sábado, 30 de abril de 2016

A Primeira Mestiça. Álvaro Vargas Llosa. «Era taciturna e obediente, como a tradição exigia das princesas virgens da casta imperial. Pizarro, que pertencia a uma raça altiva, deve ter-lhe reconhecido uma certa dignidade, pois conferiu-lhe imediatamente um estatuto…»

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O cerco a Lima
«(…) Nas semanas seguintes, Hernando Pizarro regressou a Lima, tendo partido de Espanha, com boas notícias para o seu irmão Francisco: o rei tinha aumentado o território sob a sua alçada em setenta léguas! Também levava, sem grande alvoroço, o que Almagro tanto tinha cobiçado: as provisões para os territórios sob a sua jurisdição, que o rei fixava em duzentas muito modestas léguas. O primeiro encontro de Hernando com a sobrinha Francisca foi breve, pois poucas semanas após a sua chegada, o irmão, preocupado com as informações que lhe chegavam do Cuzco, enviou-o para a antiga capital com poderes de governador e de juiz-mor. Importa mostrarmo-nos mais comedidos no trato com eles, pois diz-se que o inca vai acumulando rancor, explicou-lhe Francisco, antes de o enviar.
Hernando tomou logo à letra os seus títulos e o seu papel de irmão mais velho. A sua prudência política era superior à de Juan e Gonzalo, mas inferior à sua própria ganância. Mostrou-se mais amável no trato com o inca, como lhe tinha sugerido, para além do seu irmão, o próprio Imperador Carlos V que tinha conhecimento dos serviços prestados por Manco aquando da tomada do Cuzco e no apaziguamento dos vencidos. Mas uma coisa era evitar provocações excessivas, outra era desperdiçar oportunidades douradas, cintilantes, mesmo. No início de 1536, aproveitando a época das chuvas, altura em que os índios não podiam movimentar-se com facilidade caso sentissem a tentação de se revoltarem, exigiu novas entregas de ouro ao inca. Tinha os olhos postos nas múmias dos antepassados incas, banhadas a ouro e prata e, segundo um relatório anónimo, tão volumosas como as pipas ou tonéis em que se armazenavam água e vinho, nos navios. Como não retribuiria o inca agradecido a liberdade recuperada?
Atahualpa não fazia ideia do significado que viria a adquirir o seu acto quando ofereceu a Pizarro o presente de carne e osso que dava pelo nome de Quispe Sisa. Isto aconteceu na sequência do primeiro embate, quando foi feito prisioneiro em Cajamarca. Fiel ao velho costume de entregar as esposas secundárias aos senhores ou caciques com quem pretendia estabelecer alianças, o inca entregou a própria irmã ao Conquistador. Quispe Sisa viajara preocupada desde Cuzco, com o resto da corte, para o acompanhar no seu momento de desgraça, e teve uma recepção carnal: Atahualpa transmitiu-lhe que ia entregá-la a Pizarro, o seu raptor.
E foi o que fez. Mas aquela índia orgulhosa não deixou transparecer os seus pensamentos, tão obscuros para quem pretendesse interpretá-los como a sua pele acobreada. Era taciturna e obediente, como a tradição exigia das princesas virgens da casta imperial. Pizarro, que pertencia a uma raça altiva, deve ter-lhe reconhecido uma certa dignidade, pois conferiu-lhe imediatamente um estatuto que ultrapassava o de mera concubina. No início, limitou-se a namoriscar com ela, em atenção aos seus cinquenta anos de vida e à sua libido adiada. Contudo, mais tarde chegou a sentá-la à sua mesa, juntamente com os seus lugares-tenentes, o que constituía a máxima expressão da respeitabilidade naquele tempo de hierarquias sociais improvisadas. Nem ele saberia dizer quanto esta decisão teve de respeito para com a linhagem real da princesa; quanto de vertigem perante o poço daqueles olhos negros, em que repousava uma cultura mais antiga e soberba do que quantas conhecera nas suas viagens pelas Caraíbas, América Central e Panamá; e quanto de fria estratégia política para estabelecer convivências que protegeriam raptores de Atahualpa da ira vingativa de um povo massivamente numeroso. A verdade é que as orelhas avantajadas da princesa e a cascata elegante dos seus cabelos se tornaram, desde a primeira hora, presença constante ao lado do Conquistador.
Em Quispe Sisa, reproduzia-se, de certa forma, o destino da sua própria mãe, Contarhuach, que, em 1515, integrou a legião de esposas secundárias de Huayna Cápac (que veio a ser pai de Atahualpa). O lendário inca entregara ao pai de Contarhuacho o senhorio de Tocas y Huaylas, no sopé da Serra Nevada. O nome de Quispe Sisa foi logo alterado para Inés Huaylas por essa magia da conquista chamada baptismo. A história do Peru enredou-se para sempre, no momento em que Pizarro abraçou a cascata cabeluda da índia, pois, a partir desse instante, o relato das proezas guerreiras do Conquistador no Tahuantinsuyo passou a ser também o das façanhas do marido de Inês Huaylas, irmã do inca. A história que Inés Huaylas começou a reconstruir mentalmente, com base nos relatos de quem se sentava consigo à mesa e do seu marido recente, teve a virtude ambígua de a humilhar e vingar ao mesmo tempo, pois uma parte de si pertencia ao passado vencido, e outra ao presente vencedor». In Álvaro Vargas Llosa, A Primeira Mestiça, 2004, tradução de Luís Coutinho, Saída de Emergência, 2013, ISBN 978-989-637-503-4.

Cortesia de SEmergência/JDACT

O Fio do Tempo. João Paulo O. Costa. «Ao ouvir tais palavras, o coração de Álvaro alvoroçou-se e o jovem escudeiro começou a tremer, e não conseguiu evitar que as lágrimas lhe corressem pela face. Não vos apiedeis de mim. Ganhei a minha honra, e morro na companhia de um bravo»

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O primeiro voo
«(…) Foi a vez de Jerónimo gerar novo entusiasmo entre os invasores. O fidalgo jurara que havia de cravar o seu punhal nas portas de Ceuta, naquela manhã, e entendeu que era tempo de cumprir a sua estorvada intenção. Gritando por Santiago, começou a correr; logo Álvaro o perseguiu de montante em riste, e toda a hoste, incluindo os infantes, avançaram à desfilada contra a cidade, apesar de as ordens d'el-rei se resumirem à obrigação de tomarem a praia. Volteando o seu montante, Álvaro quase atingiu Jerónimo, porém, o choque com os mouros foi terrível. Comprimido entre a pressão dos que defendiam e a dos que atacavam, Álvaro limitou-se a evitar a queda; ainda se desequilibrou, mas usou o montante como um bordão. Jerónimo afastara-se, adiando a morte que lhe estava marcada. O ímpeto brutal dos assaltantes surpreendeu os defensores; Álvaro e os seus companheiros, incluindo os infantes, entraram em Ceuta envoltos pelos mouros, e Jerónimo cravou o seu punhal na porta da cidade. Centos de portugueses avançaram até à primeira praça, onde os oficiais deram ordem de paragem. Parecia um sonho, haviam entrado na cidade ao primeiro assalto. Os infantes, acompanhados pelo meio-irmão, o conde de Barcelos, reorganizavam a hoste. Vamos limpar esta cidade dos infiéis, rua a rua, gritou o conde.
O monarca Duarte I coordenava as forças e dividiu-as em vários grupos; Álvaro conseguiu colocar-se a par de Jerónimo; estava prestes a cumprir a sua vingança. Seguindo Martim Afonso Melo, o guarda-mor d'el-rei, Álvaro e Jerónimo penetraram no dédalo da urbe africana. Ambos integraram a cabeça da coluna que investia sobre defensores desnorteados e habitantes desesperados. Excitado pelo combate, entusiasmado com a vitória extraordinária que se avizinhava, Álvaro ocupou-se da luta selvagem contra o inimigo. Os golpes certeiros causavam admiração entre os companheiros que o seguiam. De repente, porém, uma nuvem de virotes caiu sobre os assaltantes ao dobrar de uma esquina: um peão caiu, contorcendo-se com um ferro espetado na orelha e Jerónimo vacilou, pois um projéctil passara pelas juntas da armadura no seu joelho e destruíra-lhe a rótula. A turba prosseguiu, imparável, passando por cima do peão moribundo, quando saíram dois mouros de lança em riste por uma porta que não fora aberta pelos assaltantes. Álvaro, que se detivera ao aperceber-se do ferimento do seu rival, sentiu uma lança contra a sua couraça, que porém, resistiu. Tombou com o impacto, e um inimigo caiu sobre ele, contudo, a ferocidade do Ataíde eliminou-o num ápice; o outro atacava Jerónimo, que, aturdido pela dor no joelho, não se defendeu, sendo trespassado pela arma inimiga. O grito de triunfo que o mouro soltou foi interrompido pelo golpe que lhe deceptou a cabeça. Coberto do sangue das suas vítimas, Álvaro acercou-se do fidalgo moribundo. Jerónimo chamou o companheiro de armas com um fio de voz. Ajudai-me, cavaleiro. Sou um simples escudeiro, disse Á1varo, embaraçado. Sois um bravo. Andamos juntos há horas e bem vi as vossas proezas. Um esgar de dor interrompeu as suas palavras, mas depois prosseguiu: são feridas de morte. Peço-vos que solteis a minha couraça.
Os combates prosseguiam noutras ruas, todavia, ali, a luta havia cessado. Restavam feridos gemendo, e a primeira vaga da soldadesca iniciava o esbulho. Indiferente ao que o rodeava, Álvaro teve dificuldade em realizar a operação sem tocar na haste que atravessava o abdómen de Jerónimo. Parte dos intestinos estavam na ponta da lança e Álvaro não conseguiu evitar o vómito. Quando soltou a couraça, chocado, viu no peito suado de Jerónimo a imagem de Santa Catarina de Sena que ele oferecera a Filipa Andrade no dia em que a tomara para si, em Outubro do ano anterior. Tomai este fio, por favor. Foi-me dado pela mulher que amo. O fidalgo respirava com mais dificuldade e um fio de sangue escorria-lhe pelo canto da boca. Conhecia-a na corte vai para quatro meses. e levei-a comigo.
Ao ouvir tais palavras, o coração de Álvaro alvoroçou-se e o jovem escudeiro começou a tremer, e não conseguiu evitar que as lágrimas lhe corressem pela face. Não vos apiedeis de mim. Ganhei a minha honra, e morro na companhia de um bravo. A minha amada pediu-me que perfilhasse o filho que já levava no ventre, e eu acedi. Álvaro ouvia-o, petrificado. Suplico-vos que ides, no final desta santa jornada, a Sátão, e que entregueis esta imagem a Filipa Andrade. Peço-vos ainda que sejais testemunha da minha paternidade, quando nascer a criança. A voz sumia-se e o sangue recrescia. Álvaro tomou o fio nas suas mãos. Como vos chamais, nobre companheiro? Álvaro respondeu instintivamente, sem reflectir, e, na verdade, sem querer afligir o homem que ainda há pouco tentava matar: sou Álvaro Ataíde». In João Paulo O. Costa, O Fio do Tempo, 2009, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2011, ISBN 978-989-644-135-7.

