sexta-feira, 22 de abril de 2016

A Favorita do Rei. Sandra Worth. «Entraram mais nobres na sala, o que era um mau sinal. O meu pai teria que interromper o nosso jogo e reunir-se com eles à volta de uma mesa, à porta fechada. Mas abandonaram o ar carrancudo e sorriram-me amavelmente»

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A filha do rei. 1470
«Era to divertido jogar à cabra-cega com o meu pai! Escondi-me atrás de uma coluna e espreitei. Ele vinha na minha direcção, a tentear como um cego. Isabel, Isabel!, exclamou. Onde estás? Não te vejo. Ri-me. Ele não me via, claro está! Tinha os olhos vendados com o lenço de seda preta que eu lhe atara à volta da cabeça. Corri pela sala, gritando de alegria e esquivando-me às suas mãos estendidas. Quando ele veio direito a mim, afastei-me da coluna, contornei a mesa enorme ao meio da sala e fugi para o vão da janela. Fiquei ali à espera e tentei não fazer barulho, mas tive um ataque de riso quando ele chocou com uma parede e derrubou um candelabro. Não havia ninguém com quem eu gostasse tanto de brincar, nem sequer as minhas irmãs Maria e Cecília, que eram mais novas do que eu e gritavam de mais. Mas o meu pai estava sempre a rir. Era quase tão grande como o dragão de que me falara numa das suas histórias, embora fosse bonito e nada tivesse de assustador. Não se parecia nada com um dragão, com os cabelos louros a caírem sobre a venda. Embora, eu não conseguisse ver-lhe os olhos azuis piscos por causa do lenço, a ternura dele envolvia-me como o meu cobertor preferido. O papá estava agora perto, como se soubesse que eu me encontrava sentada no vão da janela. Olhei à volta da sala, a pensar para onde havia de ir. Para o canto, atrás da armadura! Levantei-me e corri para lá, aos guinchos. Os criados, risonhos, afastaram-se para me dar passagem. Os nobres que se haviam reunido ali nos últimos sessenta minutos também me sorriram. O meu pai virou-se como se me visse com a nuca e veio de novo na minha direcção. Com medo, dei um grito e corri para o armário de prata encostado à parede oposta. Acocorei-me ao lado, sem fazer barulho, sem me atrever sequer a respirar. O guarda que estava à porta virou-se e deitou-me um olhar encorajador.
Entraram mais nobres na sala, o que era um mau sinal. O meu pai teria que interromper o nosso jogo e reunir-se com eles à volta de uma mesa, à porta fechada. Mas abandonaram o ar carrancudo e sorriram-me amavelmente quando passei por eles a correr em direcção aos aposentos privados do meu pai. Apesar da venda nos olhos, o meu pai parecia saber onde eu estava, porque veio atrás de mim. Ia-me apanhando várias vezes, mas eu esquivei-me e ele agarrou no braço de uma cadeira e chocou com o canto de uma mesa. Senti-me satisfeita por ficar a sós com ele. Longe dos pares do reino, talvez o papá os esquecesse e pudéssemos brincar mais um pouco. O mobiliário do quarto resumia-se a uma cama de dossel, um baú alto e uns cadeirões e almofadas junto da lareira. O papá nunca me apanharia em cima da cama, que era enorme e me permitiria trocar-lhe as voltas com facilidade. Agarrei-me a um dos balaústres e dei um salto. Eduardo!
A voz ríspida da minha mãe obrigou-me a parar. O riso cessou e fiquei muito quieta em cima da cama, tentando equilibrar-me no colchão de penas macias que estava coberto por uma colcha de seda brilhante com sóis dourados e rosas brancas, o brasão do meu pai. Eu já não sorria, nem ele. Tirou a venda e olhou para a minha mãe. Ela estava à porta, com uma expressão implacável; o cabelo louro parecia uma auréola por baixo do toucado cónico de veludo e do véu finíssimo. Mas, ao contrário do meu pai, a minha mãe raramente sorria. Quando ela entrou no quarto, percebi que estava zangada por qualquer motivo. Eduardo, às vezes não te percebo! A brincares à cabra-cega com a Isabel como se não tivesses preocupações nenhumas. Quando o conselho te aguarda para tratar de assuntos urgentes. Minha querida Bel, que preocupações tenho eu? Que assuntos urgentes me esperam? O papá riu-se. Não há paz no meu reino? Não é verdade que os meus nobres me adoram, todos sem excepção?, Aproximou-se da minha mãe e inclinou-se para lhe dar um beijo na face porque, apesar de ela ser alta, ele era mais alto do que qualquer outro homem que eu conhecia. Eduardo, tu desafias a minha paciência, bem sabes, disse ela, suspirando. Ele ajoelhou-se aos seus pés e pegou-lhe na mão como se fosse Lancelote diante da rainha Guinevere. Meu amor, diz-me como te posso fazer sorrir.
A minha mãe fez um leve trejeito com a boca. Há uma maneira, Eduardo. Bem me parecia, Bel, disse ele, levantando-se. Há sempre. A alegria abandonara-o e modificara-o. Eu ignorava o motivo, mas sabia que alguma coisa não corria bem. Sai, Isabel, disse a minha mãe. Saltei da cama. Os meus pais não tiraram os olhos de mim enquanto não saí do quarto. Fechei a porta. A felicidade também me abandonara. Lá fora, os nobres reunidos à volta da mesa observaram-me e já não sorriram. Mais tarde, nessa noite, o meu pai veio ter comigo. Eu estava em camisa, a ama escovava-me o cabelo e preparava-me para ir para a cama. Papá!, exclamei, correndo para ele, radiante. Ele levantou-me com os seus braços robustos. Eu sentia-me sempre segura ali. Deu-me um beijo. O seu hálito cheirava a vinho. Depois, olhou para a ama e mandou-a sair com um gesto de cabeça. Ela fez uma vénia e fechou a porta sem fazer barulho ao retirar-se. Minha querida, hoje divertimo-nos, não é verdade? Fiz um sinal afirmativo. Divertimo-nos a todos, papá! Dei-lhe um abraço apertado e beijei-o na face. Umas vezes divertimo-nos, outras temos de tratar de assuntos sérios. Sentou-se comigo ao colo numa cadeira junto da minha cama. Aninhei-me nele e passei-lhe o braço à volta do pescoço. Esperei que ele voltasse a falar, porque fizera-se um silêncio». In Sandra Worth, A Favorita do Rei, A Primeira rainha Tudor, 2008, tradução de Maria F. Duarte, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2011, ISBN 978-989-657-165-8.

Cortesia de PlanetaM/JDACT