sábado, 30 de abril de 2016

A Primeira Mestiça. Álvaro Vargas Llosa. «Era taciturna e obediente, como a tradição exigia das princesas virgens da casta imperial. Pizarro, que pertencia a uma raça altiva, deve ter-lhe reconhecido uma certa dignidade, pois conferiu-lhe imediatamente um estatuto…»

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O cerco a Lima
«(…) Nas semanas seguintes, Hernando Pizarro regressou a Lima, tendo partido de Espanha, com boas notícias para o seu irmão Francisco: o rei tinha aumentado o território sob a sua alçada em setenta léguas! Também levava, sem grande alvoroço, o que Almagro tanto tinha cobiçado: as provisões para os territórios sob a sua jurisdição, que o rei fixava em duzentas muito modestas léguas. O primeiro encontro de Hernando com a sobrinha Francisca foi breve, pois poucas semanas após a sua chegada, o irmão, preocupado com as informações que lhe chegavam do Cuzco, enviou-o para a antiga capital com poderes de governador e de juiz-mor. Importa mostrarmo-nos mais comedidos no trato com eles, pois diz-se que o inca vai acumulando rancor, explicou-lhe Francisco, antes de o enviar.
Hernando tomou logo à letra os seus títulos e o seu papel de irmão mais velho. A sua prudência política era superior à de Juan e Gonzalo, mas inferior à sua própria ganância. Mostrou-se mais amável no trato com o inca, como lhe tinha sugerido, para além do seu irmão, o próprio Imperador Carlos V que tinha conhecimento dos serviços prestados por Manco aquando da tomada do Cuzco e no apaziguamento dos vencidos. Mas uma coisa era evitar provocações excessivas, outra era desperdiçar oportunidades douradas, cintilantes, mesmo. No início de 1536, aproveitando a época das chuvas, altura em que os índios não podiam movimentar-se com facilidade caso sentissem a tentação de se revoltarem, exigiu novas entregas de ouro ao inca. Tinha os olhos postos nas múmias dos antepassados incas, banhadas a ouro e prata e, segundo um relatório anónimo, tão volumosas como as pipas ou tonéis em que se armazenavam água e vinho, nos navios. Como não retribuiria o inca agradecido a liberdade recuperada?
Atahualpa não fazia ideia do significado que viria a adquirir o seu acto quando ofereceu a Pizarro o presente de carne e osso que dava pelo nome de Quispe Sisa. Isto aconteceu na sequência do primeiro embate, quando foi feito prisioneiro em Cajamarca. Fiel ao velho costume de entregar as esposas secundárias aos senhores ou caciques com quem pretendia estabelecer alianças, o inca entregou a própria irmã ao Conquistador. Quispe Sisa viajara preocupada desde Cuzco, com o resto da corte, para o acompanhar no seu momento de desgraça, e teve uma recepção carnal: Atahualpa transmitiu-lhe que ia entregá-la a Pizarro, o seu raptor.
E foi o que fez. Mas aquela índia orgulhosa não deixou transparecer os seus pensamentos, tão obscuros para quem pretendesse interpretá-los como a sua pele acobreada. Era taciturna e obediente, como a tradição exigia das princesas virgens da casta imperial. Pizarro, que pertencia a uma raça altiva, deve ter-lhe reconhecido uma certa dignidade, pois conferiu-lhe imediatamente um estatuto que ultrapassava o de mera concubina. No início, limitou-se a namoriscar com ela, em atenção aos seus cinquenta anos de vida e à sua libido adiada. Contudo, mais tarde chegou a sentá-la à sua mesa, juntamente com os seus lugares-tenentes, o que constituía a máxima expressão da respeitabilidade naquele tempo de hierarquias sociais improvisadas. Nem ele saberia dizer quanto esta decisão teve de respeito para com a linhagem real da princesa; quanto de vertigem perante o poço daqueles olhos negros, em que repousava uma cultura mais antiga e soberba do que quantas conhecera nas suas viagens pelas Caraíbas, América Central e Panamá; e quanto de fria estratégia política para estabelecer convivências que protegeriam raptores de Atahualpa da ira vingativa de um povo massivamente numeroso. A verdade é que as orelhas avantajadas da princesa e a cascata elegante dos seus cabelos se tornaram, desde a primeira hora, presença constante ao lado do Conquistador.
Em Quispe Sisa, reproduzia-se, de certa forma, o destino da sua própria mãe, Contarhuach, que, em 1515, integrou a legião de esposas secundárias de Huayna Cápac (que veio a ser pai de Atahualpa). O lendário inca entregara ao pai de Contarhuacho o senhorio de Tocas y Huaylas, no sopé da Serra Nevada. O nome de Quispe Sisa foi logo alterado para Inés Huaylas por essa magia da conquista chamada baptismo. A história do Peru enredou-se para sempre, no momento em que Pizarro abraçou a cascata cabeluda da índia, pois, a partir desse instante, o relato das proezas guerreiras do Conquistador no Tahuantinsuyo passou a ser também o das façanhas do marido de Inês Huaylas, irmã do inca. A história que Inés Huaylas começou a reconstruir mentalmente, com base nos relatos de quem se sentava consigo à mesa e do seu marido recente, teve a virtude ambígua de a humilhar e vingar ao mesmo tempo, pois uma parte de si pertencia ao passado vencido, e outra ao presente vencedor». In Álvaro Vargas Llosa, A Primeira Mestiça, 2004, tradução de Luís Coutinho, Saída de Emergência, 2013, ISBN 978-989-637-503-4.

Cortesia de SEmergência/JDACT