Cortesia CL/TDebates/JDACT

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Um País Encantado. Luís Miguel Rocha. «Aquele que ali vem a entrar no cemitério é o filho que atraiçoou o pai pelos seus ideais, que o matou de desgosto aos trinta e nove anos, já lá vão vinte e dois, faz hoje. Três de Abril de mil novecentos e trinta e três, nesta data em que, de madrugada…»

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O importante não é aquilo que fazem de nós, mas que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós. In Jean.Paul Sartre

«(…) E estes três, os da dinastia terceira, acabaram também por ir no primeiro de Dezembro de mil seiscentos e quarenta, cinquenta em nove anos depois de cá terem entrado. Tudo é uma questão de tempo e até as coisas más se vão embora e eis que retornamos ao fio da meada, já que falávamos de coroações, das duas a que este assistiu, onde exibia com todo o orgulho a quinquilharia militar da farda de cerimónia do Exército Real, bonita farda, em sentido, primeiro, para a revista e no desfile, depois, mostrando ao mundo a grandeza do nosso Império, orgulho de todos nós, a passar aos olhos dos convidados das outras nações, bem mais pequenas em terras, umas, e outras da mesma grandeza ou até maiores, uma, a do reino britânico, maior do que nós, não muito, mas maior. Felicidade estampada no rosto patriota enquanto passava à frente deles, o cheiro de toda a hierarquia unida num só momento e ele ali a passar, mais um a fazer número, ou talvez não porque é bem provável que o monarca soubesse o nome completo de todos os que o serviam e morriam por ele, da mais alta patente à mais baixa, do continente às Áfricas, a Goa, a Damão, a Diu e Timor-Leste, esses não estavam nas coroações, pois não se podia deixar o pecúlio abandonado. Este que aqui jaz já era morto antes de morrer, antes de o coração parar de bater, este desde o último Outubro que passou que morreu, desde que optara por não mais sair de casa e pouco comer e beber. Não pelo desgosto de não poder desfilar em mais coroações de soberanos, porque isso acabara para sempre, nada disso, orgulhava-se de ser monárquico, servira sempre a reis e não o faria a presidentes disso a que chamavam República, jamais. Não passava tudo de um antro de podridão com cheiro a bafio e corrupção, modos modernos de sermos todos iguais e chegarmos ao poder, mesmo vindos de lado nenhum, para fazermos progredir as nossas sociedades financeiras e os bolsos dos nossos cidadãos amigos e esquecermos que somos todos iguais. Não era por nada disso. A sua querida monarquia já devia dois reinados à nova República, estava moribunda, mas isso não lhe deu tanto desgosto quanto a traição do seu filho mais velho, o primeiro macho que abraçou com ternura e orgulho, exactamente o que encomendara a Deus, como todos fazemos quando vemos as mulheres grávidas. Um valente com um feitio igual ao seu e pose militar que despachou para a academia logo que teve idade, para servir El-Rei e os seus descendentes onde o mandassem lutar pelos interesses soberanos da nossa Pátria, mãe de todos os nossos contentamentos, proveitos e glórias a quem devemos lealdade, veneração e amor. Nada fazia prever o lado oculto de uma força em ascensão que o acompanhava de perto e lhe incutia erros ímpios e um massacre dos seus valores e dos do brasão da família. Foi um dos golpistas da Revolução de Outubro, um golpe de Estado que destituiu o progresso e instalou a devassidão, em seu entender, que acabou com os valores morais e chamou o desgoverno. Um filho criado com todo o amor e dedicação da mãe e toda a formação de carácter ético do pai, varreu por terra todo o trabalho, mostrando-lhe pela primeira vez o sentimento de falhar uma missão..., a de educar. Portugal tem de acompanhar o que se passa lá fora, a evolução, disse-lhe uma vez o filho, a última vez que falaram. Portugal acabou hoje, para vergonha nossa e por culpa tua para toda a tua vida, disse-lhe este que aqui jaz, e nunca mais se falaram. Nem mesmo por alturas da morte deste o filho apareceu a chorar o pai. As ideias são muralhas ao entendimento entre uns e outros, sejam de que tipo forem, políticas, religiosas, sexuais, se é que as há porque neste mundo de agora sabe-se pouco disso. Não mais se viram desde o golpe e desde aquela conversa, pequena, mas com mais assunto do que se disse aqui, se sabiam que nunca mais se veriam até ao fim dos tempos, seria diferente... ou talvez não.
Aquele que ali vem a entrar no cemitério é o filho que atraiçoou o pai pelos seus ideais, que o matou de desgosto aos trinta e nove anos, já lá vão vinte e dois, faz hoje. Três de Abril de mil novecentos e trinta e três, nesta data em que, de madrugada, nasceu Mariana Silveira, filha do filho que atraiçoou o pai, o nosso coronel José Silveira, que aqui chega ao familiar jazigo em que repousa seu pai e três irmãos dele, todos militares, patriotas e monárquicos que pereceram no tempo dos reis, bons tempos. Queda-se a olhar para dentro, para as urnas mortuárias, marejam os olhos enquanto o passado passa por eles directo ao coração. Só as coisas boas, que é das que se sente mais falta. É matreiro o nosso passado em certas horas, só deixa ver o que lhe interessa que nos comova, as boas alturas dos bons tempos, censurados também eles com mestria para nos fazer vergar em sentimentos de nostalgia bucólicos que nos marejam os olhos a uns e fazem soluçar outros, mas não ao nosso coronel, que não é de pranto fácil. Queda-se pelo marejar enquanto revive os bons instantes que passou com o pai. Se não morresse tão novo talvez chegasse a general, como almeja um dia o coronel, como almejamos todos galgar ao topo da nossa lida até não haver mais para trepar, sem bater no tecto, nem errar algum degrau. Talvez até chegasse a coronel se não se tem finado tão viçoso do desgosto que o acometeu. Aqui veio o coronel prestar contas que deviam ter sido resolvidas durante a existência dos dois deste lado, mas ninguém sabe quando uns e outros vão para o outro, é sempre uma viagem sem data de marcha, ou então saldar-se-iam as dívidas que temos uns com os outros e que não são poucas... ou talvez não». In Luís Miguel Rocha, Um País Encantado, Planeta Editora, Lisboa, 2005, ISBN 972-731-176-8.

Cortesia de PlanetaE/JDACT

quinta-feira, 28 de abril de 2016

O Mistério do Infante Santo. Jorge Sousa Correia. «… deixou mais uma frase por decifrar: “se é a vós que sirvo, não deixeis que me consagre a outros, reconsiderai também como me aconselhais”. Ao retirar-se, o infante…»

