez lhe peço que me diga o que se passa consigo, quem sabe se comigo, porque eu não sei, mas diga, por favor, imploro-lhe que me diga. A este pedido magoado ele respondeu com a sua habitual frieza glacial: a minha vida é transparente, Ofélia, e por isso nada tenho para lhe contar. E por aí se ficou». In José Manuel Saraiva, A Terra Toda, Porto Editora, Porto, 2011, ISBN 978-972-004-327-6.

Cortesia de PEditora/JDACT