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O infante Fernando não quer ficar
«(…) Não obstante os monólogos íntimos que o infante e o rei travavam, lampejos da mente sobre a fala, eles traduziam-se acima de tudo na necessidade de evitar agredirem-se, sempre à procura de uma mesura que pudesse suavizar o palavreado. Que dizeis, Fernando?, insurgiu-se o rei. Que injustiça pretendeis acometer-me? Sabeis tão bem como eu que depois de nosso pai morrer nunca deixei de vos agasalhar, acrescentar e manter. Dignifiquei a vossa Casa, fiz crescer os vossos bens, protegi-vos. Que tínheis vós antes de nosso pai falecer? Eu digo-vos. Tínheis menos do que tens agora. Porque não lhe dissestes a ele o que me estais hoje a dizer?
Sem se interrompe em jeito de reprimenda, Duarte continuou: a vós dei-vos o Mestrado de Avis, que de rendas é superior ao de Sant'Iago que nosso irmão João detém, e dessa inferioridade ele se não queixou como agora vós fazeis. Contrariamente ao que vindes defendendo, não quiseste aceitar o barrete cardinalício que vos oferecia Gomes Ferreira por recomendação de Sua Eminência. Que maior dignidade podias alcançar se aceitasses o cargo e que rendas não conseguirias? Não seria mais apropriado para vós, um homem tão dedicado a Deus, serdes cardeal? No capítulo dos casamentos, nunca vos vi interessado em folgar com donzela, assim como também desconheço o vosso interesse pelo matrimónio. Se é certo que convinha a Portugal o casamento de um dos seus mais ilustres filhos, também é verdadeiro que mesmo sem estar de acordo tenho respeitado o vosso voto de castidade. É só por isso que não tendes hoje dama da melhor qualidade para vos aquecer a cama e gerar os filhos que gostarias de ter. Sendo assim, proponho-vos o seguinte: prontificas-te a renegar o voto de castidade? Responde, irmão, toma esse compromisso comigo, sela nem que seja com um abraço a proposta que vos faço e hoje mesmo emissários percorrerão o mundo para vos encontrar dama de virtude e realeza sem par. Fala, responde ao que te proponho!
O infante gaguejou, entupido pela força que Duarte deu ao desafio. Queria dizer que sim, que não, que ia pensar, mas ficou mudo, de cabeça baixa, sem responder ao repto que o irmão lhe fez. Porque forçais a vossa ignorância?, prosseguiu Duarte. É só para me reptardes? Olha, irmão, não estás casado, mas não estás atrasado. Isso vos garanto. Tinha eu mais três anos do que agora vós tendes quando me casei com a nossa amada rainha, os mesmos anos que Pedro havia quando se casou com a senhora dona Isabel de Urgel. Não há por isso nenhum desacerto, não pode haver, a não ser a manifesta vontade em manterdes o sacramento que juraste. Um reino não se constrói num só dia. Por muito que nosso pai o tenha erguido, muito há para fazer. Esperai algum tempo e vereis que aparecerão assuntos importantes para um nobre da vossa estirpe se envolver e deles retirar o engrandecimento que hoje reclamais. Ide, reconsiderai, esperai que vos proponha assunto vantajoso. Até lá, aguardai por uma resposta que não deixarei de vos dar.
Aceitando o convite, quase a vencer a ombreira da porta, Fernando, virando-se para trás, deixou mais uma frase por decifrar: se é a vós que sirvo, não deixeis que me consagre a outros, reconsiderai também como me aconselhais. Ao retirar-se, o infante deixou na sala um vazio difícil de preencher. Duarte trancou-se silencioso, olhos fechados para melhor intuir o que acabara de suceder. Aos poucos, recuperando cada momento da conversa ainda fresca, tentou estabelecer ligações entre os argumentos do irmão e o persistente clima de conspiração que pressentia. Duvidava. Duvidava mesmo que fossem realmente as razões expostas pelo irmão o verdadeiro motivo da presença dele ali naquele dia. Todavia, ficava com que se entreter. Levantou-se, atravessou a sala em passadas que retomavam a partida, avançando para recuar demorando uma eternidade para chegar de uma parede a outra. Rebuscava naquele incessante caminhar, antes de mais, um significado que o levasse ao cerne da questão: tudo o que o irmão lhe disse correspondia a uma iniciativa concertada? Assim sendo, quem eram os concertantes? Não lhe ocorria nenhuma relação e por isso se martirizava.
Uma sombra, a opacidade dos dias infelizes assestou sobre o rosto de Duarte. A angústia de estar perto da verdade sem no entanto a alcançar devorava-lhe a mente. Para ele, o palavreado do irmão tanto podia significar uma proposta, uma ameaça, ou mesmo, quem sabe, uma traição. Mas se não fosse assim? Se o discurso de Fernando significasse apenas um desabafo? Então só tinha de relegar tudo o que foi dito para os assuntos sem importância. Se é a vós que sirvo, não deixeis que me consagre a outros, reconsiderai por isso também como me aconselhais, repetia Duarte para si, sem saber como interpretar a frase. Sentiu medo. Não por ele, pensava na família, e só a simples ideia de a imaginar desunida o comovia. Ele, o guardião irrepreensível da concórdia familiar, não podia deixar quebrarem-se os laços fraternais por causa de interesses pessoais, lembrando-se recorrentemente do juramento que fez à saudosa mãe e que naquela hora fazia mais sentido do que nunca». In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.

Cortesia de Cdo Autor/JDACT

A Conspiração Colombo. Steve Berry. «Nenhum verme se infiltrara, como acontecera com o casco de seu navio no ano anterior. Um ano que ele passara abandonado nesta ilha. Mas o seu cativeiro tinha chegado ao fim»


jdact e wikipedia 
«Há quinhentos anos, os historiadores fazem uma pergunta: quem foi Cristóvão Colombo? A resposta é simplesmente outra pergunta: quem quer que ele seja?» In Observador anónimo 
Jamaica 1504
«Cristóvão Colombo percebeu que o momento decisivo estava próximo. O seu destacamento avançava penosamente para o sul, atravessando a densa floresta desta terra tropical havia três dias, ganhando cada vez mais altitude. De todas as ilhas que descobrira desde a primeira terra avistada, em Outubro de 1492, esta era a mais bela. Uma planície estreita margeava sua costa rochosa. Montanhas formavam uma espinha encoberta, subindo gradualmente desde o oeste e culminando na tortuosa cadeia de picos que agora a cercavam. A terra era quase toda formada por calcário poroso coberto por um fértil solo vermelho. Uma incrível variedade de plantas florescia por baixo da grossa protecção da antiga floresta, todas nutridas por constantes ventos húmidos. Os nativos que viviam ali chamavam o lugar de Xaymaca, que, Colombo descobrira, significava terra dos mananciais, o nome fazia sentido, uma vez que havia água abundante em todos os lugares. Mas, como em espanhol o X é substituído pelo J, ele passara a chamar o lugar de Jamaica. Almirante. Ele parou e virou-se para encarar um de seus homens. Não está longe, disse De Torres, apontando para a frente. Montanha abaixo até aquela área plana, passando depois pela clareira. Luís navegara com ele nas três viagens anteriores, incluindo a de 1492, quando desembarcaram pela primeira vez. Eles entendiam-se e confiavam um no outro. Colombo não podia dizer o mesmo dos seis nativos que transportavam as arcas. Eles eram bárbaros. Apontou para dois, que carregavam uma das menores arcas, e fez um sinal para que tomassem cuidado. Estava surpreso por, depois de dois anos, a madeira ainda estar intacta. Nenhum verme se infiltrara, como acontecera com o casco de seu navio no ano anterior. Um ano que ele passara abandonado nesta ilha. Mas o seu cativeiro tinha chegado ao fim. Você escolheu bem, disse ele para De Torres em espanhol. Nenhum dos nativos sabia falar a língua. Outros três espanhóis os acompanhavam, todos escolhidos a dedo. Os nativos tinham sido recrutados e subornados com a promessa de mais guizos, bugiganga cujo som parecia fasciná-los, caso carregassem três arcas para as montanhas. Eles tinham começado ao amanhecer, numa clareira na floresta adjacente ao litoral norte, um rio próximo que jogava água gelada e cristalina montanha abaixo, formando várias piscinas e, finalmente, dando um último mergulho prateado até ao mar. O zumbido constante de insectos e o canto dos pássaros estavam mais altos, atingindo um crescendo ruidoso. Carregar as arcas montanha acima exigia esforço, e todos eles estavam ofegantes, com as roupas suadas agarradas à pele e sujidade cobria os seus rostos. Agora, desciam para o exuberante vale. Pela primeira vez em muito tempo, Colombo sentia-se rejuvenescido. Amava esta terra. Ele liderara a primeira viagem em 1492, indo contra os conselhos de pessoas consideradas cultas. Oitenta e sete homens acreditaram no seu sonho e aventuraram-se no desconhecido. Durante décadas, ele esforçara-se para conseguir que financiassem a sua viagem, primeiro com os portugueses, depois com os espanhóis. As Capitulações de Santa Fé, que assinou junto à coroa espanhola, prometeram a ele status de nobre, dez por cento de todas as riquezas e controle dos mares que descobrisse. Um excelente negócio no papel, mas Fernando e Isabel não cumpriram a sua parte. Nos últimos 12 anos, depois que ele provou a existência do que todos estavam chamando de Novo Mundo, navios espanhóis navegaram para o oeste, um atrás do outro, e nenhum deles com sua permissão como Almirante do Oceano. Mentirosos. Todos eles. Ali, disse De Torres. Colombo parou a sua descida e olhou entre as árvores com milhares de flores vermelhas, que os nativos chamavam de Chama da Floresta. Localizou uma piscina clara, lisa como vidro, e o gorgolejo de mais água em movimento. A sua primeira viagem à Jamaica fora em Maio de 1494, na sua segunda incursão, quando descobriu que o litoral norte era habitado pelos mesmos nativos encontrados nas ilhas próximas, só que ali eram mais hostis. Talvez a proximidade com os caraíbas, que viviam em Porto Rico, a leste, fosse o motivo de sua agressividade. Os caraíbas eram canibais ferozes que só entendiam a língua da força. Com base na sua aprendizagem, Colombo despachara cães de caça e arqueiros para iniciarem a conversa com os jamaicanos, matando alguns e maltratando outros, até que estivessem dispostos a agradá-lo. Ele parou o avanço da caravana. De Torres aproximou-se e sussurrou: é aqui. O lugar». In Steve Berry, A Conspiração Colombo, 2012, Maria B. Medina, Editora Record, 2014, ISBN 978-850-140-380-3. 
Cortesia de ERecord/JDACT

D. João II. As Sombras. Jorge S. Correia. «… que a princesa, ao ter conhecimento do noivo que o irmão lhe arranjara, anunciou logo que precisava de um homem mais novo que a amasse e com ela vivesse para sempre…»


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El Hombre
«(…) Tudo tratado, compromissos e alianças juradas, dispensa do papa para ultrapassar a consanguinidade, lá seguiu a nata da nobreza portuguesa para a fronteira, estanciando em Cienpozuelos, pequeno povoado já no interior de Castela, para receber dona Isabel, a princesa castelhana oferecida pelo irmão a Afonso V. Se é verdade que em qualquer casamento a noiva chega sempre atrasada, desta vez a demora foi para além da paciência da comitiva portuguesa. Esperaram, esperaram, o tempo medieval era pouco pontual, por isso ficaram para o outro dia. Mas de dona Isabel, nem o mais leve sinal. Mal sabia o bispo de Lisboa e os nobres que acompanharam o rei, que a princesa, ao ter conhecimento do noivo que o irmão lhe arranjara, anunciou logo que precisava de um homem mais novo que a amasse e com ela vivesse para sempre: se ao menos Afonso se transformasse num príncipe encantado como nas fábulas...,pensou a princesa, ainda se fosse como o príncipe João, filho dele, voltou a jovem a pensar, mas não, com tal homem não me casarei nunca!
O anúncio de dona Isabel foi ouvido por todo o reino, chegando audível também a Aragão, onde o príncipe Fernando se dispôs a dar corpo às reivindicações da jovem. Tanto mais que as promessas eram muitas e de grande valor, e a possibilidade de vir a ser rei de Castela e Aragão determinante. Agora sim! O que a seguir vem é mesmo um conto de príncipes e princesas. Aproveitando uma deslocação de Henrique IV a Andaluzia, no extremo sul do território castelhano, viagem que levaria muito tempo a cumprir, dona Isabel, por intermédio dos nobres que a apoiavam, mandou dizer a Fernando de Aragão que já era só nele que pensava: se assim é, disse para si o aragonês, ela que se prepare, porque não tarda, antes que o irmão venha de lá de baixo, me apresentarei na Corte para que a senhora veja como é diferente o garbo aragonês.
Disfarçado de almocreve, uma profissão de baixa condição, Fernando de Aragão andou uns dias escondidos por Valladolid, a capital de Castela dessa altura, para na primeira oportunidade se introduzir secretamente no paço e casar com a princesa. Claro que quando Henrique IV tomou conhecimento do logro, ficou furioso: el trato que hicimos en Toros de Guisando, par el bien de Castilia, deja de tener valor, proclamou Henrique, irritado com a iniciativa casamenteira de Isabel. E lá voltou tudo ao mesmo. Guerra aberta de palavras, por enquanto, ameaças de parte a parte, mas o que Henrique tratou logo foi de ralhar com a irmã: ai enganais-me?! Assim como assim, prefiro ser enganado por quem amo!, dito isto, recuperou a esposa de quem nunca se tinha divorciado, pelo menos de alma e coração. Quanto ao casamento da filha Joana com o príncipe português, como o jovem estava prometido à prima Leonor, a palavra de Afonso V não voltaria atrás. Na maior anarquia, Henrique IV foi perdendo cada vez mais apoios, enquanto Isabel e Fernando de Aragão os ganhavam de forma substancial. Desligado do poder, um rei fragilizado, acabaria por falecer em Dezembro de 1474, abrindo caminho à guerra civil entre partidários de Isabel e Fernando de Aragão, por um lado, e pelos da princesa dona Joana por outro: a esta, os primeiros alcunharam-na pejorativamente de Beltraneja, os segundos chamavam-lhe A Excelente Senhora.
Com apoios inferiores aos dos aclamados reis de Castela, os partidários de dona Joana viraram-se para Portugal, procurando em Afonso V o reforço das suas forças. Pois sim, disse-lhes o rei português, irei ajudar a minha sobrinha, mas para reforçar o elo que nos une, casarei com ela, intitulando-me, logo que o casório se realize, rei de Potugal e dos Algarves, de Aquém e Além-Mar em África, e por conseguinte, rei de Castela. Como é fácil de observar, era muito reino para um homem só. Mas isso era se Afonso V não fosse um soldado competente, experiente nas lides guerreiras, alguém que não se impressionava nem emocionava com quantos mortos estivessem à sua volta. Já tinha rachado muita cabeça em África, passado por grandes aflições e necessidades, era o combatente perfeito para ajudar dona Joana a fazer-se rainha de Castela e com isso reinar ele também. O mal de tudo é que o tempo não perdoa e Afonso, sem se convencer de que já não tinha ânimo para grandes investimentos, expunha-se a uma empresa difícil de gerir.
Em 18 de Maio de 1475, estando O Príncipe Perfeito com o pai em Arronches, dois assuntos entrechocaram-se no seu pensamento. Enquanto fazia da cabeça do pai o receptáculo dos seus conselhos sobre como havia de manobrar as tropas em Castela, os caminhos que devia trilhar, as escapatórias que podia utilizar e onde lhe era permitido buscar apoios, recebeu a notícia de que dona Leonor, sua mulher, tinha dado à luz um rapaz. Aquele dia tinha duas faces desiguais para o jovem. Se o nascimento de um filho o enchia de júbilo, o estado alucinado que via no comportamento do pai augurava-lhe maus auspícios. Ao tomar conhecimento do nascimento do neto, Afonso abraçou efusivamente o filho, e logo ali fez promessa de que seria o príncipe Afonso que lhe sucederia, mesmo que tivesse filhos de dona Joana». In Jorge Sousa Correia, As Sombras de D. João II, Clube do Autor, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-155-0.

Cortesia de Cdo Autor/JDACT

O Terceiro Segredo Steve Berry. «Ela era a mais velha, com dez anos, e tinha consciência disso. À sua direita, Francisco, de calças compridas e barrete, ajoelhou-se. À esquerda, Jacinta, de blusa preta e com um lenço a cobrir-lhe o cabelo escuro, ajoelhou-se também»

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«A Igreja só precisa da verdade. Papa Leão XIII (1881). Não há nada mais intenso do que este fascinante e encantador mistério de Fátima, que tem acompanhado a Igreja e toda a humanidade durante este longo século de apostasia, e que sem dúvida continuará a acompanhá-las até ao fim e à ressurreição. Abade Ggeorges de Nantes (1982), por ocasião da primeira peregrinação do papa João Paulo II a Fátima.

Fátima. Portugal. 13 de Julho de 1917
«Lúcia olhou para o céu e viu a Senhora a descer. A aparição veio de nascente, como das duas vezes anteriores, emergindo como uma mancha cintilante do céu carregado de nuvens. Não houve um tremor no Seu movimento deslizante. Aproximou-se rapidamente e a Sua forma resplandescente imobilizou-se sobre a azinheira, a dois metros e meio do solo. A Senhora estava de pé, e um brilho mais ofuscante que o do próprio sol envolvia a Sua imagem cristalina. Lúcia baixou o olhar, reagindo àquela beleza deslumbrante. À volta de Lúcia estava uma multidão, ao contrário da primeira vez que a Senhora aparecera, há dois meses. Nessa altura, apenas Lúcia, Jacinta e Francisco andavam pelos campos, a guardar as ovelhas da família. Os primos tinham sete e nove anos. Ela era a mais velha, com dez anos, e tinha consciência disso. À sua direita, Francisco, de calças compridas e barrete, ajoelhou-se. À esquerda, Jacinta, de blusa preta e com um lenço a cobrir-lhe o cabelo escuro, ajoelhou-se também. Lúcia levantou a cabeça e reparou de novo na multidão. As pessoas tinham começado a juntar-se na véspera, muitas vindas das aldeias vizinhas e algumas acompanhadas de crianças aleijadas, na esperança de que a Senhora as curasse. O prior de Fátima declarara que a aparição era uma fraude e exortara todos a afastarem-se. É o Diabo em acção, dissera ele, mas as pessoas não lhe tinham dado ouvidos, e um dos paroquianos até o apelidara de louco, visto que o Diabo nunca incitaria ninguém a rezar. Uma mulher no meio da multidão gritava, chamando impostores a Lúcia e aos primos, jurando que Deus havia d vingar aquele sacrilégio. Manuel Marto, tio de Lúcia e pai de Jacinta e de Francisco, estava atrás deles e Lúcia ouviu-o mandar calar a mulher. Era respeitado em todo o vale por ser um homem que conhecia o mundo para além da serra de Aire. Os seus olhos castanhos argutos e a sua calma eram um conforto para Lúcia. Era bom tê-lo por perto, ali no meio dos desconhecidos.
Tentou ignorar as palavras que os presentes gritavam na sua direcção e abstraiu do aroma da hortelã e dos pinheiros e do odor intenso do rosmaninho-silvestre. Os seus pensamentos, e depois o seu olhar, concentraram-se na imagem da Senhora que pairava à sua frente. Só ela, Jacinta e Francisco viam a Senhora, mas só ela e a prima a ouviam. Lúcia achou isto estranho, por que motivo havia Francisco de ser excluído?, mas, durante a Sua primeira aparição, a Senhora esclarecera que Francisco só iria para o Céu depois de rezar muitos terços. Uma brisa suave atravessou o vale grande e fundo conhecido por Cova da Iria. O terreno pertencia aos pais de Lúcia e estava repleto de oliveiras e manchas de verdura. As ervas altas davam um feno excelente e a terra produzia batatas, couves e milho. Muros de pedras empilhadas delimitavam os campos. A maior parte deles já se desmoronara, o que Lúcia agradecia, porque assim as ovelhas podiam pastar à vontade. Tinha a seu cargo guardar o rebanho da família. Jacinta e Francisco haviam sido incumbidos da mesma responsabilidade pelos pais, e nos últimos anos tinham passado muito tempo nos campos, a brincar, a rezar e a ouvir Francisco a tocar flauta. Mas tudo isto mudara há dois meses, quando se dera a primeira aparição.
Desde então, tinham sido importunados com perguntas constantes e alvo de troça dos que não acreditavam. A mãe de Lúcia até a levara ao padre da paróquia, obrigando-a a dizer que aquilo era tudo mentira. O padre ouvira o que ela contara e afirmara que não era possível que Nossa Senhora descesse do Céu apenas para recomendar que rezassem o terço todos os dias. Lúcia só encontrava consolo quando estava sozinha e podia chorar livremente por si própria e pelo mundo. O céu escureceu, e as sombrinhas que a multidão abrira para se proteger do sol começaram a fechar-se. Lúcia levantou-se e gritou: tirem o chapéu, que eu estou a ver Nossa Senhora! Os homens obedeceram de imediato e alguns benzeram-se, como que pedindo perdão pela sua indelicadeza. Lúcia virou-se de novo para a visão. O que me quer vossemecê?, perguntou ela. Não ofendas o Senhor nosso Deus, porque Ele já foi muito ofendido. Quero que venhas aqui no décimo terceiro dia do mês que vem e que continues a rezar o terço em honra de Nossa Senhora do Rosário para que haja paz no mundo e a guerra acabe. Só Ela poderá ajudar-vos. Lúcia olhou fixamente para a Senhora. A forma era transparente, etérea, em vários tons de amarelo, branco e azul, e o rosto belo, mas ensombrado pela tristeza. Envergava um vestido até aos pés. Um véu cobria-lhe a cabeça e um rosário que parecia feito de pérolas pendia-lhe das mãos postas. A voz era suave e agradável, sem altos nem baixos, sempre com o mesmo tom reconfortante, como a brisa que continuava a soprar sobre a multidão». In Steve Berry, O terceiro Segredo, tradução de Maria F. Duarte, Círculo de Leitores, Editora Record, Publicações dom Quixote, 2005, ISBN 978-972-202-914-8.

Cortesia de ERecord/PdomQuixote/JDACT

quarta-feira, 27 de abril de 2016

A Terra Toda. José Manuel Saraiva. «Para mim, nada justificava o seu procedimento; nada havia acontecido no quotidiano das nossas vidas que pudesse fundamentar a atitude dela, e por isso desconfiei, ao princípio…»

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«(…) Ora, eu não louvo esses heróis que mantêm um contrato utilitário, seja de direito ou de facto, só porque do ponto de vista social, familiar ou material o consideram cómodo ou proveitoso. Eu não seria capaz de aceitar uma situação desse género, que consome vidas e destrói afectos. Mas também não aceito o contrário, ou, para ser mais rigoroso, dificilmente consigo aceitar, nem sequer compreender, o propósito de se pôr fim a uma relação sustentada, às vezes perfeita, por causa de um ou de alguns factos de consequências mínimas. Pergunta-me se há relações perfeitas?... Bem, perfeitas não digo, mas quase perfeitas, seguramente. A minha era assim; uma relação em que tudo parecia certo e se me afigurava definitivo. Era como se ela e eu vivêssemos para além dos nossos próprios limites; como se estivéssemos sempre a morrer, apaixonados, para renascermos outros, melhores ainda, em cada manhã de um novo dia. Nada falhava no percurso discreto das nossas vidas. A dor de um era a dor do outro; a alegria de um era a alegria do outro, sempre celebrada no entusiasmo do compromisso e da partilha. Por isso pensava eu que tudo aquilo a que nos entregávamos de corpo e alma, tão vasto, tão intenso, iria ser eterno, esquecendo-me, ou provavelmente não sabendo ainda, de que só são eternos os instantes que vivemos. Por outro lado, à excepção dos últimos meses de convivência, sobre os quais lhe falarei mais adiante, eu nunca havia dado conta de qualquer gesto de renúncia por parte dela, e também essa circunstância me levava a supor que jamais seria capaz de me esconder uma aventura ou de disfarçar uma intenção.
Até que um dia, lembro-me de que era uma tarde de Verão, descobri que eu não era, afinal, o único homem da sua vida. E esse foi o grande choque; um choque de que ainda me não recompus, que me abalou e destruiu. Mas por favor, doutora, não me peça para lhe descrever o que senti nessa hora, ou na seguinte, ou nas que lhe sucederam, porque seria incapaz de o fazer. Aliás, nem sequer me consigo recordar de certos pormenores ocorridos naquela altura, nem do que disse ou do que pensei quando uma amiga de ambos, talvez até mais dela do que minha, me telefonou de propósito para me revelar o segredo. Pouco ou nada retenho dessa conversa, repito. Apenas me lembro de que num primeiro momento cheguei a duvidar, injustamente, da sua confidência, porque o meu problema se tornou de repente mais de fé do que de prova. Custava-me a crer que a mulher que amava, com quem me relacionava numa harmonia estável, quase perfeita, cometesse uma traição infame. Para mim, nada justificava o seu procedimento; nada havia acontecido no quotidiano das nossas vidas que pudesse fundamentar a atitude dela, e por isso desconfiei, ao princípio, da denúncia feita por essa amiga. Só me lembro de lhe ter perguntado: tens a certeza do que estás a dizer?, e de ela me responder tenho.
Sabe, doutora, entre uma verdade dolorosa e uma suave mentira eu prefiro a verdade dolorosa. Aprendi isto em casa dos meus pais, com a minha mãe. O meu pai era um homem cuja vida parecia regulada por impulsos que lhe vinham não sei de que regiões mais fundas de si mesmo. Embora manifestasse uma permanente atitude de bonomia, era de difícil acesso. E tinha outra característica, não sei se boa se má: nunca se irritava, nunca se ia emocionalmente abaixo, nem mesmo quando perdia dinheiro ao jogo ou quando as suas aventuras amorosas, extraconjugais, lhe corriam mal. A minha mãe sabia de tudo, mas quase sempre se calava. E aquilo doía-me. Algumas vezes, não muitas, ela ganhava coragem e confrontava-o, utilizando um tom suave, quase inaudível: por favor, António, diga-me a verdade. Coisa a que o meu pai respondia, invariavelmente, num registo de voz idêntico, baixinho e muito calmo: que verdade quer saber de mim?
O que é a verdade para si? É a que os outros lhe vêm contar? Nessas alturas, ela emudecia, afastava-se dele e ia chorar para o quarto, em contido silêncio. Deixe-me no entanto dizer que os meus pais nunca tiveram conversas destas à minha frente; nem destas nem de outras que pudessem, talvez na opinião deles, perturbar a ascética educação do filho. Eu escutava-as, sim, mas atrás das portas. Um dia ouvi a minha mãe dizer ao meu pai: António, prefiro a verdade, por mais dura que seja, à mentira piedosa. E você está farto de saber isto. Pela última vez lhe peço que me diga o que se passa consigo, quem sabe se comigo, porque eu não sei, mas diga, por favor, imploro-lhe que me diga. A este pedido magoado ele respondeu com a sua habitual frieza glacial: a minha vida é transparente, Ofélia, e por isso nada tenho para lhe contar. E por aí se ficou». In José Manuel Saraiva, A Terra Toda, Porto Editora, Porto, 2011, ISBN 978-972-004-327-6.

Cortesia de PEditora/JDACT

Casanova Revisitado. Susan Swan. «Não partas com espírito de aquisição, antes avança na maior das humildades, experimentando o mesmo fervor que sentes quando escolhes um amante, sabendo que um mundo…»


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«(…) Do outro lado do frontispício constava uma inscrição feita por Asked For Adams e urna declaração dos seus princípios de viagem. Corada de excitação, Luce segurou o diário de maneira que os seus lados vermelhos repousassem uniformemente na secretária do hotel. Os documentos haviam chegado apenas no dia anterior ao do voo e não tivera oportunidade para lançar mais do que uma olhadela a algumas páginas. Começou a ler. Ao longo da minha vida, fiz muitas coisas, para uma mulher nascida yankee em Quincy, Massachusetts. Salvei a vida de um sultão e viajei com Jacob Casanova, o qual me ensinou que existe unicamente uma lição que vale a pena aprender: nunca tentar realizar o ideal, antes encontrar o ideal no real. Os nossos desejos dão origem a fés (as quais são variadas), porém, as melhores fés são cinco e são, simultaneamente, prazeres: (1) A fé dos nossos antepassados; (2) Amor e Relações Sexuais, que Jacob Casanova nunca separava; (3) Literatura; (4) Beleza; e (5) Viagens. Não importa qual a fé que escolhamos de entre as milhares que nos aguardam, devemos praticá-la com o máximo de reverência, compaixão e exuberância que nós, pobres seres, possuamos. pois as palavras de todas as doutrinas, e seu tempo, saciarão. Em 1797, quando conheci Jacob, não sabia que estava prestes a abraçar as Viagens, a Quinta Fé, cujos princípios Jacob tão espirituosamente inventou e cujos preceitos traduzi livremente do francês para os adequar aos meus propósitos. Era também, então, suficientemente ignorante para pensar que as viagens valiam por si próprias, não compreendendo que dependem das outras fés para serem completas.
Os dez princípios fundamentais de viagem de Jacob Casanova: 1. Não partas com espírito de aquisição, antes avança na maior das humildades, experimentando o mesmo fervor que sentes quando escolhes um amante, sabendo que um mundo de possibilidades te aguarda; 2. Escreve o teu desejo e rasga-o em doze pedaços. Depois, lança-os para uma grande extensão de água (qualquer oceano serve); 3. Viajar é como respirar; por isso, exala o velho, inala o novo e permite que os teus desgostos se desvaneçam atrás de ti; 4. Aquilo que desejas aguarda-te sempre, se fores suficientemente corajoso para o reconhecer; 5. Vai apenas aonde as tuas fantasias te levarem. O caminho para o prazer e a liberdade é o melhor para o viajante; 6. Arranja entradas e saídas fáceis. Recupera em alojamentos confortáveis. Depois, move-te para outros aposentos e perdoa a ti mesmo a indulgência dos luxos necessários. 7. Se encontrares um lugar que te satisfaça, faz tudo por ficar. Porém, não conhecerás a alma do seu povo até que lhe possas falar na sua própria língua; 8. Aceita os outros como a ti mesmo, mas vê-os por quem são; 9. A tua viagem não está completa até que concedas uma dádiva às terras que visitaste, tendo perfeita consciência de que nunca serás capaz de pagar metade das riquezas que te foram concedidas; 10. Vai imediatamente, com as palavras de Jacob Casanova no coração: Un altro mondo è possibile!
Que bizarro, da parte de Casanova, pensou, perplexa. E o seu décimo princípio, por aquilo que sabia de italiano, sugeria que Casanova acreditava poder mudar a sua realidade como mudava de roupa. Quanto a ela, no gostava de viajar e, de qualquer modo, não tinha dinheiro~para férias, com o seu salário nos Arquivos e Livros Raros Miller. Se lhe dessem a escolher, preferia mergulhar num livro e deixar que o mundo viesse até ela. Pois, independentemente do que a sua antepassada tivesse dito, viajar era perigoso. A morte esconde-se no desconhecido, a surpresa indesejável que viajante algum pode transformar a seu favor». In Susan Swan, Casanova Revisitado, 2005, tradução de Fernanda Semedo, Editorial Estampa, Lisboa, 2007, ISBN 978-972-332-345-0.

Cortesia de EEstampa/JDACT

terça-feira, 26 de abril de 2016

As Pirâmides de Napoleão. William Dietrich. «Então, senti uma presença. Virei e notei uma sombra entre sombras. Quem está aí? Uma leve brisa passou e instintivamente tentei virar-me enquanto algo zunia pelo meu ouvido e atingiu o meu ombro»

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«(…) Ela alisou e desenhou o lugar onde o medalhão deveria tocar a minha pele. Quero usá-lo para você. E arriscar que um de nós se fure com ele? E beijei-a novamente. Além do mais, não é seguro carregar prémios como esse por aí no escuro. As mãos de Minette já exploravam o meu torso. Só para garantir. Eu esperava mais coragem. Vamos fazer uma aposta. Se você ganhar, eu o trago na próxima vez. Apostar como?, disse ela, de maneira suave e profissional. O perdedor vai ser aquele que gozar primeiro. Ela deixou a sua cabeça deslizar pelo meu pescoço. E as armas? Qualquer coisa que você consiga imaginar. Suavemente, eu inclinei-a um pouco para traz, usei a perna que já estava encostada no seu calcanhar para fazer um movimento e deitá-la na cama. En garde. Eu venci a nossa pequena disputa, mas ela insistiu numa revanche, que eu também ganhei, assim como a terceira rodada que a deixou gemendo. Pelo menos eu acho que ganhei, nunca sabe quando as mulheres realmente são honestas nesse quesito, ainda mais uma cortesã. De qualquer forma, foi o suficiente para mantê-la a dormir quando eu me levantei, antes do amanhecer, e deixei uma moeda de prata. Antes de sair, coloquei mais um pedaço de madeira na lareira para manter o quarto aquecido quando ela acordasse.
O céu cinzento foi o sinal para os lanterneiros se irem embora e, com isso, os trabalhadores de Paris acordavam para mais um dia. Carros de lixo disparavam pelas ruas. Homens com tábuas cobravam para fornecer pontes temporárias sobre ruas tomadas pela água estagnada. Carregadores de água levavam os seus baldes para as casas mais afortunadas. O meu bairro, St. Antoine, não era chique nem desprezível. Ficava no meio termo ao acolher profissionais como artesãos, marceneiros, chapeleiros e chaveiros. O aluguer sempre era baixo por conta do forte cheiro que misturava o aroma das cervejarias e tinturarias. Tudo isso, porém, era apenas mais um elemento no interminável odor parisiense de fumaça, pão e esterco. Bastante satisfeito com a minha última noite, subi as escadarias escuras do meu edifício com a única, e deliciosa, intenção de dormir até ao meio-dia. Por isso, quando abri a porta e entrei no meu quarto, resolvi encontrar o meu colchão em vez de perder tempo com velas. Mesmo sonolento, pensei se poderia penhorar o medalhão por um valor suficiente para poder conseguir um apartamento melhor. Já que Silano se havia interessado tanto, o seu valor poderia ser ideal para os meus propósitos.
Então, senti uma presença. Virei e notei uma sombra entre sombras. Quem está aí? Uma leve brisa passou e instintivamente tentei virar-me enquanto algo zunia pelo meu ouvido e atingiu o meu ombro. Não era algo afiado, mas a dor era intensa do mesmo jeito. Caí de joelhos. Mas que diabos? A pancada havia deixado o meu braço paralisado. Alguém me empurrou e caí de lado, todo desengonçado. Não estava preparado para isso! Dei um chuto meio desesperado, acertei num calcanhar e ouvi um grito que me causou certa satisfação. Deslizei para o lado tentando agarrar alguma coisa. Valia tudo naquela hora. Encontrei um cinto e puxei sem jeito. O invasor caiu no chão comigo. Mer…, ele vociferou. Levei um soco directo no rosto enquanto agarrava o meu agressor. A ideia era livrar da minha bainha para poder sacar a espada. Eu esperava que ele me empurrasse, mas, em vez disso, senti uma mão apertando a minha garganta. Está com ele?, outra voz perguntou. Quantos homens estavam ali? Até agora tinha atingido um braço, um pescoço e acabado de acertar um safanão numa orelha. O meu adversário gemeu novamente. Consegui virar-me e a sua cabeça bateu no chão. No meio da confusão, as minhas pernas atingiram uma cadeira que caiu e fez um barulho enorme. Ouvi um berro do andar de baixo: Monsieur Gage! Era a minha senhoria, a senhorita Durrell. O que está fazendo com a minha casa? Ajude-me, gritei, ou tentei gritar. A dor era muito forte.  Rolei para o lado, peguei minha bainha e comecei a sacar o meu florete. Ladrões! Em nome de Cristo, pode ajudar aqui?, o meu atacante disse a seu companheiro. Estou tentando achar a cabeça dele. Não podemos matá-lo enquanto não encontrarmos o que viemos buscar. E, então, alguma coisa me acertou e desmaiei». In William Dietrich, As Pirâmides de Napoleão, 2007, Grandes Narrativas, nº 490, Editorial Presença, 2011, ISBN 978-972-234-450-0.

Cortesia EPresença/JDACT

O Cemitério de Praga. Umberto Eco. «Para parecer um capitão reformado, eu gosto, enquanto falo, de brincar com uma caixinha de tartaruga, cheia de losangos de alcaçuz e, no interior da tampa, o retrato de uma mulher feia…»

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Quem sou? 24 de Março de 1897
«(…) Então, é esse o meu ofício? É bonito construir do nada um acto notarial, forjar uma carta que parece verdadeira, elaborar uma confissão comprometedora, criar um documento que levará alguém à perdição. O poder da arte... Digno de me premiar com uma visita ao Café Anglais. Devo ter a memória no nariz, mas tenho a impressão de que há séculos já não aspiro o perfume daquele menu: soufflés à la reine, filets de sole à la Vénitienne, escalopes de turbot au gratin, selle de mouton purée bretonne... E como entrée: poulet à la portugaise ou páté chaud de cailles ou homard à la parisienne, ou tudo junto, e, como plat de résistance, que sei eu, canetons à la rouennaise ou ortolans sur canapés e, por entremet, aubergines à l’espagnole asperges en branches, cassolettes princesse... Como vinho, eu não saberia, talvez Château Margaux ou Château Latour ou Château Lafite, depende da safra. E, para concluir, uma bombe glacée. A culinária sempre me satisfez mais do que o sexo, talvez uma marca que os padres me deixaram. Continuo sentindo uma espécie de nuvem, na mente, que me impede de olhar para trás. Por que subitamente voltam a me aflorar à memória as minhas fugas para o Bicerin vestido com o hábito do padre Bergamaschi? Eu tinha esquecido completamente o padre Bergamaschi. Quem era? Gosto de deixar correr a pena para onde o instinto me conduz. Segundo aquele doutor austríaco, eu deveria chegar a um momento verdadeiramente doloroso para minha memória, o qual explicaria porque de repente cancelei tantas coisas.
Ontem, dia que eu supunha terça-feira, 22 de Março, acordei como se soubesse muito bem quem era: o capitão Simonini, 67 anos feitos mas bem conservados (sou gordo o bastante para ser considerado aquilo que chamam um belo homem) e havia assumido em França aquele título como lembrança do avô, aduzindo vagos transcursos militares nas fileiras dos Mil garibaldinos, coisa que nesse país, onde Garibaldi é mais estimado que na Itália, desfruta de certo prestígio. Simone Simonini, nascido em Turim, de pai turinês e mãe francesa (ou saboiana, mas poucos anos após o seu nascimento o reino da Sardenha cedeu a Saboia à França). Ainda na cama, eu fantasiava... Dados os problemas que eu tinha com os russos (os russos?), era melhor não aparecer nos meus restaurantes preferidos. Poderia cozinhar algo eu mesmo. Trabalhar algumas horas, preparando uma iguaria, relaxa-me. Por exemplo, umas côtes de veau Foyot: carne com ao menos quatro centímetros de espessura, porção para dois, claro, duas cebolas de tamanho médio, 50 gramas de miolo de pão, 75 de gruyère ralado, 50 de manteiga; esfarela-se e torra-se o miolo até o transformar em farinha de rosca, que será misturada com o gruyère; depois descascam-se e picam as cebolas, derretem-se 40 gramas de manteiga numa panelinha, enquanto em outra refogam-se suavemente as cebolas com a manteiga restante; cobre-se o fundo de um prato com metade das cebolas, tempera-se com sal e pimenta a carne, que é colocada no prato e guarnecida lateralmente com o restante das cebolas, envolve-se tudo com uma primeira camada de farinha de rosca e queijo, fazendo a carne aderir bem ao fundo do prato, deixando escorrer a manteiga derretida e esmagando levemente com a mão; coloca-se outra camada de farinha de rosca e queijo até formar uma espécie de cúpula e acrescentando manteiga derretida; borrifa-se tudo com vinho branco e caldo, sem ultrapassar a metade da altura da carne. Coloca-se o prato no forno por cerca de meia hora, continuando a molhar com o vinho e o caldo. Acompanhar com couve-flor sautée.
Exige um pouco de tempo, mas os prazeres da cozinha começam antes dos prazeres do palato, e preparar significa pregustar, como eu estava fazendo, ainda espreguiçando-me na cama. Os tolos precisam ter sob as cobertas uma mulher, ou um rapazinho, para não se sentirem sós. Não sabem que a água na boca é melhor do que uma erecção. Eu tinha em casa quase tudo, menos o gruyère e a carne. Para a carne, se fosse outro dia, haveria o açougue da place Maubert, mas, sei lá por quê, às terças-feiras ele não abre. Eu conhecia outro, a 200 metros de distância, no boulevard Saint-Germain, e um breve passeio não me faria mal. Vesti-me e, antes de sair, diante do espelho acima da bacia, apliquei-me o costumeiro bigode preto e minha bela barba. Em seguida, coloquei a peruca e penteei-a repartida ao meio, humedecendo levemente o pente com água. Agasalhei-me com o redingote e meti no bolsinho do colete o relógio de prata com a corrente bem à vista. Para parecer um capitão reformado, eu gosto, enquanto falo, de brincar com uma caixinha de tartaruga, cheia de losangos de alcaçuz e, no interior da tampa, o retrato de uma mulher feia mas bem-vestida, sem dúvida uma querida defunta». In Umberto Eco, O Cemitério de Praga, 2010, tradução de Joana Angélica Melo, ePUBr, Biblioteca Digital Brasileira, Editora Record, Rio de Janeiro, 2011, ISBN 978-850-109-284-7.

Cortesia de ERecord/JDACT

A Mística do Instante. O Tempo e a Promessa. Tolentino Mendonça. «As mãos são um organismo complexo, são um delta no qual desemboca uma vida que vem de muito longe, para transformar-se numa torrente imensa de acção. Há uma história das mãos; têm por direito próprio a sua beleza…»

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Do lado do excesso de comunicação
«(…) E de modo semelhante com os outros sentidos que implicam proximidade: o paladar e o tacto. Hoje, só os profissionais arriscam provas cegas das comidas ou bebidas. Mas, mesmo aí, são cada vez mais os olhos que comem, pelo investimento no impacto decorativo dos pratos, pelo requinte do design ou pela manipulação do próprio sabor. Para não falar do tacto. A nossa distância da natureza é tão grande que deixamos de saber coisas tão elementares como caminhar descalço, dobrar-se na clareira e afastar mansamente as folhas da fonte para beber devagarinho, ou acariciar a vida desprotegida que se avizinha de nós. Assim nos tornamos os analfabetos emocionais que somos, resumia o cineasta Ingmar Bergman. Não será tempo de voltarmos aos sentidos? Não será esta uma oportunidade propícia para os revitalizarmos? Não é chegado o instante de compreender melhor aquilo que une sentidos e sentido?

Redescobrir o tacto
Pensou-se, desde a Antiguidade clássica, que o primeiro dos sentidos fosse o tacto, mesmo se ele aparece só em terceiro lugar na escala que Aristóteles apresentava então. Na ordem da criação ele tem certamente a primazia. O desenvolvimento dos sentidos no fecto começa provavelmente com o tacto. Depois, com o nascimento, é também através do contacto físico que experimentamos a realidade: o frio e o calor, o familiar e o estranho, o desconforto e o consolo. Todo o objecto vem avaliado pelo nascituro através do tacto, que para isso o leva inevitavelmente à boca e às mãos. Muito legitimamente, o tacto vem descrito como o nosso grande olho primeiro. A pele recobre o nosso corpo, da cabeça aos pés. Ela divide e ao mesmo tempo une o mundo exterior e o interno. A pele lê a textura, a densidade, o peso e a temperatura da matéria. O sentido do tacto conecta-nos com o tempo e a memória: através das impressões do tacto fazemos intermináveis viagens sem as quais não seríamos quem somos. O tacto permite que não esbarremos apenas uns contra os outros, mas que existam encontros. Por isso, a pergunta que um dia Jesus fez no meio de uma multidão compacta continua a ser significativa: quem me tocou? Os discípulos bem tentavam, em vão, dissuadi-lo, lembrando que uma massa de gente o apertava e tocava de todos os lados. Mas o que Jesus afirma é que há um tocar e um tocar.
As mãos são um organismo complexo, são um delta no qual desemboca uma vida que vem de muito longe, para transformar-se numa torrente imensa de acção. Há uma história das mãos; têm por direito próprio a sua beleza; assiste-lhes o direito de ter o seu próprio desenvolvimento, seus desejos próprios, seus sentimentos, escreveu Rainer Maria Rilke. E o que dizemos das mãos podemos dizer da pele. A nossa autobiografia é assim também uma história da pele e do tacto, da forma como tocamos ou não, da forma como fomos e não fomos tocados, mesmo se essa continua, em grande medida, um relato submerso, em que não pensamos. E, contudo, ela tem tanto a ensinar-nos. Existe um tipo de conhecimento, não apenas na primeira infância, mas pela vida fora, que só nos chega através do tacto.
O pintor Miró falava sempre da origem táctil da sua arte. Na juventude, em Barcelona, teve por mestre o arquitecto Francisco Gali que, embora sendo um académico muito convencional, era capaz de arriscar por caminhos inesperados na iniciação dos seus estudantes. Miró confessa que não era propriamente um virtuoso no desenho e que o seu mestre ajudou-o assim: colocava-lhe uma venda nos olhos para que ele tocasse os objectos com os dedos e não apenas com o olhar. Miró fechava então os olhos, agarrava uma pequena pedra, tacteava-a, palpava-a, revirava-a várias vezes nas suas mãos. E desenhava-a. O pintor catalão dizia-se incapaz de chegar à representação do mundo de outra maneira». In José Tolentino Mendonça, A Mística do Instante, O Tempo e a Promessa, Colecção Poéticas do Viver Crente, Série JTM, Paulinas Editoras, 2014, ISBN 978-989-673-396-4.

Cortesia de Paulinas/JDACT

O Livro dos Perfumes Perdidos. MJ Rose. «Ao contrário das idosas companheiras, a Imortalidade era jovem, mas a serpente em torno da sua cabeça, a morder a cauda, estava mosqueada de manchas verdes e pretas de deterioração»

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Alexandria. Egipto. 1799
«(…) Por duas vezes. Desde criança que coleccionava fitas e tinha caixas e caixas delas: de cetim, de gorgorão, de veludo, de catassol e jacquard, a maior parte descoberta em cestos cheios de galões em lojas de antiguidades. Havia seis metros e meio daquela fita de cetim creme numa bobina manchada de água e marcada Memorial Black. O condutor avançou pela estrada central do cemitério, até chegar a uma bifurcação, e aí virou à direita. De olho no familiar ornamento de granito com a forma de um orbe, Jac atou e desatou o comprido lenço branco ao mesmo tempo que o condutor percorria, vereda atrás de vereda, um infindável labirinto de lápides, mausoléus e monumentos. Ao longo dos últimos 160 anos, toda a família da sua mãe fora sepultada naquele cemitério vitoriano empoleirado numa cumeada sobranceira ao rio Pocantico. O facto de ter tantos familiares a dormir o sono eterno naquele luxuriante cemitério histórico fazia-a sentir-se estranhamente em casa. Desconfortável e pouco à vontade, mas em casa, naquela terra dos mortos. O condutor parou junto a uma pequena mata de falsas acácias, estacionou e deu a volta ao carro para abrir a porta a Jac. A sua determinação debatia-se com a ansiedade. Vacilou apenas por uns segundos e saiu.
Sob a sombra das árvores, Jac subiu os degraus do mausoléu ornamentado em estilo grego e tentou enfiar a chave na fechadura. Não se recordava de ter tido problemas antes, mas no ano anterior não se lembrava de ter visto aquele rio de ferrugem a emergir do buraco da mesma. Talvez o escatel estivesse corroído. Ao mesmo tempo que agitava o palhetão e empurrava, reparou que os espaços entre os blocos de pedra à sua direita estavam cheios de musgo. No lintel, três cabeças de bronze tinham já sido corroídas pelos elementos. Os rostos, a Vida, a Morte e a Imortalidade, observavam-na com sobranceria. Olhou para cada um deles enquanto sacudia a chave na fechadura. A corrosão que atacara a Morte suavizara-lhe ironicamente a expressão, em especial em redor dos olhos fechados. O dedo que a imagem segurava frente aos lábios, silenciando-os para sempre, esboroava-se de ferrugem. O mesmo acontecia com a sua coroa de papoilas, o símbolo do sono na Grécia Antiga.
Ao contrário das idosas companheiras, a Imortalidade era jovem, mas a serpente em torno da sua cabeça, a morder a cauda, estava mosqueada de manchas verdes e pretas de deterioração. Nada apropriado para um vetusto ícone de eternidade. Apenas o símbolo a alma humana, a borboleta no meio da testa da Imortalidade, permanecia intacto. A luta de Jac com a chave continuou. Começava quase a ficar desmoralizada, perante a ideia de que a entrada não lhe seria permitida, quando a tranqueta se soltou e a fechadura cedeu finalmente. Ao empurrar a porta, as dobradiças gemeram como um idoso. De imediato, o cheiro gredoso a pedra e ar bafiento, misturado com folhas decompostas e madeira seca, veio ao encontro dela. Jac chamava-lhe o cheiro dos esquecidos. Deteve-se na soleira e espreitou para o interior. A luz matutina que penetrava pelas duas janelas de vitral decoradas com lírios roxos saturava o espaço interior com uma espécie de melancólica cor de cobalto, aguada. Derramando-se também por sobre o anjo de pedra prostrado no altar. O seu rosto estava escondido, mas a dor era perceptível pela forma como os seus delicados dedos de mármore pendiam sobre o pedestal e pelo modo como as asas estavam penduradas, as pontas roçando pelo chão.
Sob cada uma das janelas, urnas de alabastro continham as oferendas que Jac trouxera no ano anterior: ramos de flores de macieira, entretanto secos e murchos. No centro do pequeno recinto, num banco de granito, estava sentada uma mulher, à espera, observando Jac, esboçando um sorriso familiar e triste. A luz azul atravessava a forma da mulher e espalhava-se pelas pernas de Jac. Receava que não viesses. A voz suave parecia advir do ar em redor do espectro translúcido, de dentro dele». In M. J. Rose, O Livro dos Perfumes Perdidos, tradução de Eugénia Antunes, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-724-039-3.

Cortesia de CAutor/JDACT

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Isto Não é Um Cachimbo. Michel Foucault. «Espreitando o desenho do cachimbo e o enunciado que lhe serve de legenda sobre a superfície bem claramente delimitada de um quadro, na medida em que se trata de uma pintura, as letras são apenas a imagem das letras na medida…»

jdact e wikipedia

O calígrafo desfeito
«(…) Magritte reabriu a armadilha que o caligrama tinha fechado sobre aquilo de que falava. Mas, com isso, a própria coisa levantou voo. Sobre a página, de um livro ilustrado, não se tem o hábito de prestar atenção a esse pequeno espaço em branco que corre por cima das palavras e por cima dos desenhos, que lhes serve de fronteira comum para incessantes passagens: pois é ali, sobre esses poucos milímetros de alvura, sobre a calma areia da página, que se atam, entre as palavras e as formas, todas as relações de designação, de denominação, de descrição, de classificação. O caligrama reabsorveu esse interstício; mas, uma vez reaberto, ele não o restitui; a armadilha foi fracturada sobre o vazio: a imagem e o texto caem, cada um de seu lado, segundo a gravitação que lhes é própria. Eles não têm mais espaço comum, mais lugar onde possam interferir, onde as palavras sejam susceptíveis de receber uma figura, e as imagens, de entrar na ordem do léxico. Na pequena, estreita faixa, incolor e neutra que, no desenho dei Magritte, separa o texto e a figura, é preciso ver um vazio, uma região incerta e brumosa que separa agora o cachimbo flutuante em seu céu de imagem e o pisoteamento terrestre das palavras desfilando em sua linha sucessiva. Ainda seria demais dizer que há um vazio ou uma lacuna: é antes uma ausência de espaço, um apagar do lugar-comum entre os signos da escrita e as linhas da imagem. O cachimbo que se encontrava indiviso entre o enunciado que o nomeava e o desenho que devia figurá-lo, esse cachimbo de sombra que cruzava os lineamentos da forma e a fibra das palavras, fugiu definitivamente. Desaparecimento que, do outro lado desse riacho pouco profundo, o texto constata divertidamente: isto não é um cachimbo. O desenho, agora solitário, do cachimbo, por mais que se faça tão semelhante quanto pode a essa forma que a palavra cachimbo designa ordinariamente; por mais que o texto se desenrole sob o desenho com toda a fidelidade atenta de uma legenda num livro erudito: entre eles só pode passar a formulação do divórcio, o enunciado que conteste ao mesmo tempo o nome do desenho e a referência do texto.

Em nenhum lugar há cachimbo
A partir daí pode-se compreender a última versão que Magritte deu de Isto não é um cachimbo. Espreitando o desenho do cachimbo e o enunciado que lhe serve de legenda sobre a superfície bem claramente delimitada de um quadro (na medida em que se trata de uma pintura, as letras são apenas a imagem das letras na medida em que se trata de um quadro-negro, a figura é apenas a continuação didáctica de um discurso), colocando esse quadro sobre um triedro de madeira espessa e sólida, Magritte faz tudo o que é preciso para reconstituir (seja pela perenidade de uma obra de arte, seja pela verdade de uma lição de coisas) o lugar-comum à imagem e à linguagem. Tudo está solidamente amarrado no interior de um espaço escolar: um quadro mostra um desenho que mostra a forma de um cachimbo; e um texto escrito por um zeloso professor primário mostra que é bem de um cachimbo que se trata. Não vemos o dedo indicador do mestre, mas ele reina em todos os lugares, assim como sua voz, que está articulando claramente: isto é um cachimbo. Do quadro à imagem, da imagem ao texto, do texto à voz, uma espécie de dedo indicador geral aponta, mostra, fixa, assinala, impõe um sistema de reenvios, tenta estabilizar um espaço único. Mas por que introduzi ainda a voz do mestre? porque mal ela disse isto é um cachimbo, e já foi obrigada a retomar e balbuciar: isto não é um cachimbo, mas o desenho de um cachimbo, isto não é um cachimbo, mas uma frase dizendo que é um cachimbo, a frase: isto não é um cachimbo, não é um cachimbo; na frase: isto não é um cachimbo, isto não é um cachimbo: este quadro, esta frase escrita, este desenho de um cachimbo, tudo isto não é um cachimbo». In Michel Foucault, Isto Não é Um Cachimbo, Editora Paz e Terra, 1973, tradução de Jorge Coli, 1989/2004, ISBN 978-857-753-031-1.

Cortesia EPTerra/JDACT

Carlos V. Linda Carlino. «Tantos desafios acabaram por derrotar Carlos V física e mentalmente, resultando na sua abdicação, aos 56 anos. Escolhe o seu irmão Fernando para assumir o império…»

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Orgulho. Poder. Paixão
«O ano é 1557. A Europa vive uma época turbulenta, marcada por guerras e pela Reforma da Igreja promovida por Lutero. Aos 56 anos, precocemente envelhecido e muito doente, Carlos V, filho da rainha Joana, a Louca, abdica dos tronos do Sacroimpério Romano-Germânico e da Espanha e isola-se no mosteiro de São Jerónimo de Yuste, na região da Serra de Gredos. No livro, Carlos relembra, por meio de diálogos ficcionais com familiares, nobres, representantes do clero e outros supostos visitantes, detalhes reais de seus gloriosos tempos no poder, das inúmeras campanhas militares, dos amores passados e até se vangloria por sua suposta esperteza política em negociações e arranjos matrimoniais familiares.
O imperador Carlos V assume a Coroa do Sacroimpério Romano-Germânico no início do século XV, logo após a morte do imperador Maximiliano. Ele venceu uma árdua disputa contra Henrique VIII, da Inglaterra, e Francisco I, da França, após subornar príncipes alemães que o indicaram e levou junto um amargo cálice: teve de lidar com uma confederação de estados alemães muitas vezes rebelde. Não foram poucos os desafios durante os seus anos como imperador. Além de enfrentar ameaças constantes do Império Otomano, que desejava expandir o máximo possível as suas fronteiras a oeste, tinha de impedir a França de estender os seus poderes sobre a Itália. Ambas as ameaças exigiram uma resposta armada que necessitava de dinheiro, muito mais dinheiro do que até mesmo a abundância do Novo Mundo poderia suprir. Carlos teve de contrair empréstimos imensos com banqueiros alemães, causando a falência da Espanha.
Como chefe de família, considerava ser também seu dever inabalável organizar os contratos de casamentos para assegurar o poder duradouro da dinastia dos Habsburgo e aumentar a sua influência onde quer que fosse possível. Foi também um período de agitação religiosa na Europa inteira. Os movimentos da Reforma, notadamente o que foi inspirado por Martinho Lutero, brotaram em toda parte, ameaçando a Santa Madre Igreja e todas as boas almas cristãs. Tantos desafios acabaram por derrotar Carlos V física e mentalmente, resultando na sua abdicação, aos 56 anos. Escolhe o seu irmão Fernando para assumir o império e passa os tronos da Espanha e Nápoles para o seu filho Felipe (Felipe II).  
1557. Fevereiro
Dois homens robustos, provavelmente com quarenta e poucos anos, surgiram do meio de um grupo barulhento de moças da aldeia, reunidas no outro lado da entrada do pátio, deixando-as coradas, com as mãos na boca, dando risadinhas, incapazes de esconder o acanhamento e o deleite. Então, o que achas? Quais são as nossas chances? Digo-te uma coisa, Alonso, pode ser que tenhamos sorte. Manuel, o homem um pouco mais alto, bateu no ombro do amigo. Espero que sim. Foi um fiasco de verdade em Jarandilla. Semanas de absoluta negação. Tens razão, não tinha o que fazer lá, de qualquer jeito; um bando de caras amarradas elas eram. Mas agora, bem, essas não são de todo ruim. O problema é que elas fedem.
Tu irias feder também se tivesses que morar no mesmo lugar que os animais durante o Inverno, seu tolo idiota. Temos sorte, sabe, dormindo no feno. Elas dormem na palha, do lado da bosta de vaca e das cabras fedorentas. Pelo menos é o que o meu nariz me conta. Deve ficar tudo bem, então, se nós pararmos do lado de fora, hein, Manuel? Exactamente o meu pensamento. Puxaram as batas de linho grosseiro sobre os calções castanhos mal cortados, mas duráveis. Apertaram os cintos, ajeitaram os casacos de lã e puxaram os capuzes sobre os cabelos penteados com os dedos. Por fim, cuspiram nos dedos dos pés em sandálias de couro e os enxugaram com a parte de trás das pernas. Como estamos? Apresentáveis? Bom, vamos, e Alonso foi à frente, passando os enormes portões de madeira escancarados em boas vindas, pelo calçamento de pedra, para juntarem-se aos outros rapazes em pé, de prontidão. Pelo fogo do inferno, sentiste isso, Alonso? Com se alguém tivesse deixado uma porta aberta e uma rajada de ar gelado tivesse soprado. Não, eu não, meu amigo. Estás adoecendo por algum motivo? Logo irás aquecer-te quando estiveres entre duas coxas macias.
Tu deves perdoar os nossos rapazes de sangue quente. Ao que parece têm tão poucos prazeres. Espero que nossa presença não tenha esfriado o seu ardor. Bem-vindo à Yuste, a esse esplêndido mosteiro de São Jerónimo. Não poderia haver um cenário mais cheio de paz. Então, estás aqui para descobrir tudo o que puderes sobre Carlos, o homem que havia pouco usava as coroas do Sacroimpério Romano-Germânico e Espanha. Como disseste com tanta exactidão, todos parecem ter ouvido falar do imperador e rei, mas o que sabem de facto a respeito do homem? Farei tudo ao meu alcance para ajudar-te. Serei o teu guia, levando-te, como a um observador invisível, à presença do rei e a enxergar dentro dos corações e mentes de todos os que encontrarmos. Espero, também, ser uma fonte de informação proveitosa. Concordas em nunca fazer perguntas nem buscar outras vias de investigação, sempre aceitando o meu julgamento e critérios? Muito bem! Então podemos iniciar o que, prometo, será a mais interessante experiência». In Linda Carlino, Carlos V, tradução de Leonor Cione, Editora Europa, São Paulo, 2008, ISBN 978-857-960-180-4.
Cortesia de EEuropa/JDACT